Blog de roberiocanto_18846

Alarme falso

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Uma lembrança, que também não demorará a se desfazer na poeira do tempo

Uma lembrança, que também não demorará a se desfazer na poeira do tempo

Estou caminhando quando ouço uma voz que, um tanto tensa, repete duas ou três vezes o meu nome. Volto-me e me deparo com um antigo conhecido que, ao se aproximar de mim, declara estar muito surpreso, mais do que muito surpreso, grandemente espantado por me ver. Não entendo a razão de tanto alvoroço, uma vez que as nossas ruas já estão carecas e esburacadas de tanto que passo por elas.  Mais do que por ter sido professor por longos anos e mais do que por escrever há tanto tempo para jornal, bater rua é o que me faz conhecido. Não popular e nada famoso, mas ao menos muito visto.

Em seguida meu conhecido esclarece por que encontrar figura tão batida na cidade ainda pode causar admiração. “Você nem acredita! Duas pessoas já me disseram que você tinha morrido!” E imediatamente me pede que o acompanhe até o outro lado da rua, onde sua mulher o espera dentro do carro. “Olha quem está aqui!”, diz ele, como quem mostra, ao vivo e a cores, algo que, se contado, passaria por mentira. Apresso-me em pedir a ela que não se assuste, pois, até onde posso julgar, estou vivo (embora essa não seja uma opinião inteiramente isenta). E, aliás, era uma bela manhã de sol, dessas em que até mesmo um defunto ─ envolto na claridade do dia ─ perde muito do que pudesse ter de amedrontador.

Sim, sinto-me razoavelmente vivo, tão vivo quando se pode estar neste mundo em que tudo é tão incerto e inconstante. O casal então me informa que minha viagem para o Além ─ de onde ninguém volta, ou se volta já é outra pessoa ─ é do conhecimento de muitos e já foi comunicada até a filha deles, minha ex-aluna, que hoje mora nos Estados Unidos. Ou seja, minha morte tornara-se assunto internacional. Grande glória!

Não é a primeira vez que me acontece. Há alguns anos faleceu um xará e foi a mesma confusão. O escritor Mark Twain, ao saber que o haviam dado por falecido, comentou “A notícia de minha morte foi um tanto exagerada”.  No meu caso, também. Mas fiquei pensando que um dia (que esteja longe!) ela será verdadeira. E aí não haverá nenhum exagero em dizer que já não sou mais, pois então serei quando muito uma lembrança, que também não demorará a se desfazer na poeira do tempo. E, no entanto, só então serei eterno, como seremos todos, pois permanecerei naqueles para os quais fui um elo, humilde e frágil, na longa caminhada dos homens sobre a Terra.

‘Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”, diz Salomão no Eclesiastes. E acrescenta: “Uma geração vai, e outra vem, mas a terra para sempre permanece”. Quanto mal e quanto erro, quanta dor inútil e quanto inútil desentendimento poderíamos evitar se de vez em quando nos lembrássemos de que somos tão passageiros, menos que uma fagulha na infindável fogueira da vida. Talvez nos sirvam de alerta essas confusões que às vezes acontecem, anunciando a morte de quem ainda ─ e ainda que muito provisoriamente ─ está vivo.

Resta saber o que vem depois. Só existe uma pergunta realmente essencial e é preciso atravessar o umbral para saber a resposta. Bom será se, quando a notícia de nossa morte for verdadeira, já tivermos obtido a resposta, e ela não nos for desfavorável. 

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O exemplo germânico

quarta-feira, 08 de novembro de 2023

É como se eles fossem donos do queijo e nós, dos buracos do queijo

É como se eles fossem donos do queijo e nós, dos buracos do queijo

Como diria Euclydes da Cunha, o brasileiro é antes de tudo um esbanjado. Não precisei de muito estudo ou de refinadas pesquisas para chegar a essa conclusão. Fiz a descoberta num estalo, sem maiores reflexões, apenas observando um grupo de pessoas que se afastava da mesa de um restaurante. A comida deixada nos pratos dava para reabastecer até mesmo quem estivesse há dias sem mastigar nada além da própria saliva. Grande é a fome no mundo e não menor é a quantidade de alimentos jogados fora todos os dias. Mandamos para o lixo pedaços de carne que muita gente gostaria de roer até os ossos. Mas a fome alheia não corrói nosso estômago. Como pilheriou Mario Quintana, “Por pior que seja a situação da China,/ Os nossos calos doem muito mais”. Para ficarmos apenas aqui no pátrio quintal, basta dizer que, de todos os alimentos que o Brasil produz, 10% vão para o lixo. 

Mas não é só com comida. Com a água é a mesma coisa. Deixamos a torneira aberta enquanto cantarolamos aquele antigo samba de carnaval: “As águas vão rolar!”  Nos postos de gasolina há um relógio apressadinho vai marcando o quanto colocamos no tanque e quanto isso nos custará. Nas torneiras não tem relógio nenhum, salvo o hidrômetro, mas esse fica lá fora, na calçada (e o que os olhos não veem o bolso não sente ─ nem a consciência). É como se a água caísse do céu. Bem, é de lá mesmo que ela cai, mas não chega à torneira por um milagre celeste: antes se infiltra na terra, passa por mil processos de limpeza e só depois é que entra em nossas casas, carregada de cloro e de custos.

Com a energia elétrica nos comportamos como se ela fosse de graça como a luz do sol (se é que a luz do sol ainda é de graça). Tem gente que esbanja até remédio: se o médico recomenda uma vitamina, aproveita e compra um laxante, um analgésico e umas pastilhas pra garganta. Uma parte da população se orgulha das tantas roupas que tem guardadas; outra, usa as mesmas duas camisas alternadamente.  Na verdade, é uma só, virada pelo avesso ─ dia sim, dia não.

Mas creio que nem todos os povos são assim. Nos meus tempos de adolescente, ouvi falar de um casal de alemães que bem poderia servir de exemplo aos brasileiros. Creio que nos bastaria imitá-los para, em pouco tempo, reerguer a nossa combalida economia. Eles eram uma demonstração viva da razão pela qual a Alemanha é uma das grandes potências econômicas do mundo.  É como se eles fossem donos do queijo e nós, dos buracos do queijo.

Aquela dupla sabia economizar! Certa vez correu entre os operários que o germânico chefe, criticando o esbanjamento dos seus subordinados brasileiros ─ aos quais limitava a ida ao banheiro, onde eram bem capazes de exagerar no gasto de papel higiênico, sabão e água (sem falar no tempo que ficavam sentados no vaso, pensando num jeito da passar as horas sem trabalhar), pois bem, esse econômico senhor informou, com justo orgulho, que em sua casa um tubo de creme dental rendia por meses. Para isso, era marcada no produto a data em que ele era posto em uso e o dia em que ele poderia ser dado por findo. Se alguém esbanjasse, a família ficava escovando os dentes com dedo (à vontade) e água (com parcimônia), até que o prazo se cumprisse. Contudo, a esposa desse poupador emérito certa vez lastimou que o marido, tão contido em tudo o mais, tivesse o mau hábito de usar o palito uma só vez e jogá-lo fora depois do almoço, quando o recomendável seria guardá-lo para o jantar, usando uma extremidade de cada vez, fazendo-o render o dobro.  “Pra isso é que os palitos têm duas pontas”, sentenciava ela, com a sabedoria de quem sabe o valor da poupança.

Agora que você terminou de ler, feche a torneira e apague a luz.

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Discurso de Formatura

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Homenagem aos 130 anos do Colégio Nossa Senhora das Dores

            O pai brilhava de orgulho ao ver o filho se formando. Na alfabetização é verdade, mas formatura é formatura, tem que ser levada à sério. O garoto pisara pela primeira vez no CNSD há poucos meses, saíra correndo pelo pátio colorido, voara pelo bambuzal sem fim. Quando pousou e recuperou o fôlego, já estava apaixonado pelo colégio. Daí pra frente, o mistério das letras foi rapidamente se desmanchando diante de seus olhos curiosos. Em pouco tempo, lia até placa de trânsito.

Homenagem aos 130 anos do Colégio Nossa Senhora das Dores

            O pai brilhava de orgulho ao ver o filho se formando. Na alfabetização é verdade, mas formatura é formatura, tem que ser levada à sério. O garoto pisara pela primeira vez no CNSD há poucos meses, saíra correndo pelo pátio colorido, voara pelo bambuzal sem fim. Quando pousou e recuperou o fôlego, já estava apaixonado pelo colégio. Daí pra frente, o mistério das letras foi rapidamente se desmanchando diante de seus olhos curiosos. Em pouco tempo, lia até placa de trânsito.

.           O pai estava feliz e orgulhoso. E mais feliz e orgulhoso ficou ao saber que menino fora escolhido orador da turma, com a alta e grave responsabilidade de discursar no dia da formatura. Após digitar cada uma das eloquentes palavras sussurradas pelo filho, recomendou: “Ensaia bem, que no dia vai ficar uma beleza”. Verdade que o orador ouviu o conselho com indiferença e preguiça, mas, quando instado a mais uma pré-estreia familiar, punha-se em posição solene e começava: “Amiguinhos e amiguinhas...”

            Resolvida a parte propriamente literária do grande acontecimento, a parte psicológica passou a merecer maior atenção.  A “tia” alfabetizadora, procurada, respondeu tranquila que o garoto era bem desinibido, e essa tinha sido a principal razão de sua escolha. O pai, porém, usando da cautela, como diria Camões, sugeriu que, a título de ensaio, fossem feitas algumas apresentações em sala, mas estas foram julgadas dispensáveis, uma vez que a preparação em casa ia tão bem.

Ficou então sob a responsabilidade do colégio o ensaio geral. Oportunidade em que o orador saiu-se muito bem, ainda que interrompido uma ou duas vezes por um coleguinha que insistia em gritar que precisava ao banheiro e outro que no dia anterior tinha aprendido a imitar a voz de gato namorando e resolveu mostrar sua nova habilidade exatamente durante o pronunciamento. Mas, exceto por esses pequenos contratempos, inerentes à arte de falar em público, tudo correu bem.

             Sabemos que todo público é um perigo. Um grande ator inglês, estando a interpretar Ricardo I, bradava por um cavalo, com o qual pudesse perseguir Henrique VI, seu adversário: “Meu reino por um cavalo!  Meu reino por um cavalo!” Na plateia, um engraçadinho aproveitou-se da silenciosa emoção do público e perguntou: “Um burro serve?”, fazendo estrondar uma gargalhada que quase impede o elenco de permanecer em cena. Mas Ricardo I, que não sem motivo era chamado Ricardo Coração de Leão, manteve a serenidade e respondeu: “Serve, pode subir”, o que provocou uma gargalhada ainda maior, obrigando o piadista a retirar-se do teatro às carreiras.

            E há os aparteadores, às vezes terríveis. Uma deputada inglesa, Nancy Astor, fazia campanha pelo interior e um cidadão local, tentando insinuar que a candidata nada sabia da vida no campo, interrompeu-a durante um comício, perguntando-lhe quantos dedos tinha um porco. “Homem, tire os sapatos e conte!”, retrucou ela. Mas até essa espirituosa senhora se deu mal quando disse a Winston Churchill que, fosse casada com ele, ela lhe daria veneno. Serenamente, o Primeiro-Ministro retrucou: “Se a senhora fosse minha mulher, eu bebia”. Mas o menino estava preparado. Tinha cada palavra do discurso no fundo da memória e na ponta da língua.

Aí chegou o Dia D, mais planejado do que a invasão da Normandia pelos Aliados. O Teatro Sania Cosmelli ainda não existia, era um auditório com cadeiras rangentes e palco estreito. Nada disso diminuía a fulgor daquele instante. A turma entrou solene, todos compenetrados do momento histórico que estavam vivendo.  Depois de muita palma e muita música, foi anunciada a palavra do orador da turma. Ele veio lá do fundo, trazendo seus sete aninhos até a beirada do palco.

Aquele mar de gente sentada à sua frente, olhares que o espetavam por todos os lados, o microfone mais parecendo uma cobra que vai dar o bote. Finalmente o menino soltou a voz e fez então um dos mais rápidos discursos da loquaz oratória nacional:

            − “Mãe-ê, eu quero ir embora pra casa!!!”

            Aliás, foi aplaudidíssimo.

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Sobre roupas e nudez

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Longe vai o tempo em que as mulheres procuravam camuflar seus encantos

Longe vai o tempo em que as mulheres procuravam camuflar seus encantos

Vocês devem ter visto o espetáculo que deram os rapazes de uma faculdade de São Paulo, durante uma partida de vôlei feminino. Tranquilos como se não existisse pecado do lado de baixo do Equador. E fosse pecado o que estavam fazendo, contavam não merecer castigo, e se houvesse castigo, certamente ele seria tão brando que mais pareceria premiação. Assim pensavam porque, sendo essa a lei entre os grandes da República, e mesmo entre os mais ou menos grandes e os que habilmente se fazem passar por grandes, seria injusto se ela não se aplicasse também a eles, simples estudantes.

O fato é que eles, alunos de medicina, trajando da cintura para baixo apenas inocência e boas intenções, invadiram a quadra, no estado em que a natureza os pôs no mundo. Ainda bem que a televisão inventou aquela faixa preta que sombreia o que não é para ser mostrado. Graças a esse artifício, os expectadores foram poupados da visão das coisas que se sacudiam e balançavam diante das atletas, da plateia e das câmeras. Talvez os rapazes se achassem clones perfeitos do David de Michelangelo, o que lhes daria o direito de exibir suas belezas, mesmo que ninguém estivesse interessado em vê-las (bem, não se pode descartar a possibilidade de que alguém estivesse).

Fizeram a narcisística volta olímpica em abril e só cinco meses depois, quando o vídeo viralizou, autoridades políticas, educacionais e policiais resolveram pensar no assunto. Talvez fiquem pensando até o fim dos tempos, quando com certeza a nudez voltará a ser natural e inocente, como era nos idos de Adão e Eva. Mas, uma vez que estamos, no tempo e no merecimento, muito distantes do Paraíso, a nudez dos rapazes talvez receba alguma punição. Contudo, por si mesma, por mais severa que ela seja, não será capaz de fazer deles profissionais éticos, bons cidadãos, chefes de família exemplares. Nem mesmo acabará com a estupidez dos tais trotes estudantis, que até mortes já causaram. Se a punição vier, ela nada resolverá enquanto não for recuperado o real sentido da palavra respeito e da palavra pudor, esta tão fora de moda e de uso que atualmente só pode ser encontrada no fundo dos dicionários.

Com exceção talvez dos calouros, que a isso podem ter sido obrigados, os demais futuros doutores fizeram o que queriam e não ficaram se justificando depois. Como diria Jânio Quadros “Fiz porque o quis” (“Fi-lo porque qui-lo” é piada antiga, nem mesmo o excêntrico Jânio diria uma besteira dessas). Entraram em quadra exibindo seus talentos, alguns maiores, outros menores, mas todos orgulhosamente erguidos (em sentido figurado, creio eu) diante do público. Diferente é o que acontece com certas mulheres famosas que, sem querer, por distração e mesmo com grande constrangimento, não conseguem evitar que os seios pulem para fora do vestido (decotadíssimo!), ou que a saia (compridíssima!) se abra sem nenhum aviso prévio, geralmente diante dos fãs e dos fotógrafos. Aliás, quanto mais fãs, câmeras e fotógrafos presentes, mais as roupas teimam em mostrar o que lhes cabia encobrir. São senhoras recatadas, mas clientes de costureiros que, embora cobrem muito caro pelas peças exclusivas que fazem, não têm o cuidado de as costurar devidamente. Vai ver, é só para economizar linha.

Sim, longe vai o tempo em que as mulheres procuravam camuflar seus encantos, não a ponto de escondê-los de todo, mas também sem os ficar exibindo a céu aberto. Lembro-me de certa moça que tomou um tombo de bicicleta e, estando de saia, e tendo esta impudicamente se levantado acima dos joelhos... Imagine a cena! Pois se você acha que ela foi consolar o joelho arranhado ou socorrer o dedo quebrado, enganou-se. Sua primeira, imediata e total preocupação foi abaixar a saia, antes que algum cavalheiro a viesse levantar e visse o que ela não queria mostrar. Mas isso foi muito nos antigamente, no tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, tempo em que as roupas femininas ainda não tinham adquirido esse mau costume de se romper nas horas mais impróprias e diante das multidões.

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Ressaca amorosa

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Levou um ano ensaiando a decisão, mas finalmente dera o Grito do Ipiranga: Separação ou Morte!

Levou um ano ensaiando a decisão, mas finalmente dera o Grito do Ipiranga: Separação ou Morte!

Assim que entrou no bar, os amigos começaram a cantar “Até que enfim, até que enfim...” Um deles, mais poético, logo acrescentou uma rima embargada de cerveja: “Aquela baranga largou de mim...”  Tinha sido frequentador diário, mas nos últimos anos raramente aparecia, e quando aparecia tomava um único chope, numa única golada. Não desatava a gravata nem a cara de quem tivesse acabado de espancar uma velhinha indefesa ou estivesse indo tirar o pai da forca. Mas agora retornava e retornava triunfante. Os velhos companheiros já tinham recebido a notícia e, de copos erguidos, o esperavam para comemorar.

Lembravam dos bons tempos, quando ele era o primeiro a chegar ─ às seis e quinze, o tempo necessário para sair do escritório e atravessar a rua. Repetia a saideira oito, nove, dez vezes. E não era só no bar. Nos bailes, nas festas, no futebol de salão, lá estava ele, amigo entre amigos, sempre animado, sempre de bom humor. E sempre tranquilão. Se havia um desentendimento, era o primeiro a chegar com o famoso “deixa disso, vamos na paz, irmão!”

Aí aconteceu Lucinda. Nem o fato de Lucinda ser dentista, ter-lhe arrancado alguns dentes e cobrado uma fortuna para botar outros no lugar impediu que ele se apaixonasse por ela. Enfim, casou. Casou e desapareceu. Se encontrava alguém da antiga turma, cumprimentava-o solenemente como se estivesse beijando a mão do Papa. Se alguém conseguia arrastá-lo até o bar, era aquela pressa, aquela sobriedade. E a todos ele dizia que finalmente estava feliz, que era outro homem, que Lucinda era tudo e muito mais, que nunca mais voltaria à vida antiga.

Porém... Porém... Começaram a correr boatos de que nem tudo eram flores. Que Lucinda o trazia no maior cabresto, que era a rotina casa-trabalho, trabalho-casa, visita à sogra aos sábados, aniversário de sobrinho todo mês, uma latinha de cerveja no almoço de domingo. Enfim, casou e cansou. Levou um ano ensaiando a decisão, mas finalmente dera o Grito do Ipiranga: Separação ou Morte!

Agora, homem livre, reaparecia no bar de antigamente. Um Nelson Goncalves desafinado entoou: “Boemia, aqui me tens de regresso...”, e mais não cantou porque o alarido foi geral. Saudavam o amigo como quem saúda um soldado que volta da guerra, mutilado, mas vivo. Quando o deixaram falar, ele exaltou o valor da liberdade, a alegria do convívio com os amigos, o triunfo da vontade sobre as amarras do matrimônio. Já passava das três da manhã e do enésimo copo quando finalmente admitiu que a separação fora decisão de Lucinda, que ele até tinha pedido para dar mais um tempo, que chegara à humilhação de mandar para ela um buquê de rosas vermelhas. Mas, tudo bem, finalmente estava livre. Livre!

Já de manhãzinha pegou um taxi e foi para a casa dos pais, com quem voltara a morar. Entrou apoiando-se nos móveis, trancou a porta e jogou-se na cama. Só a mãe, já preparando o chá de boldo, ouviu o filho suspirar, a voz saindo espremida pela porta do quarto: “Lucinda, meu amor!”

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Pessoas

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Desde criança estava predestinado a inventar outros eus

Fernando Pessoa foi um poeta extraordinário e a palavra extraordinário não tem aqui nenhum sentido hiperbólico. Ao contrário, é a maneira mais contida que se pode falar de seu gênio tão ... extraordinário. Um talento realmente fora do ordinário, fora do comum, ou, como agora se diz – fora da curva. Mas muito, muito para além dos limites da curva. Um homem cuja efervescência poética era tão intensa que não cabia numa só cabeça, numa só pessoa. Aí ele se viu obrigado a criar heterônimos.

Desde criança estava predestinado a inventar outros eus

Fernando Pessoa foi um poeta extraordinário e a palavra extraordinário não tem aqui nenhum sentido hiperbólico. Ao contrário, é a maneira mais contida que se pode falar de seu gênio tão ... extraordinário. Um talento realmente fora do ordinário, fora do comum, ou, como agora se diz – fora da curva. Mas muito, muito para além dos limites da curva. Um homem cuja efervescência poética era tão intensa que não cabia numa só cabeça, numa só pessoa. Aí ele se viu obrigado a criar heterônimos.

Heterônimo não é pseudônimo. Este consiste apenas em escrever por si mesmo e colocar outro nome. Velho recurso de que se valeram desde Nelson Rodrigues (Suzana Flag), até, vejam vocês, um conspícuo general integrante da Junta militar que governou o país em 1969 e publicava versos sob o pseudônimo pouco militar de Adelita. Não era nenhum Drummond, não era nenhum Bandeira, não era Cecília Meireles, mas nem por isso deixou de entrar para a Academia Brasileira de Letras.

Heterônimo é outro ser, saído das entranhas do seu criador, mas diferente dele e até mesmo oposto a ele. Pessoa não conseguia ser só ele mesmo e deu vida a muitos outros poetas, cada um com história, personalidade, estilo literário, vivências e preocupações não só diferentes, mas às vezes antagônicas entre si e em relação ao próprio autor. Os heterônimos mais conhecidos são Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Mas, já aos seis, ao ganhar da mãe um livro de presente, assinou-o com o nome de Chevalier de Pas. Desde criança estava predestinado a inventar outros eus.

Caieiro “nasceu” em Lisboa, em 16 de abril de1889. De pouca instrução e sem profissão definida, viveu no campo e morreu de tuberculose, em 1915. Sua poesia é marcada pelo bucólico, o simples e sensível diante das coisas do mundo: “Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras .../  Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do mundo”

Ricardo Reis, “nasceu” no Porto, em 19 de setembro de 1887, (quase um ano antes do seu “pai”!) e faleceu em 1936, tendo vivido no Brasil desde 1919. Ao contrário de Caieiro, ‘sua poesia não trata de coisas simples, antes fala da efemeridade da vida e do estoicismo necessário para enfrentá-la. “Para ser grande, sê inteiro: nada/ teu exagera ou exclui. Põe/ quanto és no mínimo que fazes./ Assim em cada lago e lua toda/ brilha porque alta vive”.

O modernista, o futurista, Álvaro de Campos “nasceu”, em Tavira, em 1890. Estudou na Universidade de Glasgow, na Escócia. Era o homem da velocidade, da eletricidade, da vida urbana. Para enfrentar a realidade que o desencantava, tinha uma solução: "E eu vou buscar ao ópio que consola: “Não sou nada./ Nunca serei nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do  mundo” (...) O mundo é para quem o nasce para conquistar/E não para quem sonha que pode conquista-lo, ainda que tenha razão”.

Mas o principal de Fernando Pessoa é ele mesmo, Fernando Antônio Nogueira Pessoa, que abriu os olhos para este mundo em 13 de junho de 1888 e para este mundo os fechou em 30 de dezembro de 1935.  Esse homem, que não cabia em si mesmo e transbordava em tantos outros (criou pelo menos 70 heterônimos), em apenas 47 anos compôs muitos dos mais belos poemas da língua portuguesa (e outros tantos em inglês, língua que dominava perfeitamente, desde sua infância na África do Sul).

E foram escritas em inglês as últimas palavras desse poeta cuja obra elevou a língua portuguesa a uma altura raramente igualada: “I not kow what to-morrow (sic) will bring!” E quem sabe? Mas de uma coisa temos certeza; enquanto houver inteligência e sensibilidade neste mundo, o amanhã sempre trará de volta, e com brilho preservado, a poesia de Fernando Pessoa e dos muitos fernandos pessoas que ele criou: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/ quantos filhos em vão rezaram!/ Quantas noivas  ficaram por casar/ Para que fosses nosso, ó mar!/ Valeu a pena?/ Tudo vale a pena/ se a alma não é pequena”.

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História de um filho amoroso

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Quem não se comove ouvindo esse drama do filho amoroso, mãe doente e hospital distante?

Me para na calçada e por um momento esquece os próprios sofrimentos, para perguntar pela minha família, minha saúde e meus negócios. Mas ele mesmo conclui que estou bem, que basta me olhar para saber que tanto de corpo quanto de mente sou um sujeito saudável e bem de vida. Considero a avaliação assaz generosa, para não dizer exagerada, mas nem por isso deixo de agradecer sinceramente. 

Quem não se comove ouvindo esse drama do filho amoroso, mãe doente e hospital distante?

Me para na calçada e por um momento esquece os próprios sofrimentos, para perguntar pela minha família, minha saúde e meus negócios. Mas ele mesmo conclui que estou bem, que basta me olhar para saber que tanto de corpo quanto de mente sou um sujeito saudável e bem de vida. Considero a avaliação assaz generosa, para não dizer exagerada, mas nem por isso deixo de agradecer sinceramente. 

A história que a seguir ele me conta é sem dúvida das mais comoventes. A mãe, com 91 anos, está no Rio para submeter-se à quinta cirurgia. Apesar da idade e do sofrimento, não se deixa abater. Está lúcida e só demonstra tristeza quando pergunta pelo filho, a quem não vê desde o início dessa nova internação, meses atrás. Ele, por sua vez, conserva a esperança de em breve trazê-la para casa e oferecer-lhe algum conforto, pouco, pois é homem pobre, mas também muito amor, sentimento que nunca deixou de pulsar em seu coração de filho único.

Quem não se comove ouvindo esse drama do filho amoroso, mãe doente e hospital distante? Eu teria me comovido, não fosse o fato de que ele já ter me parado na calçada há menos de um mês e contado a mesmíssima novela, palavra por palavra, gesto por gesto, suspiro por suspiro. Lamento que sua pouca memória o tenha levado a julgar-me um novo freguês, quando na verdade me abordou faz tão pouco tempo. Também é lamentável a falta de variação no seu repertório. Bem que ele poderia, por exemplo, ter me falado da necessidade de comprar remédios para o filho entrevado. Enfim, o homem me passa a imagem de um profissional pouco atento (não me reconhece) e pouco criativo (conta a mesma história). Apesar disso, não deixo de admirar nele certa capacidade de expressão facial, a voz que embarga e retorna de acordo com o andamento da narrativa. Não é nenhum Tony Ramos, mas dá bem para um papel secundário em novela das seis.

E gosto especialmente da sutileza com que ele introduz na fala o que realmente lhe interessa. Confessa então o seu desejo de ir ver a mãe, “Quem sabe pela última vez!”, o que até agora não pôde fazer porque ainda não conseguiu dinheiro suficiente para as passagens. E, num arranco de coragem, me pergunta se eu não poderia lhe emprestar déiz mirrés. Vê-se que não é um ganancioso: contenta-se com os mesmos déiz mirrés da vez anterior, apesar da inflação e do aumento das passagens!

Andasse eu com essa fortuna no bolso, talvez o tivesse socorrido. O problema é que com esse negócio de cartão de crédito, pix, caixas eletrônicos e outras modernidades, quem ainda anda com dinheiro no bolso? Eu não carrego nem déiz mirrés, nem dez contos, nem dez reais. Dez dólares, então, só em sonho!

Desse modo, pela segunda vez despeço o homem de mãos vazias, não sem algum remorso, sobretudo ao lembrar sua preocupação com minha família, minha saúde e meus negócios. E vou embora, desejando que desta vez ele tenha prestado um pouco mais de atenção na minha insignificante pessoa e não me aborde novamente, ou que ao menos varie e aperfeiçoe suas histórias, porque seria muito chato ser parado na rua pela terceira vez para ver o mesmo filme. Se ao menos fosse com Tony Ramos!

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Aos filhos, no Dia dos Pais

terça-feira, 08 de agosto de 2023

Finalmente conseguira superar os obstáculos que por tanto tempo haviam impedido aquele abraço tão longamente planejado. 

Finalmente conseguira superar os obstáculos que por tanto tempo haviam impedido aquele abraço tão longamente planejado. 

Começo confessando que a narrativa original não é minha. Ouso reproduzi-la porque acho que pode ser uma leitura interessante, sobretudo para os filhos no Dia dos Pais, e porque tenho certeza de que seu autor nunca virá a saber da apropriação indébita que fiz do que ele escreveu e que, se por milagre viesse a saber, não me processaria. Afinal, há tantos filmes, livros e músicas sobre Jesus e não há notícia de que ele tenha condenado alguém por assim se aproveitar de sua história. Além do mais, eu li isso há tanto tempo que nem me lembro onde. Vou contar como melhor puder, esperando não distorcer demais o texto original.

Um homem importante, vamos chamá-lo João, ainda jovem se afastara do pai, a quem chamaremos Antônio. Há muitos anos eles não se viam. Um dia, Antônio escreveu ao filho, manifestando o desejo de vê-lo e de reatar a convivência perdida. Convidava-o a visitá-lo, e sugeria que ele levasse a família consigo. João achou boa a ideia e combinou com a esposa que dentro de um mês iriam à cidade onde morava aquele homem tão próximo na genealogia, mas agora distante no espaço e sobretudo no tempo. Na data prevista, contudo, o time da escola onde a filha estudava tinha um jogo importante, e ela era líder de torcida. Não houve jeito senão adiar a viagem.

Nova visita foi planejada, para dois meses depois. Nesse meio tempo, João enviou algum dinheiro para Antônio, que retribuiu mandando pequenos presentes para os netos. Dessa vez a visita estava certa, tudo cuidadosamente previsto. Mas eis que, quando se aproximava o dia da partida, o patrão precisou ausentar-se do trabalho por algum tempo, e João assumiu temporariamente o lugar do chefe na direção da firma.  Assim, pela segunda vez, a viagem não pôde ser realizada.

Também a mulher queria que a visita se concretizasse e escreveu ao sogro, confirmando o reencontro, agora com menos de um mês de espera e enviando-lhe um delicado presente. Ansioso e emocionado, Antônio ficou aguardando a família. Mas antes que ela aparecesse, um ataque cardíaco o atingiu. Informado pelo hospital, João falou por telefone com o pai. "Eu estou bem, filho. Não se apresse". E João não se apressou.

Chegou o Natal, João novamente enviou dinheiro para “o Velho", e recebeu em troca presentes para todos da família. A nora ganhou uma joia que havia pertencido à falecida sogra. Novamente pai e filho se falaram por telefone, e combinaram se reunir em breve. Mas sempre algum acontecimento inesperado e importante para João e sua família impedia que o encontro se realizasse: uma cirurgia da esposa, a celebração do Dia das Mães, o frio excessivo.

Os meses foram passando e sempre os imprevistos acontecendo. Até que um dia João realizou a viagem, embora sozinho e às pressas. Finalmente conseguira superar os obstáculos que por tanto tempo haviam impedido aquele abraço tão longamente planejado. 

E verdadeiramente tanto se apressou que chegou ainda a tempo de assistir ao sepultamento do pai.

"Por que eu não vim antes?", se perguntava chorando. Mas ele, melhor do que ninguém, sabia a resposta.

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Qual a sua graça?

terça-feira, 25 de julho de 2023

Em 1984, o Instituto Félix Pacheco registrava a existência de quatro Placidina Maria de Jesus e duas Minervina de Silva Lima

Em 1984, o Instituto Félix Pacheco registrava a existência de quatro Placidina Maria de Jesus e duas Minervina de Silva Lima

Eu leio tudo que me cai nas mãos, até bula de remédio, que é uma das coisas mais perigosas que um ser humano pode ler (desconfio que bula de remédio mata “mais que bala de revórver,” como diria Adoniran Barbosa). Tenho, um predecessor ilustre: Dom Quixote de La Mancha, que, às tantas de sua sábia loucura, declarou: “Eu sou amigo de ler até os papéis esfarrapados da rua”. Foi levado por esse antigo vício que li “A graça de cada um - nomes e sobrenomes do mundo inteiro”, de Alberto Stoeckicht, editado em 1984. Não que esse tenha literalmente caído em minhas mãos, ou que eu o tenha encontrado esfarrapado na rua. Na verdade, apanhei-o numa dessas bancas em que pessoas deixam livros para serem levados por quem se interessar.  Antigamente, quando se queria saber o nome de alguém, perguntava-se: “Qual a sua graça?” A pergunta saiu de moda, mas a graça do trocadilho do título despertou meu interesse.

Então, é com base no livro de Stoeckicht que vou levar essa conversa adiante. Ele explica, por exemplo, que originariamente cada pessoa tinha só um nome, se tanto. João era João e estava resolvido, ninguém o confundia com outra pessoa. À medida que a sociedade foi ficando mais complexa, maiores os agrupamentos humanos, começou a existir mais de um João no mesmo local. Surgiu a necessidade de distinguir um João do outro. E aí vieram os sobrenomes, geralmente pelo acréscimo do nome do pai, ou de uma partícula que significasse “filho de”. É o caso de SON inglês (Dickson, Jackson), de EZ espanhol (Perez, Ramirez) e do ES português (Fernandes, Rodrigues).

Mas isso ainda não resolvia completamente a questão. Nos Estados Unidos, por exemplo, é dobrar uma esquina e dar de cara com Smith, Williams, Johnson, Taylor ou Miller. Para distinguir um John Taylor de outro, surgiu o nome do meio. João Luís Oliveira é um, João Antônio Oliveira é outro. Mas a homonímia persiste. Segundo Stoeckicht, mesmo nomes excêntricos às vezes se repetem. Em 1984, o Instituto Félix Pacheco registrava a existência de quatro Placidina Maria de Jesus e duas Minervina de Silva Lima. O então ministro Hélio Beltrão fez um levantamento e concluiu que, entre os dez nomes mais comuns entre nós, nove terminavam em Silva, o que o levou a concluir que nosso país deveria chamar-se Brasil da Silva.

E a homonímia continuou causando problemas. Tem até casos de pessoas enterradas por engano, como aconteceu com dois Carlos Alberto Ferreira, que deram entrada no IML do Rio em dias seguidos. Um era branco e outro, preto; um morto por afogamento; outro, por choque elétrico; um tinha 19 anos e o outro, 13. O branco já tinha sido reconhecido pela mãe (que depois se justificou: “Me disseram que uma pessoa que morre carbonizada fica preta”). Nada disso impediu que um fosse levado no lugar do outro.

O livro fala da origem e significação de nomes em diversas línguas, de nomes que se originam de profissões (Ferreira), de animais (Coelho), de pontos geográficos (Lombardo), de pessoas famosas do passado (Washington), de referências religiosas (dos Anjos). Não faltam excentricidades, como o do pai que insistiu em batizar o filho como Caule, explicando que essa tinha sido a melhor opção entre os outros nomes que lhe haviam ocorrido, ou seja: Jungo, Prisma e U Surian. Também não faltam coisas que são quase um xingamento (Abrilina Caçapava), ou são puramente escatológicos: (Constipation, Merdine, Urine). Sem falar nas invencionices brasileiras (Outhydes, Onovercina).

E mais não direi, porque o livro tem 125 páginas, eu pouco mais de uma lauda. Por outro lado, não convém abusar da paciência do leitor, que talvez para conseguir chegar até aqui tenha sido obrigado a xingar todos os nomes feios que conhece. Aí não tem mais graça!

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Histórias dos outros

terça-feira, 11 de julho de 2023

“Pior do que isso eu não sei fazer!”

“Pior do que isso eu não sei fazer!”

Uma é a do escritor Otto Lara Rezende. Estava ele datilografando sua matéria para o jornal, quando um contínuo entrou na sala. Ao ver que Otto não estava copiando, mas tirando as palavras da própria cabeça, o rapaz exclamou admirado: “O senhor tem redação própria?!” Tanto Otto era capaz de redação própria que entre seus admiradores estava Nélson Rodrigues, que até o transformava em título ou personagem de suas obras, como em “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária”. Às vezes Otto ficava tão chateado com as “homenagens” que confessou ter vacilado entre o homicídio e a indiferença.  “Mas como o homicídio é punido pelo código penal, optei pela indiferença”, declarou. Apesar desses desentendimentos, foram amigos e mútuos admiradores até o fim da vida.

A outra é contada por Álvaro Ottoni de Menezes, autor de sucessos da literatura infantojuvenil, como “A árvore que fugiu do quintal”. Álvaro era o redator em algum órgão do governo, no qual trabalhava também Vicente, flamenguista doente e semianalfabeto por nascimento e formação, para quem, falar “a gente somos” era o fino do português. Pela cara com que Vicente chegava na repartição, era possível saber o resultado do jogo do Flamengo no dia anterior.

Após um domingo em que o rubro-negro goleou o adversário, assim que Vicente chegou com a bandeja de café, Álvaro, querendo fazer humor às custas do colega, perguntou: “E aí, Vicente, o pessoal gostaram do jogo?” Vicente fez a maior cara de espanto e retrucou: “Me admiro o senhor, um homem de estudo, que tem redação própria, que escreve documentos, falar o “o pessoal gostaram, professor!” Álvaro quase caiu da cadeira, ao ver a desastrosa consequência de sua brincadeira. Muito envergonhado, já ia pedir desculpas, quando Vicente acrescentou: “O pessoal não gostaram, professor. O pessoal adoraram!”

O terceiro caso atribui-se a Antônio Maria, cronista e compositor, autor entre outras belezas de “Manhã de Carnaval”. Encarregado de escrever uma notícia para o jornal, entregou seu texto, que foi recusado sobre o argumento de que era muito sofisticado para o leitor comum. Pediram-lhe que simplificasse a redação. Antônio Maria fez uma segunda tentativa, mais uma vez considerada muito difícil. Ele então voltou com uma terceira versão, jogou-a sobre a mesa e declarou: “Pior do que isso eu não sei fazer!”

Ter redação própria, eis uma raridade, porque não se trata apenas de não copiar, mas de evitar escrever o que já tenha sido escrito milhões de vezes, ainda que por outras palavras. Li certa vez a diferença entre texto com autor e sem leitor e, ao contrário, texto com leitor e sem autor.

O primeiro é aquele que, por sua originalidade, novidade e às vezes complexidade, exige do leitor algum esforço de compreensão e aí, preguiçosos que somos, preferimos não ler. Ou seja: saiu de uma cabeça pensante, mas pouca gente se dispõe a pensar para entendê-lo. O segundo, ao contrário, não passa de um apanhado de ideias que estão soltas no ar, que de alguma forma todo mundo já leu ou ouviu, e que o escritor alinhava sem gastar muita massa cinzenta, e que por isso mesmo pouco ou nenhum esforço mental exige para ser assimilado. Assim se explica o porquê de muitas obras de grande valor serem evitadas, e o sucesso de tanto romance medíocre, de tanta poesia de má qualidade, de tanta música vulgar.

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