Blog de roberiocanto_18846

Chuvas, raios e trovoadas

terça-feira, 06 de fevereiro de 2024

Os incrédulos dirão que ramos e preces não fazem o milagre de desviar raios e tempestades

            Acredito que vocês, tanto quanto eu, ficaram preocupados com as chuvas que desabaram recentemente sobre nossa cidade. A gente começa logo a pensar nas pessoas que moram à beira dos rios, ao pé dos morros, gente que leva a vida aos trancos e barrancos, barracos e temporais.

Os incrédulos dirão que ramos e preces não fazem o milagre de desviar raios e tempestades

            Acredito que vocês, tanto quanto eu, ficaram preocupados com as chuvas que desabaram recentemente sobre nossa cidade. A gente começa logo a pensar nas pessoas que moram à beira dos rios, ao pé dos morros, gente que leva a vida aos trancos e barrancos, barracos e temporais.

            Tanta água me fez lembrar... Quando nasci, um anjo torto, desses que vivem nas sombras, como diria Drummond, me salvou das chuvas exageradas que de repente caíram sobre nossa casa. Morávamos na base do morro onde então se erguia orgulhoso o colégio da Fundação Getúlio Vargas. Do outro lado, bem acima do nível da rua, ficava a Estação de Cargas da Leopoldina Railway. Quando a enxurrada vinda lá de cima entrou pela nossa janela, junto com ela veio o tal anjo, disfarçado de funcionário da ferrovia, e me levou nos ombros para o prédio da estação. E lá fui eu, parecendo (que Deus me perdoe mais esse pecado), jesuscristinho nos ombros de São Cristóvão.

Das trovoadas perdi o medo ainda criança, uma vez que meus avós me explicaram que tudo não passava de arrumação que estavam fazendo no céu. De fato, sendo o céu tão grande, grandes deviam ser os móveis de lá e, portanto, não havia como arrastá-los sem fazer muito barulho. Explicações claras, lógicas e científicas como essa têm a vantagem de acabar para sempre com medos infundados.

            Quanto aos raios, não sei o que dizer, graças a Deus, é nula a minha experiência a respeito. Antigamente, quando se estava com muita raiva de alguém, dizia-se "raios o partam!", praga tão arrasadora que nunca atingia o alvo, mais fácil era morrerem praguejador e praguejado de morte natural, antes mesmo que um mísero raio caísse perto deles.

            Contra todos esses arroubos da natureza bem protegida ficava a casa de meus avós. Rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria era certeza de que nada de mau nos atingiria.  Também ajudava bastante um ramo benzido na Semana Santa e colocado atrás da porta da cozinha. Os incrédulos dirão que ramos e preces não fazem o milagre de desviar raios e tempestades. Talvez não entendam que o milagre não consistia em desviar raios e tempestades, e sim em nos fazer ficar tranquilos com o que estava acontecendo lá fora e ir cuidar de outra coisa, enquanto a água e o vento brigavam com as árvores do quintal e faziam barulho no telhado.

            Espero que as chuvas não voltem com tanta intensidade e que, se voltarem, não tragam estragos, prejuízos e lágrimas. Por via das dúvidas, melhor colocarmos um ramo bento atrás da porta, rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria. Sempre dá certo. Falo por experiência própria.

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A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.

Grandes obras

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Algumas referências pouco elogiosas ao prefeito, à sua família, e especialmente à senhora sua mãe

Contrariando o ditado popular, Machado diz em um de seus livros que a ocasião não faz o ladrão, o ladrão nasce feito, a ocasião apenas lhe dá a oportunidade.  A frase não é bem assim, nem bem Assis. Afinal, reproduzir o que ele escreveu é só estragar o que já nasceu perfeito. Mas no momento não estou com disposição para folhear livros à procura de uma frase. O sentido é esse mesmo e está bem claro, acho eu.

Algumas referências pouco elogiosas ao prefeito, à sua família, e especialmente à senhora sua mãe

Contrariando o ditado popular, Machado diz em um de seus livros que a ocasião não faz o ladrão, o ladrão nasce feito, a ocasião apenas lhe dá a oportunidade.  A frase não é bem assim, nem bem Assis. Afinal, reproduzir o que ele escreveu é só estragar o que já nasceu perfeito. Mas no momento não estou com disposição para folhear livros à procura de uma frase. O sentido é esse mesmo e está bem claro, acho eu.

Estou dizendo isso para esclarecer que não sou dos que pensam que todo político, ao assumir um cargo, ou ao menos uma brechinha no Poder, automaticamente se torna desonesto. A ideia generalizada é de que são demais as facilidades e excessivas as leis que os protegem. Então, não haveria como resistir à tentação de retirar ao menos uma lasquinha do dinheiro do povo. Mas não é a ocasião que faz o ladrão. O ladrão é que faz a ocasião.  Além disso, como escreveu Geraldo França Lima, “Povo é um conjunto de ninguém”. Portanto, a quem cabe reclamar quando o bem público vira fortuna particular?

Toda generalização é perigosa e, sem dúvida, há muitos políticos honestos. Pobres de nós se não fossem eles, aí mesmo é que as ratazanas não deixavam nem o farelo do queijo. E é já de saída isentando aqueles que exercem honradamente seus cargos que ouso contar a história seguinte. Não vou dizer o nome da cidade, nem dos personagens. Afinal, não estou aqui para levar um tiro só para satisfazer a curiosidade dos leitores.

Pois bem, num canto qualquer das terras fluminenses, o prefeito mandou construir uma creche. Ação louvável, sobretudo por se tratar de uma localidade humilde e afastada do centro. No centro, sabe como é, todo mundo quer se meter em tudo. Muito diferente é numa ruazinha poeirenta, lá onde Judas perdeu a segunda bota. Bem felizes devem ter ficado aquelas mães, tendo finalmente um lugar para deixar os filhos por algumas horas. Só assim elas poderiam descansar ─ cozinhando, lavando, varrendo, esfregando, passando roupa, dando banho nas que ficaram em casa, cuidando da mãe velhinha. E, nos momentos de folga, ajudando a vizinha doente. Quer dizer, com a creche elas passariam a levar uma vida de madame, com tempo até para tomar banho (quando tivesse água).

Mas o prefeito, como se já não tivesse realizado bastante ao dotar o lugarejo de uma creche (que, conforme as contas apresentadas, custou uma fortuna aos cofres públicos), resolveu reformá-la pouco tempo depois. Tão digna de nota era essa realização municipal que uma repórter resolveu ir conhecê-la e mostrá-la para todo o Brasil. Só um pequeno obstáculo impediu que a histórica reportagem fosse ao ar: a creche não existia. Como assim não existia? Não existia, ué! Nunca foi construída. E mais: até o momento da reportagem, era desconhecido o local (banco ou bolso) onde se encontrava o dinheiro gasto na construção e na reforma desse nada.

No endereço, só um terreno baldio. Entrevistados, os moradores afirmaram que a única creche de que tinham notícia ficava a 8 km. Houve alguma revolta e, lamento dizer, até algumas referências pouco elogiosas ao prefeito, à sua família, e especialmente à senhora sua mãe. No entanto, não deixa de ser louvável a preocupação desse burgomestre que, tendo feito uma obra tão útil, pouco depois se preocupou em reformá-la. Que o imóvel não exista na vida real, isso não o faz menos merecedor dos cuidados do Poder Público. Ele existe na boa intenção do prefeito, no Plano de Governo, nos registros do município. Para que mais do que isso? Esse povo também é muito exigente, e esses repórteres muito fofoqueiros! 

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A clareza da fala brasileira

terça-feira, 05 de dezembro de 2023

A gente é incelente neste mundo, professor

A gente é incelente neste mundo, professor

É bem conhecido por nós, brasileiros, o estereótipo do texano como um sujeito grandão, de camisa estampada, que fala alto e se acha mais macho que todo mundo. Se eles soubessem que é isso que pensamos deles, talvez ficassem zangados e, conforme o mesmo estereótipo, um texano zangado pode trazer grandes danos para a integridade física do seu interlocutor. Mas a culpa não é nossa, é dos filmes americanos, principalmente dos faroestes, nos quais o herói enfrenta sozinho uma quadrilha de vinte bandidos, mata todos eles, e nem por isso sua roupa se rasga ou seu cabelo se despenteia.

Tem até uma piada, mais antiga do que a Sé de Braga, cujo prédio é de 1070. Pois bem, o texano mal desembarcou no Galeão e foi botando banca: “Na minha terra todo mundo é muito macho!” O nosso patrício modestamente retrucou: “Aqui metade é homem, metade é mulher, e funciona muito bem”. E funciona mesmo. Se os americanos têm maneira melhor de lidar com esse assunto, podem ficar com ela.

Cada povo fala e vive à sua moda, e o que é poesia em um lugar é grosseria no outro. Se não me engano foi o multi-instrumentista Egberto Gismonti que contou como o comportamento dos japoneses durante um concerto o deixou surpreso.  Além do som dos instrumentos, só o que se ouvia no auditório era um silêncio de pedra. Ninguém respirava. Sabendo da alta qualidade de sua obra, Gismonti certamente contava com aplausos ao fim de cada peça. Nada disso. A plateia inteira se levantava, curvava-se silenciosamente diante do músico e voltava a sentar-se (em silêncio). No Brasil, são comuns os aplausos ─ quando não assobios e gritos ─ mesmo em meio à apresentação.

Outro dia me enviaram uma série de frases que só brasileiro entende. Na verdade, é difícil explicar a quem não conhece português que “pois sim” é negativa e “pois não” é afirmativa. Se um estrangeiro fala com uma de nossas garotas que vai beijá-la, e ela responde “pois sim!”, o mais provável é que ele receba um tapa na cara no lugar do beijo que esperava (se bem que nem todas as garotas brasileiras são assim tão recatadas). Mas o fato é que nosso idioma tem suas maluquices. “A luz dormiu acessa”, “Escuta só pra você ver”, “Essa rua vai pra onde?”, “Tem, mas acabou”, “Tô esperando o sol esfriar”, “Não vi nem cheiro”, e “Fiquei preso do lado de fora” são pérolas do português brasileiro.

Essas são contribuições anônimas, mas algumas têm autoria reconhecida, ou pelo menos alguém a quem elas são atribuídas (atualmente nunca se sabe. Gabriel Garcia Márquez disse que preferia morrer a ser autor de textos que atribuíam a ele na internet). Um diretor de futebol paulista, tido como homem de poucas letras, ficou famoso pelas frases que dizia (ou diziam que ele dizia), as quais, embora sem pé nem cabeça, tinham uma lógica irrefutável. “Esses jornalistas que hoje me criticam um dia escreverão minha autobiografia”, era uma delas. Para dizer que um bom jogador devia sair-se bem tanto na grama seca quanto molhada, teria declarado que um bom atleta precisava ser como pato: “aquático e gramático”. Sensato e experiente, reconhecia: “O difícil, como vocês sabem, não é fácil”. E mais esta, que é um primor de sabedoria e clareza: “Se entra na chuva é pra se queimar”. Encerremos com a que me disse um pedreiro que trabalhou em minha casa: “A gente é incelente neste mundo, professor”. Não entendi nada, mas estou de pleno acordo.

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Alarme falso

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Uma lembrança, que também não demorará a se desfazer na poeira do tempo

Uma lembrança, que também não demorará a se desfazer na poeira do tempo

Estou caminhando quando ouço uma voz que, um tanto tensa, repete duas ou três vezes o meu nome. Volto-me e me deparo com um antigo conhecido que, ao se aproximar de mim, declara estar muito surpreso, mais do que muito surpreso, grandemente espantado por me ver. Não entendo a razão de tanto alvoroço, uma vez que as nossas ruas já estão carecas e esburacadas de tanto que passo por elas.  Mais do que por ter sido professor por longos anos e mais do que por escrever há tanto tempo para jornal, bater rua é o que me faz conhecido. Não popular e nada famoso, mas ao menos muito visto.

Em seguida meu conhecido esclarece por que encontrar figura tão batida na cidade ainda pode causar admiração. “Você nem acredita! Duas pessoas já me disseram que você tinha morrido!” E imediatamente me pede que o acompanhe até o outro lado da rua, onde sua mulher o espera dentro do carro. “Olha quem está aqui!”, diz ele, como quem mostra, ao vivo e a cores, algo que, se contado, passaria por mentira. Apresso-me em pedir a ela que não se assuste, pois, até onde posso julgar, estou vivo (embora essa não seja uma opinião inteiramente isenta). E, aliás, era uma bela manhã de sol, dessas em que até mesmo um defunto ─ envolto na claridade do dia ─ perde muito do que pudesse ter de amedrontador.

Sim, sinto-me razoavelmente vivo, tão vivo quando se pode estar neste mundo em que tudo é tão incerto e inconstante. O casal então me informa que minha viagem para o Além ─ de onde ninguém volta, ou se volta já é outra pessoa ─ é do conhecimento de muitos e já foi comunicada até a filha deles, minha ex-aluna, que hoje mora nos Estados Unidos. Ou seja, minha morte tornara-se assunto internacional. Grande glória!

Não é a primeira vez que me acontece. Há alguns anos faleceu um xará e foi a mesma confusão. O escritor Mark Twain, ao saber que o haviam dado por falecido, comentou “A notícia de minha morte foi um tanto exagerada”.  No meu caso, também. Mas fiquei pensando que um dia (que esteja longe!) ela será verdadeira. E aí não haverá nenhum exagero em dizer que já não sou mais, pois então serei quando muito uma lembrança, que também não demorará a se desfazer na poeira do tempo. E, no entanto, só então serei eterno, como seremos todos, pois permanecerei naqueles para os quais fui um elo, humilde e frágil, na longa caminhada dos homens sobre a Terra.

‘Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”, diz Salomão no Eclesiastes. E acrescenta: “Uma geração vai, e outra vem, mas a terra para sempre permanece”. Quanto mal e quanto erro, quanta dor inútil e quanto inútil desentendimento poderíamos evitar se de vez em quando nos lembrássemos de que somos tão passageiros, menos que uma fagulha na infindável fogueira da vida. Talvez nos sirvam de alerta essas confusões que às vezes acontecem, anunciando a morte de quem ainda ─ e ainda que muito provisoriamente ─ está vivo.

Resta saber o que vem depois. Só existe uma pergunta realmente essencial e é preciso atravessar o umbral para saber a resposta. Bom será se, quando a notícia de nossa morte for verdadeira, já tivermos obtido a resposta, e ela não nos for desfavorável. 

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O exemplo germânico

quarta-feira, 08 de novembro de 2023

É como se eles fossem donos do queijo e nós, dos buracos do queijo

É como se eles fossem donos do queijo e nós, dos buracos do queijo

Como diria Euclydes da Cunha, o brasileiro é antes de tudo um esbanjado. Não precisei de muito estudo ou de refinadas pesquisas para chegar a essa conclusão. Fiz a descoberta num estalo, sem maiores reflexões, apenas observando um grupo de pessoas que se afastava da mesa de um restaurante. A comida deixada nos pratos dava para reabastecer até mesmo quem estivesse há dias sem mastigar nada além da própria saliva. Grande é a fome no mundo e não menor é a quantidade de alimentos jogados fora todos os dias. Mandamos para o lixo pedaços de carne que muita gente gostaria de roer até os ossos. Mas a fome alheia não corrói nosso estômago. Como pilheriou Mario Quintana, “Por pior que seja a situação da China,/ Os nossos calos doem muito mais”. Para ficarmos apenas aqui no pátrio quintal, basta dizer que, de todos os alimentos que o Brasil produz, 10% vão para o lixo. 

Mas não é só com comida. Com a água é a mesma coisa. Deixamos a torneira aberta enquanto cantarolamos aquele antigo samba de carnaval: “As águas vão rolar!”  Nos postos de gasolina há um relógio apressadinho vai marcando o quanto colocamos no tanque e quanto isso nos custará. Nas torneiras não tem relógio nenhum, salvo o hidrômetro, mas esse fica lá fora, na calçada (e o que os olhos não veem o bolso não sente ─ nem a consciência). É como se a água caísse do céu. Bem, é de lá mesmo que ela cai, mas não chega à torneira por um milagre celeste: antes se infiltra na terra, passa por mil processos de limpeza e só depois é que entra em nossas casas, carregada de cloro e de custos.

Com a energia elétrica nos comportamos como se ela fosse de graça como a luz do sol (se é que a luz do sol ainda é de graça). Tem gente que esbanja até remédio: se o médico recomenda uma vitamina, aproveita e compra um laxante, um analgésico e umas pastilhas pra garganta. Uma parte da população se orgulha das tantas roupas que tem guardadas; outra, usa as mesmas duas camisas alternadamente.  Na verdade, é uma só, virada pelo avesso ─ dia sim, dia não.

Mas creio que nem todos os povos são assim. Nos meus tempos de adolescente, ouvi falar de um casal de alemães que bem poderia servir de exemplo aos brasileiros. Creio que nos bastaria imitá-los para, em pouco tempo, reerguer a nossa combalida economia. Eles eram uma demonstração viva da razão pela qual a Alemanha é uma das grandes potências econômicas do mundo.  É como se eles fossem donos do queijo e nós, dos buracos do queijo.

Aquela dupla sabia economizar! Certa vez correu entre os operários que o germânico chefe, criticando o esbanjamento dos seus subordinados brasileiros ─ aos quais limitava a ida ao banheiro, onde eram bem capazes de exagerar no gasto de papel higiênico, sabão e água (sem falar no tempo que ficavam sentados no vaso, pensando num jeito da passar as horas sem trabalhar), pois bem, esse econômico senhor informou, com justo orgulho, que em sua casa um tubo de creme dental rendia por meses. Para isso, era marcada no produto a data em que ele era posto em uso e o dia em que ele poderia ser dado por findo. Se alguém esbanjasse, a família ficava escovando os dentes com dedo (à vontade) e água (com parcimônia), até que o prazo se cumprisse. Contudo, a esposa desse poupador emérito certa vez lastimou que o marido, tão contido em tudo o mais, tivesse o mau hábito de usar o palito uma só vez e jogá-lo fora depois do almoço, quando o recomendável seria guardá-lo para o jantar, usando uma extremidade de cada vez, fazendo-o render o dobro.  “Pra isso é que os palitos têm duas pontas”, sentenciava ela, com a sabedoria de quem sabe o valor da poupança.

Agora que você terminou de ler, feche a torneira e apague a luz.

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Discurso de Formatura

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Homenagem aos 130 anos do Colégio Nossa Senhora das Dores

            O pai brilhava de orgulho ao ver o filho se formando. Na alfabetização é verdade, mas formatura é formatura, tem que ser levada à sério. O garoto pisara pela primeira vez no CNSD há poucos meses, saíra correndo pelo pátio colorido, voara pelo bambuzal sem fim. Quando pousou e recuperou o fôlego, já estava apaixonado pelo colégio. Daí pra frente, o mistério das letras foi rapidamente se desmanchando diante de seus olhos curiosos. Em pouco tempo, lia até placa de trânsito.

Homenagem aos 130 anos do Colégio Nossa Senhora das Dores

            O pai brilhava de orgulho ao ver o filho se formando. Na alfabetização é verdade, mas formatura é formatura, tem que ser levada à sério. O garoto pisara pela primeira vez no CNSD há poucos meses, saíra correndo pelo pátio colorido, voara pelo bambuzal sem fim. Quando pousou e recuperou o fôlego, já estava apaixonado pelo colégio. Daí pra frente, o mistério das letras foi rapidamente se desmanchando diante de seus olhos curiosos. Em pouco tempo, lia até placa de trânsito.

.           O pai estava feliz e orgulhoso. E mais feliz e orgulhoso ficou ao saber que menino fora escolhido orador da turma, com a alta e grave responsabilidade de discursar no dia da formatura. Após digitar cada uma das eloquentes palavras sussurradas pelo filho, recomendou: “Ensaia bem, que no dia vai ficar uma beleza”. Verdade que o orador ouviu o conselho com indiferença e preguiça, mas, quando instado a mais uma pré-estreia familiar, punha-se em posição solene e começava: “Amiguinhos e amiguinhas...”

            Resolvida a parte propriamente literária do grande acontecimento, a parte psicológica passou a merecer maior atenção.  A “tia” alfabetizadora, procurada, respondeu tranquila que o garoto era bem desinibido, e essa tinha sido a principal razão de sua escolha. O pai, porém, usando da cautela, como diria Camões, sugeriu que, a título de ensaio, fossem feitas algumas apresentações em sala, mas estas foram julgadas dispensáveis, uma vez que a preparação em casa ia tão bem.

Ficou então sob a responsabilidade do colégio o ensaio geral. Oportunidade em que o orador saiu-se muito bem, ainda que interrompido uma ou duas vezes por um coleguinha que insistia em gritar que precisava ao banheiro e outro que no dia anterior tinha aprendido a imitar a voz de gato namorando e resolveu mostrar sua nova habilidade exatamente durante o pronunciamento. Mas, exceto por esses pequenos contratempos, inerentes à arte de falar em público, tudo correu bem.

             Sabemos que todo público é um perigo. Um grande ator inglês, estando a interpretar Ricardo I, bradava por um cavalo, com o qual pudesse perseguir Henrique VI, seu adversário: “Meu reino por um cavalo!  Meu reino por um cavalo!” Na plateia, um engraçadinho aproveitou-se da silenciosa emoção do público e perguntou: “Um burro serve?”, fazendo estrondar uma gargalhada que quase impede o elenco de permanecer em cena. Mas Ricardo I, que não sem motivo era chamado Ricardo Coração de Leão, manteve a serenidade e respondeu: “Serve, pode subir”, o que provocou uma gargalhada ainda maior, obrigando o piadista a retirar-se do teatro às carreiras.

            E há os aparteadores, às vezes terríveis. Uma deputada inglesa, Nancy Astor, fazia campanha pelo interior e um cidadão local, tentando insinuar que a candidata nada sabia da vida no campo, interrompeu-a durante um comício, perguntando-lhe quantos dedos tinha um porco. “Homem, tire os sapatos e conte!”, retrucou ela. Mas até essa espirituosa senhora se deu mal quando disse a Winston Churchill que, fosse casada com ele, ela lhe daria veneno. Serenamente, o Primeiro-Ministro retrucou: “Se a senhora fosse minha mulher, eu bebia”. Mas o menino estava preparado. Tinha cada palavra do discurso no fundo da memória e na ponta da língua.

Aí chegou o Dia D, mais planejado do que a invasão da Normandia pelos Aliados. O Teatro Sania Cosmelli ainda não existia, era um auditório com cadeiras rangentes e palco estreito. Nada disso diminuía a fulgor daquele instante. A turma entrou solene, todos compenetrados do momento histórico que estavam vivendo.  Depois de muita palma e muita música, foi anunciada a palavra do orador da turma. Ele veio lá do fundo, trazendo seus sete aninhos até a beirada do palco.

Aquele mar de gente sentada à sua frente, olhares que o espetavam por todos os lados, o microfone mais parecendo uma cobra que vai dar o bote. Finalmente o menino soltou a voz e fez então um dos mais rápidos discursos da loquaz oratória nacional:

            − “Mãe-ê, eu quero ir embora pra casa!!!”

            Aliás, foi aplaudidíssimo.

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Sobre roupas e nudez

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Longe vai o tempo em que as mulheres procuravam camuflar seus encantos

Longe vai o tempo em que as mulheres procuravam camuflar seus encantos

Vocês devem ter visto o espetáculo que deram os rapazes de uma faculdade de São Paulo, durante uma partida de vôlei feminino. Tranquilos como se não existisse pecado do lado de baixo do Equador. E fosse pecado o que estavam fazendo, contavam não merecer castigo, e se houvesse castigo, certamente ele seria tão brando que mais pareceria premiação. Assim pensavam porque, sendo essa a lei entre os grandes da República, e mesmo entre os mais ou menos grandes e os que habilmente se fazem passar por grandes, seria injusto se ela não se aplicasse também a eles, simples estudantes.

O fato é que eles, alunos de medicina, trajando da cintura para baixo apenas inocência e boas intenções, invadiram a quadra, no estado em que a natureza os pôs no mundo. Ainda bem que a televisão inventou aquela faixa preta que sombreia o que não é para ser mostrado. Graças a esse artifício, os expectadores foram poupados da visão das coisas que se sacudiam e balançavam diante das atletas, da plateia e das câmeras. Talvez os rapazes se achassem clones perfeitos do David de Michelangelo, o que lhes daria o direito de exibir suas belezas, mesmo que ninguém estivesse interessado em vê-las (bem, não se pode descartar a possibilidade de que alguém estivesse).

Fizeram a narcisística volta olímpica em abril e só cinco meses depois, quando o vídeo viralizou, autoridades políticas, educacionais e policiais resolveram pensar no assunto. Talvez fiquem pensando até o fim dos tempos, quando com certeza a nudez voltará a ser natural e inocente, como era nos idos de Adão e Eva. Mas, uma vez que estamos, no tempo e no merecimento, muito distantes do Paraíso, a nudez dos rapazes talvez receba alguma punição. Contudo, por si mesma, por mais severa que ela seja, não será capaz de fazer deles profissionais éticos, bons cidadãos, chefes de família exemplares. Nem mesmo acabará com a estupidez dos tais trotes estudantis, que até mortes já causaram. Se a punição vier, ela nada resolverá enquanto não for recuperado o real sentido da palavra respeito e da palavra pudor, esta tão fora de moda e de uso que atualmente só pode ser encontrada no fundo dos dicionários.

Com exceção talvez dos calouros, que a isso podem ter sido obrigados, os demais futuros doutores fizeram o que queriam e não ficaram se justificando depois. Como diria Jânio Quadros “Fiz porque o quis” (“Fi-lo porque qui-lo” é piada antiga, nem mesmo o excêntrico Jânio diria uma besteira dessas). Entraram em quadra exibindo seus talentos, alguns maiores, outros menores, mas todos orgulhosamente erguidos (em sentido figurado, creio eu) diante do público. Diferente é o que acontece com certas mulheres famosas que, sem querer, por distração e mesmo com grande constrangimento, não conseguem evitar que os seios pulem para fora do vestido (decotadíssimo!), ou que a saia (compridíssima!) se abra sem nenhum aviso prévio, geralmente diante dos fãs e dos fotógrafos. Aliás, quanto mais fãs, câmeras e fotógrafos presentes, mais as roupas teimam em mostrar o que lhes cabia encobrir. São senhoras recatadas, mas clientes de costureiros que, embora cobrem muito caro pelas peças exclusivas que fazem, não têm o cuidado de as costurar devidamente. Vai ver, é só para economizar linha.

Sim, longe vai o tempo em que as mulheres procuravam camuflar seus encantos, não a ponto de escondê-los de todo, mas também sem os ficar exibindo a céu aberto. Lembro-me de certa moça que tomou um tombo de bicicleta e, estando de saia, e tendo esta impudicamente se levantado acima dos joelhos... Imagine a cena! Pois se você acha que ela foi consolar o joelho arranhado ou socorrer o dedo quebrado, enganou-se. Sua primeira, imediata e total preocupação foi abaixar a saia, antes que algum cavalheiro a viesse levantar e visse o que ela não queria mostrar. Mas isso foi muito nos antigamente, no tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, tempo em que as roupas femininas ainda não tinham adquirido esse mau costume de se romper nas horas mais impróprias e diante das multidões.

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Ressaca amorosa

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Levou um ano ensaiando a decisão, mas finalmente dera o Grito do Ipiranga: Separação ou Morte!

Levou um ano ensaiando a decisão, mas finalmente dera o Grito do Ipiranga: Separação ou Morte!

Assim que entrou no bar, os amigos começaram a cantar “Até que enfim, até que enfim...” Um deles, mais poético, logo acrescentou uma rima embargada de cerveja: “Aquela baranga largou de mim...”  Tinha sido frequentador diário, mas nos últimos anos raramente aparecia, e quando aparecia tomava um único chope, numa única golada. Não desatava a gravata nem a cara de quem tivesse acabado de espancar uma velhinha indefesa ou estivesse indo tirar o pai da forca. Mas agora retornava e retornava triunfante. Os velhos companheiros já tinham recebido a notícia e, de copos erguidos, o esperavam para comemorar.

Lembravam dos bons tempos, quando ele era o primeiro a chegar ─ às seis e quinze, o tempo necessário para sair do escritório e atravessar a rua. Repetia a saideira oito, nove, dez vezes. E não era só no bar. Nos bailes, nas festas, no futebol de salão, lá estava ele, amigo entre amigos, sempre animado, sempre de bom humor. E sempre tranquilão. Se havia um desentendimento, era o primeiro a chegar com o famoso “deixa disso, vamos na paz, irmão!”

Aí aconteceu Lucinda. Nem o fato de Lucinda ser dentista, ter-lhe arrancado alguns dentes e cobrado uma fortuna para botar outros no lugar impediu que ele se apaixonasse por ela. Enfim, casou. Casou e desapareceu. Se encontrava alguém da antiga turma, cumprimentava-o solenemente como se estivesse beijando a mão do Papa. Se alguém conseguia arrastá-lo até o bar, era aquela pressa, aquela sobriedade. E a todos ele dizia que finalmente estava feliz, que era outro homem, que Lucinda era tudo e muito mais, que nunca mais voltaria à vida antiga.

Porém... Porém... Começaram a correr boatos de que nem tudo eram flores. Que Lucinda o trazia no maior cabresto, que era a rotina casa-trabalho, trabalho-casa, visita à sogra aos sábados, aniversário de sobrinho todo mês, uma latinha de cerveja no almoço de domingo. Enfim, casou e cansou. Levou um ano ensaiando a decisão, mas finalmente dera o Grito do Ipiranga: Separação ou Morte!

Agora, homem livre, reaparecia no bar de antigamente. Um Nelson Goncalves desafinado entoou: “Boemia, aqui me tens de regresso...”, e mais não cantou porque o alarido foi geral. Saudavam o amigo como quem saúda um soldado que volta da guerra, mutilado, mas vivo. Quando o deixaram falar, ele exaltou o valor da liberdade, a alegria do convívio com os amigos, o triunfo da vontade sobre as amarras do matrimônio. Já passava das três da manhã e do enésimo copo quando finalmente admitiu que a separação fora decisão de Lucinda, que ele até tinha pedido para dar mais um tempo, que chegara à humilhação de mandar para ela um buquê de rosas vermelhas. Mas, tudo bem, finalmente estava livre. Livre!

Já de manhãzinha pegou um taxi e foi para a casa dos pais, com quem voltara a morar. Entrou apoiando-se nos móveis, trancou a porta e jogou-se na cama. Só a mãe, já preparando o chá de boldo, ouviu o filho suspirar, a voz saindo espremida pela porta do quarto: “Lucinda, meu amor!”

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Pessoas

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Desde criança estava predestinado a inventar outros eus

Fernando Pessoa foi um poeta extraordinário e a palavra extraordinário não tem aqui nenhum sentido hiperbólico. Ao contrário, é a maneira mais contida que se pode falar de seu gênio tão ... extraordinário. Um talento realmente fora do ordinário, fora do comum, ou, como agora se diz – fora da curva. Mas muito, muito para além dos limites da curva. Um homem cuja efervescência poética era tão intensa que não cabia numa só cabeça, numa só pessoa. Aí ele se viu obrigado a criar heterônimos.

Desde criança estava predestinado a inventar outros eus

Fernando Pessoa foi um poeta extraordinário e a palavra extraordinário não tem aqui nenhum sentido hiperbólico. Ao contrário, é a maneira mais contida que se pode falar de seu gênio tão ... extraordinário. Um talento realmente fora do ordinário, fora do comum, ou, como agora se diz – fora da curva. Mas muito, muito para além dos limites da curva. Um homem cuja efervescência poética era tão intensa que não cabia numa só cabeça, numa só pessoa. Aí ele se viu obrigado a criar heterônimos.

Heterônimo não é pseudônimo. Este consiste apenas em escrever por si mesmo e colocar outro nome. Velho recurso de que se valeram desde Nelson Rodrigues (Suzana Flag), até, vejam vocês, um conspícuo general integrante da Junta militar que governou o país em 1969 e publicava versos sob o pseudônimo pouco militar de Adelita. Não era nenhum Drummond, não era nenhum Bandeira, não era Cecília Meireles, mas nem por isso deixou de entrar para a Academia Brasileira de Letras.

Heterônimo é outro ser, saído das entranhas do seu criador, mas diferente dele e até mesmo oposto a ele. Pessoa não conseguia ser só ele mesmo e deu vida a muitos outros poetas, cada um com história, personalidade, estilo literário, vivências e preocupações não só diferentes, mas às vezes antagônicas entre si e em relação ao próprio autor. Os heterônimos mais conhecidos são Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Mas, já aos seis, ao ganhar da mãe um livro de presente, assinou-o com o nome de Chevalier de Pas. Desde criança estava predestinado a inventar outros eus.

Caieiro “nasceu” em Lisboa, em 16 de abril de1889. De pouca instrução e sem profissão definida, viveu no campo e morreu de tuberculose, em 1915. Sua poesia é marcada pelo bucólico, o simples e sensível diante das coisas do mundo: “Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras .../  Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do mundo”

Ricardo Reis, “nasceu” no Porto, em 19 de setembro de 1887, (quase um ano antes do seu “pai”!) e faleceu em 1936, tendo vivido no Brasil desde 1919. Ao contrário de Caieiro, ‘sua poesia não trata de coisas simples, antes fala da efemeridade da vida e do estoicismo necessário para enfrentá-la. “Para ser grande, sê inteiro: nada/ teu exagera ou exclui. Põe/ quanto és no mínimo que fazes./ Assim em cada lago e lua toda/ brilha porque alta vive”.

O modernista, o futurista, Álvaro de Campos “nasceu”, em Tavira, em 1890. Estudou na Universidade de Glasgow, na Escócia. Era o homem da velocidade, da eletricidade, da vida urbana. Para enfrentar a realidade que o desencantava, tinha uma solução: "E eu vou buscar ao ópio que consola: “Não sou nada./ Nunca serei nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do  mundo” (...) O mundo é para quem o nasce para conquistar/E não para quem sonha que pode conquista-lo, ainda que tenha razão”.

Mas o principal de Fernando Pessoa é ele mesmo, Fernando Antônio Nogueira Pessoa, que abriu os olhos para este mundo em 13 de junho de 1888 e para este mundo os fechou em 30 de dezembro de 1935.  Esse homem, que não cabia em si mesmo e transbordava em tantos outros (criou pelo menos 70 heterônimos), em apenas 47 anos compôs muitos dos mais belos poemas da língua portuguesa (e outros tantos em inglês, língua que dominava perfeitamente, desde sua infância na África do Sul).

E foram escritas em inglês as últimas palavras desse poeta cuja obra elevou a língua portuguesa a uma altura raramente igualada: “I not kow what to-morrow (sic) will bring!” E quem sabe? Mas de uma coisa temos certeza; enquanto houver inteligência e sensibilidade neste mundo, o amanhã sempre trará de volta, e com brilho preservado, a poesia de Fernando Pessoa e dos muitos fernandos pessoas que ele criou: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/ quantos filhos em vão rezaram!/ Quantas noivas  ficaram por casar/ Para que fosses nosso, ó mar!/ Valeu a pena?/ Tudo vale a pena/ se a alma não é pequena”.

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História de um filho amoroso

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Quem não se comove ouvindo esse drama do filho amoroso, mãe doente e hospital distante?

Me para na calçada e por um momento esquece os próprios sofrimentos, para perguntar pela minha família, minha saúde e meus negócios. Mas ele mesmo conclui que estou bem, que basta me olhar para saber que tanto de corpo quanto de mente sou um sujeito saudável e bem de vida. Considero a avaliação assaz generosa, para não dizer exagerada, mas nem por isso deixo de agradecer sinceramente. 

Quem não se comove ouvindo esse drama do filho amoroso, mãe doente e hospital distante?

Me para na calçada e por um momento esquece os próprios sofrimentos, para perguntar pela minha família, minha saúde e meus negócios. Mas ele mesmo conclui que estou bem, que basta me olhar para saber que tanto de corpo quanto de mente sou um sujeito saudável e bem de vida. Considero a avaliação assaz generosa, para não dizer exagerada, mas nem por isso deixo de agradecer sinceramente. 

A história que a seguir ele me conta é sem dúvida das mais comoventes. A mãe, com 91 anos, está no Rio para submeter-se à quinta cirurgia. Apesar da idade e do sofrimento, não se deixa abater. Está lúcida e só demonstra tristeza quando pergunta pelo filho, a quem não vê desde o início dessa nova internação, meses atrás. Ele, por sua vez, conserva a esperança de em breve trazê-la para casa e oferecer-lhe algum conforto, pouco, pois é homem pobre, mas também muito amor, sentimento que nunca deixou de pulsar em seu coração de filho único.

Quem não se comove ouvindo esse drama do filho amoroso, mãe doente e hospital distante? Eu teria me comovido, não fosse o fato de que ele já ter me parado na calçada há menos de um mês e contado a mesmíssima novela, palavra por palavra, gesto por gesto, suspiro por suspiro. Lamento que sua pouca memória o tenha levado a julgar-me um novo freguês, quando na verdade me abordou faz tão pouco tempo. Também é lamentável a falta de variação no seu repertório. Bem que ele poderia, por exemplo, ter me falado da necessidade de comprar remédios para o filho entrevado. Enfim, o homem me passa a imagem de um profissional pouco atento (não me reconhece) e pouco criativo (conta a mesma história). Apesar disso, não deixo de admirar nele certa capacidade de expressão facial, a voz que embarga e retorna de acordo com o andamento da narrativa. Não é nenhum Tony Ramos, mas dá bem para um papel secundário em novela das seis.

E gosto especialmente da sutileza com que ele introduz na fala o que realmente lhe interessa. Confessa então o seu desejo de ir ver a mãe, “Quem sabe pela última vez!”, o que até agora não pôde fazer porque ainda não conseguiu dinheiro suficiente para as passagens. E, num arranco de coragem, me pergunta se eu não poderia lhe emprestar déiz mirrés. Vê-se que não é um ganancioso: contenta-se com os mesmos déiz mirrés da vez anterior, apesar da inflação e do aumento das passagens!

Andasse eu com essa fortuna no bolso, talvez o tivesse socorrido. O problema é que com esse negócio de cartão de crédito, pix, caixas eletrônicos e outras modernidades, quem ainda anda com dinheiro no bolso? Eu não carrego nem déiz mirrés, nem dez contos, nem dez reais. Dez dólares, então, só em sonho!

Desse modo, pela segunda vez despeço o homem de mãos vazias, não sem algum remorso, sobretudo ao lembrar sua preocupação com minha família, minha saúde e meus negócios. E vou embora, desejando que desta vez ele tenha prestado um pouco mais de atenção na minha insignificante pessoa e não me aborde novamente, ou que ao menos varie e aperfeiçoe suas histórias, porque seria muito chato ser parado na rua pela terceira vez para ver o mesmo filme. Se ao menos fosse com Tony Ramos!

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