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Animizades

quarta-feira, 07 de agosto de 2024

Pessoas que, embora nos conhecendo, gostam de nós

Pessoas que, embora nos conhecendo, gostam de nós

Pior do que encontrar um inimigo é dar de cara com um ex-amigo, porque este traz consigo, além da inimizade, a lembrança da amizade que acabou. Essa foi a ideia que me ocorreu quando, no labirinto das prateleiras do supermercado, esbarrei com uma pessoa com a qual convivi fraternalmente por alguns anos. Não sei se eu errei, se ele errou, ou se foram as circunstâncias que, no passado, ergueram entre nós uma parede tão concreta que, se um de nós escorregar, bate com a cabeça nela e ganha um galo na testa. Para falar a verdade, eu acho que eu estava com a razão e ele, claro, com a desrazão. Mas está na cara (dele) que ele pensa exatamente o contrário.

Em uma de suas palestras, Leandro Karnal conta uma história (ou será anedota?) sobre Voltaire. O famoso filósofo iluminista já estava nos últimos suspiros, partindo desta para a melhor (embora ele não acreditasse em outra vida e menos ainda em outra vida melhor). Um padre, querendo salvar aquela alma rebelde, insistiu com ele: “Abandona o demônio, renega o diabo!” Voltaire, ateu que era, respondeu: “Padre, eu estou pra morrer. Não é hora de fazer inimigos”.

Pois eu devoto a mais radical inimizade àquele “cujo nome não se diz”. Concordo com Riobaldo: “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta”. Afora isso, procuro me dar bem com todo mundo. Outro dia tive o trabalho de contar as pessoas que viram a cara quando dão o azar de passar por mim. Vai ver que são centenas, mas que eu saiba, declaradas, não foram além dos cinco dedos da mão direita. Depois disso, uma dessas pessoas faleceu, infelizmente antes que tivéssemos fumado o cachimbo da paz ou ao menos tomado em paz um cafezinho. As outras quatro estão aí, e eu peço a Deus que lhes dê vida longa, cheia de saúde e sucesso.

Porque a vida não é mais do que um pequeno jardim no fundo do quintal. Não vale a pena desperdiçar esse espaço, que já é pouco, cultivando ervas daninhas. Rancores e antipatias, raivas e animosidades. Ódio, então, nem se fala, que esse não só estraga o jardim inteiro como envenena quem o plantou.  A triste verdade é que somos mesquinhos demais para amar a todos de todo o coração. Mas não custa reservar ao menos um cantinho do jardim para aquelas pessoas que olham para as nuvens quando passam por nós. Ou mesmo para as que lamentam que já tivéssemos chegado na calçada quando o caminhão passou.

Lembremo-nos de Mandela, que, após décadas nas prisões do apartheid, saiu delas não para vingar, mas para pacificar. Lembremo-nos de Ghandi, que pagou com a vida sua teoria e prática de resistência pacífica, mas libertou a Índia do jugo inglês. E não nos esqueçamos de Teresa de Calcutá e Dulce da Bahia.

O que não falta no mundo é gente do mal, agentes do mal. Gente cheia de ódio, preconceito, fanatismo. Melhor deixá-las no fundo baú do esquecimento e lembrar apenas de quantas pessoas boas existem, daquelas que, embora nos conhecendo, gostam de nós.

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A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.

Outros hawkings

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Os insetos ─ as formigas e as abelhas em particular ─ apresentam exemplos dramáticos de cooperação social que poderiam facilmente fazer corar de vergonha a Assembleia Geral das Nações Unidas - (António R. Damásio, in O erro de Descartes)

Os insetos ─ as formigas e as abelhas em particular ─ apresentam exemplos dramáticos de cooperação social que poderiam facilmente fazer corar de vergonha a Assembleia Geral das Nações Unidas - (António R. Damásio, in O erro de Descartes)

Vocês sabem que o astrofísico inglês Stephen Hawking é um dos maiores gênios da ciência moderna, tendo criado teorias que mudaram a nossa humilde, porém muito melhorada por ele, compreensão do universo. Hawking foi grande não só pela sua inteligência impressionante, mas também por sua capacidade produtiva, mesmo sofrendo de esclerose lateral amiotrófica. Desde os 21 anos, quando descobriu que a fatalidade o atingira, até a morte, aos 76, não se deixou curvar pela doença, embora ela tivesse curvado e torcido tanto o seu corpo. Vale a pena ver o filme “A teoria de tudo”, que conta a história desse homem extraordinário.

Pois bem, uma das mais preocupantes previsões de Hawking é a de que nosso planeta está com os dias contados. Bastantes dias, é verdade, mas ele foi o primeiro a marcar uma data baseada em cálculos e não em palpites. E concluiu que isso acontecerá se os seres humanos ─ isto é, eu, você e todos os demais ­─ continuarem a tratar a Terra como se fosse uma produtora inesgotável de bens e, ao mesmo tempo, um imenso depósito de lixo.

Hawking acreditava que, do jeito que as coisas vão, o planeta suportará nossa presença por mais 600 anos no máximo. Então, tudo acabará, não haverá mais canto de passarinho, nem sorriso de criança. Se o sol e a lua continuarem pendurados no céu, não será para nosso proveito, pois não sobrará ninguém para sentir calor de um ou admirar o brilho da outra. Quando o último de nós sair, nem mesmo terá que apagar a luz: vai ter que sair correndo, e no escuro. Mas, como de tudo resta um lado bom, também não haverá mais guerra, doença, fome, ou preocupação com o fim do mundo.

Uma saída apontada por Hawking seria a descoberta de um lugarzinho que possa nos abrigar neste vasto universo, mas tenho dúvida de que a mudança de endereço seja suficiente para melhorar a situação. Bem pouco nos preocupamos com o que não está perto de nós, com o que não é imediato, com o que não nos pertence. Sofremos mais com nosso resfriado do que com as mortes na Faixa de Gaza. Se levarmos conosco esse egoísmo, essa cegueira, uns poucos séculos e já teremos destruído esse lar futuro, caso ele venha de fato a ser encontrado.

Não é que eu pretenda viver mais 600 anos. Nem por isso deixo de ficar preocupado com o que acontece enquanto estou por aqui. E, embora seja um dos oito bilhões de habitantes que estão consumindo o planeta, fico triste com queimadas no Pantanal, inundações no Rio Grande do Sul, desmatamento no Cerrado, barragens que se rompem, derretimento das calotas polares, vazamento de óleo no oceano, lixo nos rios. E, pairando acima de tudo, o aquecimento global, que faz o mundo parecer um fumante inveterado, que conscientemente envenena a si mesmo.

Nossa esperança é que surjam outros hawkings e que eles finalmente sejam ouvidos. Não adianta pedir que o mundo pare para a gente sair. No momento não há para onde sair. Talvez daqui a 600 anos.

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Duas histórias

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Uma alegre: marido brasileiro

Eu estava andando na praia quando passou um rapaz que, conduzindo um carrinho com alto-falante, vendia CDs de piadas. Ouvi o final de uma delas, deduzi o resto, inventei um pouco e conto-a agora para vocês.

Dizem que se realizou nos Estados Unidos um curso para mulheres, cujo objetivo era torná-las livres do jugo masculino e, portanto, capazes de ver o mundo de outra maneira. Na segunda versão do curso, as diplomadas do ano anterior foram chamadas a dar seus depoimentos.

Uma alegre: marido brasileiro

Eu estava andando na praia quando passou um rapaz que, conduzindo um carrinho com alto-falante, vendia CDs de piadas. Ouvi o final de uma delas, deduzi o resto, inventei um pouco e conto-a agora para vocês.

Dizem que se realizou nos Estados Unidos um curso para mulheres, cujo objetivo era torná-las livres do jugo masculino e, portanto, capazes de ver o mundo de outra maneira. Na segunda versão do curso, as diplomadas do ano anterior foram chamadas a dar seus depoimentos.

O apresentador pediu a opinião da representante da França.

─ Então, Madame Balzac, o curso foi útil para a senhora?

─ Muito útil, vocês nem imaginam! Cheguei em casa e disse: “François, a partir de hoje eu não lavo nem mais uma pecinha de roupa”.

─ E qual foi a reação do seu marido?

─ Olha, no primeiro dia eu não vi nada. No segundo, também não. Mas no terceiro dia ele começou a lavar as meias, as cuecas... Hoje ele é dono da maior rede de lavanderias da França.

─ Muito bem, Madame Balzac! Vamos ouvir agora Mrs. Fitzgerald, representante dos Estados Unidos. Qual foi o resultado do curso para a senhora, Mrs. Fitzgerald?

─ Bom demais, vocês nem imaginam! Cheguei em casa e disse “Bob, a partir de hoje eu não cozinho mais, adeus fogão!”

─ E qual foi a reação do seu marido?

─ Olha, no primeiro dia eu não vi nada. No segundo, também não. Mas no terceiro dia ele começou a fritar um ovo, fazer umas panquecas... Hoje ele é dono da maior rede de restaurantes dos Estados Unidos.

─ Muito bem, Mrs. Fitzgerald! Vamos agora ouvir a representante do Brasil, Dona Hermenegilda, vinda lá do interior da Paraíba. Dona Hermê, qual foi o resultado do curso na vida da senhora?

─ Pois veje, seu moço, cheguei em casa e falei “Severino Raimundo, a partir de hoje não lavo mais roupa, não cozinho mais e nem varro quintal”.

─ E qual foi a reação do seu marido, Dona Hermê?

─ Olha, no primeiro dia eu não vi nada. No segundo, também não. Mas no terceiro dia, quando meus olho começaro a desinchar, comecei a ver uns vulto, umas sombra, uns movimentozinho pela casa!

 

Outra triste: O voo do motociclista

A caminho da festa, a moto voava ─ um palmo acima do chão. De repente, o caminhão parou. Ele sentiu que agora a moto estava em pleno ar, e ele junto com ela. Mas o chão do asfalto parecia subir ao seu encontro.

Levantou-se logo e partiu para a festa. Num segundo estava lá, no meio da zoeira. Luzes e som por todo lado, muita gente cantando, pulando, dançando, bebendo. O movimento era grande, e ele não conseguia ver as caras, apenas vultos. Uma bebida estranha foi parar na sua boca, e depois outra e mais outra, em golfadas. No meio da multidão, reconheceu Luana. Nem sabia que ela gostava de festa! Dançou muito com ela, como tantas vezes tinha sonhado fazer.

Às vezes a cabeça parecia ir às nuvens. Ou explodir.  Aos poucos, Luana foi se desintegrando no meio do povo. Estendeu a mão para alcançá-la, mas antes disso homens de rostos borrados o agarraram. Queria desvencilhar-se deles e voltar para casa. A mãe com certeza ainda acordada, rezando para que ele chegasse. Nessas horas, gostava de cantar para ela: “Não sou filho único, não moro em Jaçanã...” Ela guardava o terço, benzia-o e ia dormir.

Agora, no entanto, a casa era um vazio branco. Seguiu a luz que brilhava no fundo do corredor, mas a luz fugia e o corredor não acabava nunca. Cansado, deitou-se no chão. O ar sumia, sugado pelas nuvens. Um barulho estridente crescia à sua volta. Vermelha, a lua girava e piscava, e de repente a palavra AMBUL formou-se no espaço. Sentiu que o levantavam e o deitavam. Alguém passou a mão sobre seu rosto e fechou seus olhos.

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Andando de aplicativo no Rio de Janeiro

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Vai por mim: só fuzil pra dar jeito no Brasil

 

Motorista 1 – O revolucionário

Vai por mim: só fuzil pra dar jeito no Brasil

 

Motorista 1 – O revolucionário

            Olha aí, engarrafado de novo. Não tem mais dia, nem hora, nem lugar. Uma miséria. E os bacanas só roubando a gente, obra que é bom, neca de pitibiriba. Tá vendo algum guarda de trânsito? É ruim! Os carinhas lá de cima só querem faturar e, quando cansam de roubar com a direita, mudam de mão e começam a roubar com a esquerda. Haja banco suíço! E quem paga? O trabalhador, tá na cara. Já fui multado duas vezes na rodoviária no mesmo dia. Estava deixando passageiro, o guardinha achou que eu estava estacionado e me meteu a caneta. Ladroagem geral. 

Eu acho que só tem um jeito: é todo mundo pegar na metralhadora e liquidar essa cambada de ladrões. E quem ficaria no lugar dos que a gente matasse? Ah, meu senhor! Botava gente que não fosse ladrão. E se começar a roubar, igual aos que estão aí, a gente mata também. Mas brasileiro é tudo frouxo. Eu pegava na metralhadora e saia atirando. Uns frouxos!  Só correndo muito sangue é que o Brasil tem jeito. Olha na França: dizem que francês é tudo bicha, mas vê só: o governo pisa no calo do povo e eles vão pra rua, botam fogo em tudo. Mas no Brasil... Na minha opinião, só metendo bala pra acabar com essa ... Desculpa aí o palavrão.  Já vi que o senhor não é de pegar em arma, mas vai por mim: só fuzil pra dar jeito no Brasil. Até rimou!

 

Motorista 2 – O caladão

─ Bom dia!

─ Pode fechar a janela, por favor?

─ Prefiro ir pela praia, se não tiver problema para o senhor.

─ É aquele prédio ali na frente.

─ Obrigado, Bom dia de trabalho para o senhor. Vai com Deus.

BANG! (Porta do carro sendo fechada).

 

Motorista 3 - O otimista

Bom dia, doutor. Bom dia, madame. Tem uma retençãozinha ali na frente, mas é coisa só de dez, quinze minutos. Vinte talvez. Meia hora, no máximo.  Aeroporto?! Sem problema, o avião espera. Rá-rá-rá! Mais uma obra da prefeitura! É a Cidade Maravilhosa maravilhando ainda mais. O senhor vê, enquanto a gente espera liberarem a pista, a gente fica olhando essa beleza de mar, esse céu azul (se bem que hoje tá meio cinzento). E a mulherada, hein?! A madame me desculpe, mas o Rio tem a maior concentração de mulheres bonitas do mundo. Isso é fato verdadeiro e comprovado, tem até pesquisa americana. E o Cristo!? Só em olhar para o Cristo já ganhei o meu dia. Olha lá o bondinho. Nunca andei porque tenho medo, mas que é muito legal, ah, isso é. Assalto? Assaltado só fui uma vez. O cara abriu a janela, meteu um três oitão na minha cara e falou “passa a grana, cidadão!” Ainda teve a gentileza de me chamar de cidadão! É o Rio de Janeiro! Tá aí, chegamos. Corre que o avião ainda deve estar na pista. Vão com Deus, com São Cristóvão e com São Jorge. Ogum proteja o lindo casal! 

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O mesmo

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Experimente colocar num banheiro público o aviso “é proibido escrever palavrão na porta”

Experimente colocar num banheiro público o aviso “é proibido escrever palavrão na porta”

Você tem medo de andar no mesmo? E quando o mesmo demora, você fica irritado? Você já ficou preso no mesmo? E se você não sabe que o pronome “mesmo” virou substantivo (sinônimo de elevador), é porque nunca prestou atenção ao aviso que está ao lado da porta de todos os sobe e desce do nosso estado: “Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar. Lei Estadual No. 9502/97”. Para orgulho nosso, o texto foi perpetrado na Assembleia Legislativa Fluminense e se espalhou pelo país. Pior do que isso o douto legislador não podia ter feito, e nenhum dos seus nobres companheiros ousou levantar a voz (ou a caneta) para salvar da redação infeliz tão feliz advertência. 

Eu não entendo de elevadores. Até para escolher entre os botões de subida e decida preciso de alguns instantes de reflexão. Também não entendo muito de português, mas ao menos sei que toda palavra antecedida de artigo vira substantivo, ou seja, nome de alguma coisa. Portanto, acho que a bem-intencionada 9502/97 ficaria melhor assim: “Ao abrir a porta do elevador, certifique-se ele está parada neste andar.” Ou, melhor ainda: “Stop! Antes de dar um passo adiante, verifique se não há um buraco negro à sua frente!” O uso do stop se justifica porque brasileiro presta mais atenção nas palavras inglesas do que nas portuguesas. Brincadeiras à parte, convém mesmo (olha ele aí, travestido de advérbio!) ficar atento, porque muita gente já morreu ao cair no poço ─ por exemplo: a atriz Anecy Rocha, irmã caçula do cineasta Glauber Rocha.

Palavras e expressões impõem-se na língua por si mesmas, não precisam de autorização nem aceitam proibição. É uma das poucas coisas em que o povo manda e desmanda. Resultaram sempre em fracasso as tentativas de regular por meio de canetadas como as pessoas devem falar. O latinista Castro Lopes propôs a criação de palavras que substituíssem o que ele chamou de “barbarismos dispensáveis”. Salvaram-se (mais ou menos) “cardápio” e “convescote” para ocupar o lugar de “menu” e “piquenique”, respectivamente. Outras, como “preconício” (anúncio comercial), “ludâmbulo” (turista), “runimol” (avalanche) e “ancenúbio” (nuance) foram completamente ignoradas pelos brasileiros. Durante a Segunda Grande Guerra, Mussolini proibiu o uso do pronome “Lei” na Itália. A guerra acabou, Mussolini morreu e, apesar dele, o pronome e a Itália sobreviveram. Experimente colocar num banheiro público o aviso “é proibido escrever palavrão na porta”. No dia seguinte o outro lado da porta estará cheio de palavrões.

Zamenhof pensou no esperanto como uma língua universal, mas calcula-se que hoje apenas cerca de 100 mil pessoas entendam esse idioma artificial. Enquanto isso, o inglês... Certa vez, um deputado brasileiro tentou extinguir a crase, que é um fenômeno da fala e, portanto, não pode ser regulado por leis. Isso nos obrigaria a falar, por exemplo, “cada...armário”, ou invés de “cadarmário”, como comumente se faz. O que o deputado certamente queria, e já seria um desastre, era extinguir o acento grave indicativo de crase, necessário para distinguir “pintar a máquina” de “pintar à máquina, ou “cheirando a flor” de “cheirando à flor”.

Enfim, vamos deixar de invencionices. Mas, por prudência e a amor à vida, não entre no elevador sem ter certeza de que ele (também conhecido como “o mesmo”) está ali parado, pacientemente esperando por você.

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Tempos rudes

terça-feira, 28 de maio de 2024

“Que coisa é a formosura senão uma caveira bem vestida?”

“Que coisa é a formosura senão uma caveira bem vestida?”

Recebeu destaque na internet uma distinta senhora que ostenta um título do qual muito se orgulha e que faz com que ela mereça ser notícia de primeira página. Não se trata de nenhuma cientista, nenhuma líder de causas humanitárias, nem mesmo de uma atriz ou cantora famosa. Naturalmente que há em nosso país outras mulheres admiráveis, e eu me lembro, assim de pronto, da dra. Zilda Arns, que, ensinando às mães métodos simples e baratos, tirou da desnutrição e da morte milhares de crianças Brasil afora, sem pedir um tostão ao governo ou a quem quer que fosse. A Pastoral das Crianças, criada por ela, já inspirou similares em outros países e foi indicada para o Prêmio Nobel da Paz.

Mas a senhora da qual estou falando é admirável (ou pelo menos admirada) por outros merecimentos, ou melhor dizendo, por um único merecimento, embora muito grande, tão grande que não deixa de ser notado por onde ela passa. Notável sobretudo quando a citada senhora é vista pelas costas. Em resumo: ela tem o maior traseiro do Brasil, foi eleita a Rainha Nacional do Bumbum.  Quando vi sua foto, o que mais me causou espanto foi a habilidade do fotógrafo, que conseguiu colocar tudo aquilo na telinha do computador. É coisa para tela de cinemascope.

Nada contra as mulheres calipígias. A beleza, onde quer que se situe, é sempre um colírio neste mundo onde há tanta feiura. Também não quero criticar ninguém, cada um goste do que quiser ou puder. Beleza é um conceito muito vago, para o sapo a sapa é a coisa mais linda que existe. Além disso, como sentenciou o Pe. Antônio Vieira, “que coisa é a formosura senão uma caveira bem vestida?”, para em seguida concluir, melancolicamente, que mesmo a formosura feminina é “a cada ano cortada com o arado do tempo”. Se não me engana a lembrança de um livro de José de Alencar lido há muitos anos, em “A pata da gazela” um personagem se apaixona pela heroína ao encontrar um pé de sapato que ela havia deixado cair. Ele conclui que a dona de pezinho tão delicado só podia ser uma mulher encantadora.

Enfim, tem gosto pra tudo neste mundo, quem ama o feio bonito lhe parece. Mas certas notícias que eu vejo me fazem pensar que estamos vivendo tempos especialmente vulgares, embora seja certo que a vulgaridade sempre existiu, é coisa do começo do mundo. Mas atualmente estamos exagerando. Basta ligar o rádio, por exemplo, para ver que estamos ouvindo mais sapos cururus do que uirapurus. Onde estão os antigos poetas da MBP?  Caíram no mais profundo silêncio. E mesmo dentre os atuais, é um uirapuru para cada mil sapos cururus. Assim na música, assim no humor, assim em tudo mais.

Mas não desanimemos. Sempre haverá gente fina, cuja grandeza, se mede pelo que têm na mente e no coração, e não pelo tamanho de qualquer parte do corpo. Aprendamos com a fala de Cora Coralina, nos últimos versos do poema “Assim eu vejo a vida”: “Nasci em tempos rudes/ Aceitei contradições/ lutas e pedras/ como lições de vida/ e delas me sirvo/ Aprendi a viver”.

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As mães tem sempre razão

terça-feira, 14 de maio de 2024

Em homenagem às mães leitoras de A VOZ DA SERRA, republico esta crônica  

As mães têm sempre razão. Para não exagerar, porque toda generalização é perigosa, direi que as mães têm razão em 99,9% das vezes. Pelas minhas contas, qualquer mãe tem que dar 10.000 opiniões para errar uma. Melhor que isso, só Deus, que nunca erra.  Verdade que criou o homem, mas se redimiu, criando a mulher logo em seguida. Parece que consta das Escrituras que, tendo feito Adão, Deus olhou bem e falou: “Eu posso fazer coisa melhor”. Então criou Eva.

Em homenagem às mães leitoras de A VOZ DA SERRA, republico esta crônica  

As mães têm sempre razão. Para não exagerar, porque toda generalização é perigosa, direi que as mães têm razão em 99,9% das vezes. Pelas minhas contas, qualquer mãe tem que dar 10.000 opiniões para errar uma. Melhor que isso, só Deus, que nunca erra.  Verdade que criou o homem, mas se redimiu, criando a mulher logo em seguida. Parece que consta das Escrituras que, tendo feito Adão, Deus olhou bem e falou: “Eu posso fazer coisa melhor”. Então criou Eva.

Um exemplo, só para exemplificar: Uma senhora levou a filha a um conceituado médico de nossa cidade e sugeriu que a moça estava com o mesmo problema que ela, mãe, havia tido quando jovem. Dizem que 10% dos juízes pensam que são Deus. Os outros 90% têm certeza. Parece que com os médicos não é muito diferente, e tanto que esse desfez do diagnóstico materno, pontificando que toda mãe apresenta essa mania doentia de querer saber, mais do que os doutores, do que os filhos padecem. Deu outra definição para o caso, rabiscou uma receita e mandou as duas para casa. Dois dias depois internou a moça, exatamente com o problema que a mãe havia sugerido. Eu, se fosse médico, consultava a mãe do paciente antes de tomar qualquer decisão, porque a ciência, por melhor que seja, nunca alcança 99,9% de acerto, coisa que coração de mãe faz sem precisar de vade mecum.

Estou puxando esse assunto porque ultimamente ando me lembrando de coisas que minha mãe dizia. Não que ela vivesse fazendo citações. Ao contrário, ela era de pouca conversa, mais de calar do que de falar. E tinha o dom de poupar os filhos de longos sermões, sintetizando em poucas palavras o que outras transformariam numa infindável catilinária.

Quando reclamávamos de algum acontecimento que nos parecia injusto, ela sentenciava: “Deus sabe o que faz, a gente não sabe o que fala”. Grande verdade! Se ouvíssemos mais a voz de Deus e falássemos menos, com certeza nossas burradas e consequentes sofrimentos seriam bem menores. “Quando a cabeça não pensa, o corpo é que paga”, ponderava ela, se atitudes erradas resultassem em sofrimentos físicos, tais como ficar doente, engordar ou emagrecer demais, ferir-se ou mesmo morrer. De alguém que colocava no prato mais do que podia comer, dizia que o guloso pretendia “Comer com os olhos”, ou que tinha “O olho maior que a barriga”.

Na verdade, era um tempo de sínteses definitivas. Bares e armazéns abriam todos os dias com a mesma tabuleta pendurada na parede: “Fiado só amanhã”. E, embora fosse comum a existência de um prego em que as dívidas dos fregueses eram penduradas, o fiado sempre foi malvisto. Não era incomum que vários estabelecimentos ostentassem um cartaz em que duas famílias ficavam lado a lado, separadas por dois fios de tinta: um azul e outro vermelho.  No lado azul, numa sala luxuosa, um comerciante rico e saudável, cercado de lindos filhos e linda esposa. No vermelho, seu colega esquelético, sentado numa cadeira capenga; a mulher, esfarrapada, segurando nos braços uma criança desnutrida, enquanto duas outras olham para a clientela com olhos de fome. Embaixo de cada figura, a legenda completava a obra de arte: “Este vendeu a dinheiro. Este vendeu fiado”.

E vou parando por aqui, porque já falei demais, e mamãe sempre dizia que “A palavra é de prata e o silêncio, de ouro”. Em todo caso, espero não ter gasto toda essa prata sem dizer ao menos alguma coisa que se aproveitasse.

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Os noivos

quarta-feira, 01 de maio de 2024

O passado existe, e a literatura é capaz de torná-lo presente

O poeta João Cabral de Mello Neto disse que estava velho demais para ler, pois o livro podia não compensar o tempo gasto na leitura. Por isso, só relia, e assim tinha a certeza de não desperdiçar o tempo que ainda lhe restava. Comigo aconteceu que li muitas coisas prematuramente, isto é, quando minha capacidade de compreensão das obras era ainda menor do que hoje, e para falar a verdade, mesmo essa é bem pequena. Para remediar tamanha falha, tenho relido mais do que lido.

O passado existe, e a literatura é capaz de torná-lo presente

O poeta João Cabral de Mello Neto disse que estava velho demais para ler, pois o livro podia não compensar o tempo gasto na leitura. Por isso, só relia, e assim tinha a certeza de não desperdiçar o tempo que ainda lhe restava. Comigo aconteceu que li muitas coisas prematuramente, isto é, quando minha capacidade de compreensão das obras era ainda menor do que hoje, e para falar a verdade, mesmo essa é bem pequena. Para remediar tamanha falha, tenho relido mais do que lido.

É comum dizer-se que, no mundo atual, até o passado é incerto. Ou que, quando muito, só existe como lembrança, na qual não se pode confiar. Até me recordo daquele político que, acusado de possuir uma fazenda de valor muito acima do que seus vencimentos permitiriam, negou ser o proprietário. Confrontado com os documentos que provavam a posse, declarou serenamente: “Ué, não é que tinha me esquecido!”

Seja lá como for, o passado existe. E a literatura, é a melhor maneira de visitá-lo, entendê-lo e aprender com ele. Mais uma vez acabo de constatar isso, relendo o romance “Os Noivos”. O autor, Alessandro Manzoni nasceu em 1785, na cidade italiana de Milão. Inicialmente tido como pouco inteligente, a partir dos 15 anos começou a revelar seu talento para as letras e veio a tornar-se um dos maiores nomes de literatura italiana.

“Os noivos” é a história de amor entre dois jovens humildes e o desejo de um homem poderoso pela moça. Tem personagens de uma grandeza moral admirável, e outros de comportamento violento e desprezível. Aos dramas pessoais, soma-se o drama de uma população faminta e desesperada, que invade as padarias gritando pão! pão! pão!  Não pretendo fazer resenha do livro, mas me deter em um de seus aspectos mais marcantes: o período da narrativa em que Milão é atingida por uma peste que diariamente mata centenas de pessoas. As mortes são tantas que surge uma nova categoria profissional, os “monatti”, encarregados de recolher os corpos nas casas e nas ruas.

Lendo essa passagem da obra de Manzoni, fiquei pensando em como tudo muda, mas o ser humano é sempre o mesmo, é sempre igual o drama humano. Pois, apesar de a peste ter sido uma cruel e avassaladora realidade, muitos negaram sua existência até o momento em que carroças conduzidas pelos monatti tornaram-se parte da paisagem. Não era possível manter os olhos fechados diante do amontoado de corpos nus a caminho do cemitério.

Também muitos de nós, em pleno século XXI, tal e qual tantos milaneses do século 18, só abrimos os olhos para a covid 19 quando os hospitais estavam abarrotados, e os sepultamentos às centenas nos obrigaram a reconhecer a epidemia. Sim, o passado existe e a literatura é capaz de torná-lo presente. Ela nos permite viver em tempos longínquos e, se quisermos, aprender com eles, para não repetirmos os mesmos erros.

Porque a sabedoria está em aprendermos com os erros passados e a burrice, em repeti-los.

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Entre o óbvio e o obvio

terça-feira, 16 de abril de 2024

Não era o único a buscar nas garrafas da branquinha inspiração para abrilhantar seu pronunciamento

Não era o único a buscar nas garrafas da branquinha inspiração para abrilhantar seu pronunciamento

Na simpática cidade de Santa Cecília (que eu não conheço, mas por isso mesmo merece de mim pelo menos o título de simpática), um vereador teve atuação especialmente destacada em sessão do legislativo local. Alegando que nunca se pronunciava nas reuniões, insistiu no seu direito de, pelo menos uma vez, falar como bem lhe aprouvesse, ainda que lhe aprouvesse falar embriagado, como era justamente o caso naquele momento.   Não sei se esse senhor é um bom representante do povo, mas não se pode negar que é um homem sincero. O nobre edil começou seu discurso informando aos presentes que havia “tomado umas cachaças” antes de se dirigir à sessão do dia e, mais, afirmou que todos os colegas faziam o mesmo, isto é: degustavam umas e outras antes de vir trabalhar em favor do povo santa-ceciliense. A se acreditar em sua etílica sinceridade, nenhum dos presentes podia lhe cassar as palavras e nem havia motivo para tanto. Afinal, não era o único a buscar nas garrafas da branquinha inspiração para abrilhantar seu pronunciamento.

No pequeno plenário, os protestos foram poucos, não sei se porque a acusação tinha fundamento, ou se porque reconheciam que o orador falava com a autoridade que seus eleitores lhe conferiram, embora com voz arrastada e pernas oscilantes. Contudo, a certa altura dos acontecimentos, o presidente da Casa julgou por bem advertir o colega de que este devia se ater ao assunto em pauta, ao que o orador retrucou, ébrio de autoridade: “Posso falar? Posso falar? Eu nunca falo nessa... de Câmara. Hoje vou falar”. E seguiu elogiando a prefeita, que, segundo sua sóbria avaliação, “é a melhor que essa cidade já teve!” Por fim, entre risos de uns e constrangimento de outros, o presidente deliberou encerrar a sessão, sob protestos do parlamentar, que certamente não havia elogiado suficientemente a chefe do governo municipal.

Não sei se o ditado latino “in vino veritas” se aplica à estimada aguardente nacional e se a prefeita se sentiu valorizada ou envergonhada com a entusiástica defesa do seu correligionário. É improvável que “in cachaça veritas”, o mais certo é que ela seja a causa de muita tristeza. Mas às vezes os bêbados protagonizam cenas de comédia pastelão, como se viu nessa histórica sessão legislativa.

Essa notícia me fez lembrar de uma anedota que há alguns anos se contava sobre um dos mais conhecidos políticos de nossa cidade. Eleito deputado estadual, comparecia regularmente à assembleia, em cujas cadeiras aproveitava para descansar da exaustiva viagem à capital do estado. Como na época não havia celular, contentava-se em passar os olhos pelo jornal do dia e depois tirava uma soneca, embalado pela voz dos colegas que peroravam na tribuna. Não incomodava ninguém, não perturbava o sono dos demais deputados, nem prolongava inutilmente a sessão. Eis que um dia, para espanto geral, nosso representante naquela Casa levanta a mão e pede a palavra. Concentração geral. “Finalmente vamos ouvi-lo!”  Com a solenidade que as circunstâncias exigiam, fez o seu primeiro pronunciamento: “Senhor Presidente, peço a Vossa Excelência que mande fechar a janela em frente, pois o vento está me incomodando”.

Também me lembrei de uma história já contada aqui, mas que vem a calhar. Na Câmara de uma cidade mineira, um vereador pronunciou a palavra “obVIo”. Um colega, provavelmente de partido adversário, não deixou passar: “O correto é ÓBvio, nobre companheiro”. Ora, por orgulho ou ignorância, o admoestado não se curvou e insistiu no “obVIo”. Instalou-se o bate-boca, cada um dos debatedores mais doutos em assuntos de língua portuguesa. Sabemos que essas discussões sobre os magnos assuntos de interesse do povo costumam terminar em tapa. Diante do temporal que ameaçava desabar no plenário, o presidente pôs o assunto em votação. Feita a apuração, “obVIo” ganhou por larga maioria de votos!

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Trezentos-e-cincoenta

terça-feira, 02 de abril de 2024

Ninguém se molha duas vezes na água do mesmo rio

Ninguém se molha duas vezes na água do mesmo rio

É um truísmo, mas é também uma verdade: basta termos a coragem de nos encararmos um só instante para concluirmos que estamos ─ como tudo que é vivo – em constante transformação. Ao acordarmos de manhã, já não somos aquele mesmo que se deitou à noite: um fio de cabelo branco brotou discreta, mas irreversivelmente; uma ruga riscou a testa e tende a se aprofundar. Talvez nos iludamos, achando que mudamos para melhor. Mas, se os que nos conhecem concordam, pode ser apenas porque o sentimento de solidariedade imposto pela frágil condição humana os obrigue a mentir, ou a calar, o que não é senão outra forma de mentir.

Tudo muda, disso já sabia o filósofo Heráclito, ao afirmar que ninguém se molha duas vezes na água do mesmo rio, pois, ao entrar, a água já é outra, e outra é a própria pessoa que mergulha. E, claro, não se trata só de mudança física, que dessa o tempo cuida com especial zelo, segundo a segundo, até o dia em que não temos escolha senão reconhecer que já não somos o que pensávamos, e então nos perguntamos, como Cecília Meireles: “Em que espelho ficou perdida a minha face?” Mudamos principalmente naquilo que julgávamos ser o mais permanente: convicções e lembranças; a simpatia que virou amor para a vida inteira; o que sabíamos e desaprendemos; o que era certeza e agora reconhecemos ter sido apenas ignorância, fantasia ou mera ilusão. O futuro é incerto e o passado, instável.

Julgamos que somos uno, inteiro, indivisível, contudo, como descobriu Mário de Andrade: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta”, embora acreditando que “um dia afinal eu toparei comigo”. E mesmo que afinal topemos conosco, para os outros continuaremos sendo tantos quantos são os que nos olham. Cada um que nos vê, vê uma pessoa diferente, diferente sobretudo daquilo que nós mesmos enxergamos em nós.

Essa filosofia de botequim, essa sabedoria de almanaque me assaltou quando, passando por uma rua, me lembrei que ali morava uma amiga que tive em tempos idos. Certa vez, estávamos justamente filosofando sobre o quanto tínhamos mudado, como pessoas e como profissionais, desde o dia em que, numa sala de aula da faculdade, nos encontramos pela primeira vez. Com humilde bom-humor, admiti: “Se eu tivesse me conhecido dez anos atrás, eu não falaria comigo”. Ela, com bem-humorado sarcasmo, respondeu: “Por aí você vê o que tenho aguentado!”

Se, no momento em que eu passava, ela abrisse a janela e nos víssemos, o máximo de intimidade que poderíamos nos permitir seria um contido aceno de mão, um “oi” desanimado. Longe vai o tempo das confidências, tempo em que fazíamos piada um com o outro e nos divertíamos com isso. “Mudaria o Natal ou mudei eu?”, perguntou-se Machado de Assis. No caso da minha amiga (que não abriu a janela), mudou ela, mudei eu. Para ambos, o Natal é outro, outros Natais.

Quem ela enxerga agora, quando, por acaso e a distância, me vê? A visão será totalmente ruim, ou ao menos será amenizada pela lembrança feliz de coisas passadas? Grande é o desafio de mudar tentando preservar o que acaso tenhamos de bom, tentando melhorar naquilo que nos for possível e aceitando os altos e baixos ─ inevitáveis para mim, para você e para a minha amiga (que não abriu a janela).

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