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A pura verdade

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Precisam se concentrar longamente para afinal concluir que dois e dois são cinco

Precisam se concentrar longamente para afinal concluir que dois e dois são cinco

Atualmente, se não tomarmos cuidado, facilmente nos transformamos numa ilha de desinformação e ignorância, cercada de mentiras por todos os lados. Nas redes sociais, então, só com muita paciência se pode lançar as redes e pescar uma verdade, no vasto mar de boatos, distorções e puro e simples mau-caratismo que aparecem na tela. Os absurdos mais escabrosos são apresentados como se fossem revelações divinas, finalmente colocadas ao alcance da humanidade, bastando para isso que os homens simplesmente acreditem. Não percam tempo pensando, apenas creiam.

E já que é assim, já que se pode contar qualquer lorota, já que o besteirol goza de tão amplo prestígio, já que Bertrand Russel estava certo ao dizer que “Tolos e fanáticos estão sempre cheios de convicção, enquanto os sábios estão sempre cheios de dúvidas”, também eu resolvi fazer algumas revelações, sabendo que não faltará quem nelas acredite. De antemão vou avisando que, como diria o poeta Manoel de Barros, só dez por cento é mentira, o resto é invenção. Acredite quem quiser e não me venham depois cobrar explicações. Pois bem, é fato comprovado que:

Finalmente chega ao mercado a vacina contra a burrice, criada nos renomados laboratórios ingleses Feiquenils. Com uma só dose, mesmo quem acha que raiz quadrada é um tubérculo comestível e prova dos nove é time de futebol com dois jogadores expulsos, sairá da farmácia explicando matemática quântica como quem ensina o bê-á-bá. Com uma dose de reforço, suas teorias farão Einstein parecer um menino de quinta série, e daqueles que precisam se concentrar longamente para afinal concluir que dois e dois são cinco.

Todos os supermercados da cidade doarão todo seu estoque aos pobres. A partir de amanhã e pelo prazo de um ano, tudo será de graça para quem comprovar que vive (ou morre) com até dois salários-mínimos. É só chegar e encher o carrinho, melhor ainda: os carrinhos. De uísque a água sanitária, de foie gras a molho de tomate, de computadores a banana d’agua, é só pegar e levar. Não importa se o seu sonho de consumo é uma peça de filé mignon, uma caixa de vinhos franceses ou um pacote de biscoitos Aimoré: é tudo grátis. Para evitar filas e demoras, o atendimento será por ordem alfabética dos sobrenomes: uma letra por dia. Não se preocupe se seu nome é Antônio Zwygness: seu dia vai chegar.

Indivíduos em atitude suspeita” não mais serão abordados pela polícia, e sim por equipes multidisciplinares, que contarão com psicólogos, médicos e nutricionistas. Todos dedicados a entender o que vem a ser essa tal “atitude suspeita”. Enfim, o diálogo substituirá pancada, a mão estendida substituirá o cacetete. Joelho no pescoço, never more! E, no caso de o “indivíduo” vir a ser preso, cumprirá integralmente a pena recebida, mas somente após julgamento rápido e com a devida assistência jurídica. E mais: em presídios modernos, que substituirão as atuais masmorras. O lema desses novos tempos deverá ser escolhido entre “Pobre também é gente” e “Ninguém é culpado até ter culpa provada”. Os mais internacionalizados preferem “Black lives matter”.

William Bonner se confessa comunista. Num inesperado ataque de sinceridade, Bonner declarou sua verdadeira inclinação política.  Em pleno Jornal Nacional, o apresentador garantiu que desde criancinha reza pela cartilha vermelha e que, aliás, foi alfabetizado lendo O Capital e que seus ídolos sempre foram Marx, Mao Tse Tung, Castro e, no Brasil, Luís Carlos Prestes. Diante da cara de dúvida dos telespectadores (ele as vê, assim como é visto), disse que foi infiltrado na Rede Globo para desmascarar a emissora, mas, em vista do salário que vem recebendo dos Marinhos, ainda não teve coragem para cumprir a missão que lhe foi confiada pelo Partido.

Quer ter acesso a outras notícias tão verdadeiras quanto essas? É só entrar nas redes sociais, ler e ouvir. Mas nada de se meter a ficar questionando, hem!

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Esperando a Copa do Mundo

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Este país tão grande e tão perdido em sua própria grandeza

Este país tão grande e tão perdido em sua própria grandeza

Tem gente que gosta de futebol, tem gente que odeia. O escritor argentino Jorge Luís Borges, tido como um dos grandes da literatura mundial, disse numa entrevista considerar o futebol um “esporte estúpido”. Sobre a Copa do Mundo em seu país, classificou o evento como “uma calamidade” que “felizmente vai passar” e aproveitou para fazer uma palestra justamente na hora da abertura da competição (auditório lotado). Já Nélson Rodrigues, desde “Vestido de Noiva,” considerado o mais importante dramaturgo brasileiro, era tricolor apaixonado e considerava que “o escrete é a pátria de chuteiras” (naquela época a seleção era chamada de escrete e não disputava partidas, desfilava em campo, diante dos adversários). O “Anjo Pornográfico”, como o chamou Ruy Castro, era, além de teatrólogo, contista, romancista e cronista. Ou seja, se tem intelectual que abomina, tem intelectual que adora esse esporte.

Agora que se aproxima a Copa do Mundo, são poucas as pessoas que conseguem (ou fingem conseguir) ficar alheias ao que vai acontecer no Catar e pouco ligar se vamos ser campeões ou se vamos ser eliminados ainda nas oitavas de final, e logo pela Argentina. E até ouvi um cidadão declarar com orgulho (sem saber que estava parodiando Karl Marx) que torce contra o Brasil porque considera o futebol o ópio do povo... porque os jogadores ganham muito dinheiro... porque não podemos mesmo ser melhores em nada... etc.

 Ora, somos alienados em muitas coisas e pouco ou nada nos revoltamos contra a miséria, a fome, a injustiça e a roubalheira. Desunidos em tantas coisas, o futebol é uma das poucas que ainda nos unem e reúnem. E se o futebol assim nos agrega e congrega, quem sabe não chegará o dia em que, a partir dele, nos tornaremos patrióticos em relação a tudo mais que diga respeito a este país tão grande e tão perdido em sua própria grandeza, país que foi assim cantado no exílio por Vinícius: “Não te direi o nome, pátria minha / Teu nome é pátria amada, é patriazinha”.

Eu sou dos que gostam de futebol, do jeito que considero que vale a pena gostar. Ou seja, torcer sem exagero, se emocionar sem choradeira, comemorar sem perder a compostura e a civilidade. Não xingo a mãe do juiz, nem mesmo quando acho que ele está errado e considero uma total imbecilidade discutir ou brigar por causa de futebol. Torço pelos times do Rio contra os de outros estados, pelas equipes brasileiras contra as de outros países e pela Seleção Canarinho em qualquer circunstância.  No mais, fico contente quando meu time ganha e não fico triste quando ele perde. Mais fair play do que isso não é possível.

Durante quatro copas seguidas, usei uma camisa com a inscrição “Brasil rumo ao hexa”. A camisa desbotou e o Brasil não ganhou. Agora que a joguei fora, por inútil e azarada, pode ser que a vitória venha. Os cronistas esportivos acham que há boas chances. De qualquer forma, estando a seleção em campo, estarei eu na frente da televisão, ansioso para gritar (moderadamente): “É campeão! É hexa! É pátria amada, é patriazinha!

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Dois trabalhadores

terça-feira, 01 de novembro de 2022

Gouveia

Gouveia

Gouveia era um sujeito que vivia para juntar dinheiro. Aos quarenta, já possuía uma fortuna que dava para ele viver mais 200 anos. Estudou à noite porque era de graça, e convenceu o pai a lhe dar o dinheiro com que pagaria a escola. Começou a vida profissional gerenciando uma marcenaria, da qual se tornou sócio e depois proprietário, não sem que o antigo patrão fosse misteriosamente à falência. A marcenaria virou fábrica de móveis e, com talento, persistência e muito trabalho, em pouco tempo Gouveia já estava vendendo mesas, camas e armários até para o estrangeiro. Não gostava de festas, detestava cinema e não perdia tempo ouvindo música.

Apaixonou-se por uma arquiteta e chegou a ficar noivo, mas rompeu o noivado para se casar com a filha de um empreiteiro do ramo da construção civil. Com o sogro aprendeu tanto que acabou abrindo sua própria construtora. O velho não chegou a falir, mas parou de enriquecer, porque o genro concorria com ele metro a metro, terreno por terreno, obra por obra. Preferiu não ter filhos, que tomam muito tempo e dão muita despesa. Quando a mulher pediu o divórcio, entregou-lhe o mínimo que pôde e nunca mais se arriscou com outra, para não ter que novamente desfazer-se de alguns anéis para salvar todos os dedos.

Como eu disse no começo, Gouveia era um sujeito que vivia para juntar dinheiro. Aos quarenta, já possuía uma fortuna que dava para ele viver até os 200 anos. Morreu aos quarenta e dois.

Michelangelo

Tinha uns servicinhos pra fazer na casa e para essas coisas, como para tantas outras, eu sempre tive grande talento para não saber como fazer. O candidato que apareceu ouviu de mim um relato completo do que andava vazando, apagando ou descascando. Perguntei-lhe então o que ele mesmo poderia resolver, e se ele podia indicar outros profissionais para o que estivesse fora de sua especialidade.

─ Deixa comigo. Sou pintor, pedreiro, eletricista e encanador. Depois de amanhã tá tudo resolvido. Vai ficar nos trinques!

“Esse homem é capaz de construir sozinho outra Capela Sistina”, pensei eu. E como eu não era o Papa Sisto, tanto quanto não sou o Papa Francisco, deixei tudo por conta daquela competência exuberante. Oito dias depois ele concluiu a obra do século, tendo feito diversos reajustes e aditivos, tanto no material gasto quanto no preço da mão de obra. Mas, tudo bem, finalmente a casa voltaria a funcionar “nos trinques”.

Estava eu nessa ilusão quando alguém da casa perguntou: “Que umidade é essa aqui na parede?” A essa pergunta seguiram-se outras igualmente desagradáveis: “Por que essa lâmpada não para de piscar?”, “Por que essa porta não fecha mais?” Lá pela décima pergunta, eu já tinha concluído que o meu Michelangelo só tinha feito porcaria. Se eu fosse o Papa Sisto, no mínimo mandava prendê-lo (o Papa Francisco, não, que esse é de boa paz).

Procurei pelo homem, que, depois de muitas explicações sobre a lamentável qualidade do material usado na construção da casa, prometeu voltar na semana seguinte, para finalmente deixar tudo “nos trinques”. Isso já vai para uns cinquenta anos. Não sei se o pintor-pedreiro-eletricista-encanador ainda está vivo. Mas não perdi a esperança de que ele apareça para terminar o serviço. Nos trinques!

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Lembranças bancárias

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Quando se é jovem tudo é bom, ou pelo menos não é ruim por muito tempo

Quando se é jovem tudo é bom, ou pelo menos não é ruim por muito tempo

A maior prova da solidez do sistema financeiro nacional é que eu fui bancário por três anos e nem o banco faliu nem o sistema entrou em colapso. Considerando a minha pouca ─ pra falar a verdade nenhuma ─ simpatia por números, contas, algoritmos, tabelas ou qualquer coisa que lembre a matemática, foi um milagre. Somente a existência do anjo da guarda dos banqueiros explica que eu tenha sido caixa sem provocar uma quebradeira nacional. Deixando a modéstia de lado, declaro que, se não dei grandes lucros aos banqueiros que me empregavam, também não os levei à bancarrota.

No banco exerci as mais augustas funções e de algumas sempre me lembro quando ouço falar em PIX e outras modernidades. Por mais incrível que pareça, entre as minhas altas responsabilidades constava a de ir ao Rio de Janeiro, às segundas-feiras cedinho, para buscar o dinheiro que iria abastecer a agência durante a semana. Lá me encontrava com um colega que já chegava munido de uma grande bolsa de couro, a qual, abarrotada de cédulas, subia a serra conosco pelo ônibus da Viação Friburguense. De modo que posso orgulhar-me de ter sido também guarda-costas e de muito ter contribuído para que os clientes, ao chegarem à agência, encontrassem os caixas abastecidos.

Também era superadiantado o sistema de compensação de cheques. Nada desse negócio de número transitando nas nuvens, via internet. Ao longo do dia, um funcionário mais ralé (por exemplo, eu) ia recolhendo os cheques, separando e somando. No fim do expediente, lá ia ele para a agência do BB, aonde todos os bancos mandavam seus representantes, geralmente tão graduados quanto eu. E então era feita a troca física dos cheques. Isso mesmo: cada banco entregava os cheques aos demais e recebia deles os que lhe pertenciam. No fim, feitas todas as contas, o BB registrava tudo, debitava aqui, creditava ali, e dava o assunto por encerrado. Se alguém então reparasse em mim, veria um rapazinho atravessando a Alberto Braune, entre 17h e 18h, abraçado a uma bolsa, plenamente consciente da fortuna que levava nas mãos.

De repente, uma novidade provocou grandes e orgulhosos comentários na agência: o “Fluxo Contínuo”. Até então o próprio caixa recebia, pagava, apanhava a ficha do cliente e fazia as devidas anotações. Sendo que as contas eram feitas a lápis, porque máquina de calcular era preciosidade só alcançável de subgerente para cima. Foi, pois, uma grande revolução quando resolveram dividir essas tarefas entre dois funcionários. À frente, o encarregado de atender o cliente e passar a papelada para o colega da retaguarda, ao qual cabia fazer os registros.

Muito haveria para contar sobre um tempo em que os bancários, mesmo os mais humildes, eram obrigados a usar gravata. Mas vou citar apenas mais um exemplo da modernidade do sistema bancário brasileiro nos idos da década de 70. As transações de uma cidade para outra eram feitas no grito. Explico. Dadas às então maravilhosas condições da telefonia nacional, um funcionário se trancava numa cabine adredemente (desculpem!) preparada e ditava aos berros, letra por letra, número por número, a operação a ser realizada. Alguns levavam isso meio na brincadeira e ficavam soletrando, enquanto a cabine estremecia: O, de Ourora... L de ladrão... I, de incelência...

Bons tempos! Na verdade, não sei se os tempos eram tão bons assim, mas eu era jovem e quando se é jovem tudo é bom, ou pelo menos não é ruim por muito tempo. Eu aguentei três anos!

PS – Dedico esta crônica a Américo Alves dos Santos, Eucy Lima da Silva, José Freire dos Santos, Luis Fernando Penna, Luiz Fernando Bachini, José Carlos Linch, o vivíssimo Eduardo com o seu famoso apelido “Já Morreu”, Ronaldo Eyer, Siegfried Bush, Vinícius do Lago Zamith e a todos os meus contemporâneos no Banco da Lavoura de Minas Gerais.

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Datas memoráveis

terça-feira, 04 de outubro de 2022

O Brasil, onde o que não falta é criatividade para inventar besteira

Eu não me canso de ouvir no rádio, toda manhã, a que ou a quem aquele dia é dedicado. E uma vez que inutilidade também é cultura, não custa você ficar sabendo essas coisas. Afinal, como dizia minha mãe, saber não ocupa lugar. Assim sendo, no desejo de colaborar com a erudição do prezado leitor e da não menos prezada leitora, trago valiosas informações a respeito de algumas dessas efemérides, se me permitem usar a palavra “efeméride”, por ser a mais compatível com a dignidade do assunto.

O Brasil, onde o que não falta é criatividade para inventar besteira

Eu não me canso de ouvir no rádio, toda manhã, a que ou a quem aquele dia é dedicado. E uma vez que inutilidade também é cultura, não custa você ficar sabendo essas coisas. Afinal, como dizia minha mãe, saber não ocupa lugar. Assim sendo, no desejo de colaborar com a erudição do prezado leitor e da não menos prezada leitora, trago valiosas informações a respeito de algumas dessas efemérides, se me permitem usar a palavra “efeméride”, por ser a mais compatível com a dignidade do assunto.

Tem, por exemplo, o Dia Nacional do Adulto, destinado a criar mais uma oportunidade de bons negócios para o comércio. Acho que a ideia não pegou porque talvez as crianças quisessem dar presentes em retribuição aos que costumam ganhar em 12 de outubro, mas para isso precisariam pedir dinheiro aos próprios adultos, e ninguém gosta de pagar para ser homenageado. O que me lembra aquela anedota em que Napoleão Bonaparte vai a uma cidadezinha, onde é ricamente recebido:  festas, vinhos, banquetes.  Na despedida, o prefeito lhe pede dinheiro, alegando que está com o baú vazio. O imperador lhe pergunta então como pode a cidade estar falida, se haviam gasto uma fortuna para recebê-lo. Ao que o sensato burgomestre responde: “Majestade, não fizemos mais do que devíamos, mas devemos tudo que fizemos”.

Não falta o Dia Estadual do Samurai (que não é no Japão, e sim em Santa Catarina), nem o Dia Municipal do Orgasmo, na orgíaca cidade de Esperantina, no Piauí. Mas não só o brasileiro gosta de safadeza. Nos Estados Unidos, por exemplo, tem o Dia da Masturbação, oficializado na época da Aids, com a santa intenção de incentivar as pessoas mais necessitadas a evitarem sexo promíscuo e assim escaparem da doença. E é lá que se comemora o Dia Mundial do Disco Voador, não faltando americano que jura de pés juntos já ter visto mais de um alienígena e até mesmo ter sido abduzido, dado umas voltas pelo universo e gentilmente deixado de volta na porta de casa.

Retornando ao Brasil, onde o que não falta é criatividade para inventar besteira, encontramos o Dia da Injustiça, enquanto vamos sonhando com o dia da justiça, que tanto demora a chegar. Por fim, para não alongar a lista interminavelmente, temos o Dia Municipal da Luta de Braço, criado pela laboriosa Câmara de Vereadores de Belo Horizonte, para valorizar a conhecida “queda de braço”, popular não só na capital mineira, mas nos botequins de todo o Brasil.

Vai ver que é justamente por falta de informação que você tem trabalhado no 10 de agosto, estando desobrigado dessa canseira, por se tratar do Dia Internacional da Preguiça. Macunaíma, “o herói da nossa gente”, era tão preguiçoso que levou seis anos para falar, e a primeira frase que disse foi “Ai, que preguiça!” Se não é bem assim, os leitores de Mário de Andrade que me corrijam. Apesar do bom exemplo macunaímico, o brasileiro trabalha pelo menos 44 horas semanais, enquanto um holandês não fica no batente nem 30 horas. Pra ser sincero, os europeus são um bando de preguiçosos, senão, vejamos: dinamarqueses, 32, noruegueses, suíços, austríacos, belgas, italianos, irlandeses, suecos e finlandeses, entre 34 e 35 horas. O que nos consola é saber que os colombianos encaram 47 horas semanais e, lá como cá, como diria o professor Raimundo, o salário: oh! 

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Se não fosse aquela chuteira!

terça-feira, 20 de setembro de 2022

─ Um craque! De Seleção! Pode perguntar. De Seleção!

Vendo-o assim, meio barrigudo e cambaio, não parece. Mas eu não vim ao mundo para contradizer ninguém e balanço a cabeça em sinal de santa concordância.

─ De Seleção! Pode perguntar. Se não fosse aquela chuteira...

─ Um craque! De Seleção! Pode perguntar. De Seleção!

Vendo-o assim, meio barrigudo e cambaio, não parece. Mas eu não vim ao mundo para contradizer ninguém e balanço a cabeça em sinal de santa concordância.

─ De Seleção! Pode perguntar. Se não fosse aquela chuteira...

Hoje em dia, se você quiser saber o que qualquer garoto pretende ser no futuro, tem grande possibilidade de ouvir “jogador de futebol” como resposta. Sonho que nasce ao verem seus ídolos ganhando um dinheirão, tratados como deuses aonde quer que cheguem. O problema é que para cada abelha rainha há milhares de abelhas operárias, operárias do futebol. Essas rolam de um clube pequeno para outro menor, até serem jogadas para escanteio. Sim, muitos são chamados pelo fascínio da bola, mas poucos os escolhidos para a glória dos estádios.

E o pior é que, como acontece em quase tudo na vida, não é só o talento que conta. Há verdadeiros pernas de pau vestindo camisas famosas, enquanto outros, talvez mais talentosos, atravessam a curta carreira como quem bate um pênalti para fora e cedo recebem cartão vermelho na memória e na estima dos torcedores. É questão de dar um chute certeiro, fazer o gol da vitória, substituir o titular que se machucou...

Um desses ex-futuros grandes craques me contou que sua maior glória foi aparecer na televisão.

─ Você deve ter feito um gol de placa! Elogio eu (mais ou menos sincero).

─ Não, eu estava era correndo atrás do Roberto Dinamite!

Pois é, por obra e graça dessas tabelas que só os cartolas sabem fazer, seu timinho tinha ido enfrentar o Vasco no Maracanã. Um desses jogos em que uma equipe faz das tripas coração, ou melhor, das canelas coração, para evitar a goleada, enquanto o outro passeia em campo, procurando não se cansar à toa. Em resumo, o Vasco vencia, mas não humilhava.

Eis senão quando Dinamite, que até então mais parecia estar pensando na morte da bezerra, explode em direção à área adversária. E lá estava, humilde, porém honrado, o nosso narrador.

─ Sem querer me gabar, parti pra cima dele! Ele quinou pra cá, pra lá e foi direto pra nossa meta, cheio de más intenções. Disparei atrás dele, mas não cheguei a tempo. Foi um gol de placa, deu até no Fantástico. Lá em casa todo mundo me viu perseguindo o Dinamite. Até hoje esse lance é o orgulho da minha família!

E agora vem esse outro, a me garantir que, se não fossem aquelas chuteiras, teria chegado à Seleção.

─ Futebol eu tinha. Pode perguntar. Futebol não me faltava!

Não sei a quem perguntar e fico só ouvindo.

─Tanto que fui treinar no Botafogo. Sabe por que não fiquei? Me deram uma chuteira dois números menor que meu pé. Um pé de respeito, meu chute derrubava goleiros. Mas, com uma chuteira apertando os dedões... nem Pelé. Cheguei pros homens e falei: A chuteira tá apertada. Eles disseram que mandavam me chamar para outro treino. Tou esperando até hoje. Mas futebol eu tinha. Pode perguntar. Se não fosse aquela chuteira...

E quem de nós, olhando a vida pelo retrovisor, não há também de se lembrar de ao menos uma situação em que teve de calçar um número duas vezes menor do que o pé e, suspirando, exclamar metaforicamente: Se não fosse aquela chuteira...?

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A felicidade no mundo

quarta-feira, 07 de setembro de 2022

Somos um povo que ri quando devia chorar

Somos um povo que ri quando devia chorar

A ONU publicou recentemente seu relatório anual sobre o nível de felicidade em cada país do mundo. O Japão, por exemplo, está em 55º lugar, o que não é grande coisa para um povo tão rico e estável. Talvez não seja mais feliz por falta de espaço e excesso de trabalho. Recentemente um japonês apertou os olhos um pouquinho mais e inventou o que ele aponta como um eficiente paliativo para os dois problemas. Como todo brasileiro sabe e abomina, lá os empregados chegam a trabalhar até oitenta horas extras por mês, geralmente sem receber um iene por isso. Não é sem razão, pois, que com frequência se trancam no banheiro, não para fazer no banheiro o que no banheiro se faz no resto do mundo, e sim para tirar um cochilo.

Foi possivelmente durante uma dessas sonecas que, enquanto o imperador também cochilava, seu engenhoso súdito sonhou construir um jeito de descansar que, não sendo tão bom quanto a cama, fosse melhor do que o vaso sanitário. Bolou uma caixa semelhante a um caixão que, colocada verticalmente num canto qualquer do local de trabalho, pudesse acomodar os sonolentos. A engenhoca possui apoio para a cabeça, as costas e os pés, de modo que, garante o inventor, mesmo sem estar deitado, nela se pode dormir com bastante conforto.

Na pesquisa da ONU, os países mais felizes são os de sempre, que estão ali se revezando anos a fio, sobem um pouquinho, descem um pouquinho, mas não largam a taça: Finlândia, Dinamarca e Suíça foram novamente os primeiros a subir ao pódio. Não faltam, no entanto, surpresas.  Por exemplo: Israel ocupar a nona posição, apesar de se dar tão mal com os vizinhos palestinos. Estes, tão próximos e tão distantes dos israelenses, despencam diretamente para o 122º. lugar. E os Estados Unidos, que para muitos brasileiros parecem ser o céu ao alcance da mão, ficam num modesto 16º lugar. Basta, no entanto, dar um passo abaixo na fronteira para cair no México, e a situação piorar subitamente: 46º colocado.

Não dá para esquecer a Ucrânia e a Rússia. Nenhuma das duas jamais figurou entre os nossos principais sonhos de viagem e de fato estão, respectivamente, na 96ª e 80ª colocação. Agora, então, que viraram pesadelo é provável que apareçam ainda mais mal colocadas na próxima pesquisa. No fim da fila, na lanterna do campeonato, estão os três lugares onde as pessoas têm menos motivos para achar que a vida vale a pena: Zimbábue, Líbano e por fim o Afeganistão, habitat do povo mais infeliz do planeta.

E o Brasil? Bem, somos o número 38 do ranking. Entre os sul-americanos, perdemos para o Uruguai, que está oito pontos à nossa frente. Enfim, não gargalhamos tanto quanto na Suécia (7º), mas somos bem mais risonhos do que nossos vizinhos argentinos (57º), ou mesmo do que Portugal (56º). Entre duas e três mil pessoas foram ouvidas em cada um dos 146 países pesquisados. Os analistas ressaltaram que, em todos eles, dois fatores contribuem para tornar o povo mais ou menos de bem com a vida: o apoio que contam conseguir da sociedade em caso de necessidade, e a visão que têm da honestidade de seus governantes.

Os brasileiros talvez nem precisem de motivos para se sentirem felizes; porque, segundo dizia o antigo radialista Alziro Zarur, somos um povo que ri quando devia chorar. Rimos de nossas próprias desgraças e fazemos piadas de nossas próprias tristezas, que é o nosso jeito de ir sobrevivendo, ou pelo menos de nos irmos enganando.

Mas parece que, nos dois pontos destacados pelos pesquisadores, mal nos aguentamos em cima das pernas. São desumanas entre nós as diferenças econômicas e sociais; pessoas que ocupam o mesmo espaço urbano são estranhas, às vezes inimigas. E a constatação de que, quanto mais altos os escalões do poder, maiores são os recursos destinados às mordomias, luxos, vantagens e benefícios de quem já os possui em excesso, enquanto outra parte da população é tratada como um povo estrangeiro, com o qual nada se tem a ver e ao qual nada se deve.

Que esperar dos resultados da pesquisa que sairá em 2023? Não vamos sonhar em chegar perto dos líderes do campeonato mundial de felicidade, mas talvez nos afastemos um pouco mais do grupo da lanterna. Como dizem os árabes, “in shaa Allah”, oxalá, se Deus quiser!

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Papo de fila

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

─ Essa é a fila do auxílio emergencial?

─ Não, essa aqui é da vacina.  A do emergencial foi ontem.

─ Tá bom. Vou ficar assim mesmo. Vacina é besteira, mas eu tava passando, vou aproveitar a fila. Será que demora muito?

─ Sei lá! Chegou agora e já tá querendo ser atendido! Deve ter umas duzentas pessoas na frente.

─ É, esse povo adora uma agulhada.

─ Essa é a fila do auxílio emergencial?

─ Não, essa aqui é da vacina.  A do emergencial foi ontem.

─ Tá bom. Vou ficar assim mesmo. Vacina é besteira, mas eu tava passando, vou aproveitar a fila. Será que demora muito?

─ Sei lá! Chegou agora e já tá querendo ser atendido! Deve ter umas duzentas pessoas na frente.

─ É, esse povo adora uma agulhada.

─ Gosta mesmo é de fila. Eu por mim acho melhor uma boa fila do que ficar em casa sem nada pra fazer. Pra falar a verdade, não tem nem comida pra fazer. Na fila a gente cansa, mas pelo menos tem com quem conversar.

─ Se é! Outro dia entrei numa fila, fiquei hora e meia, quando cheguei lá, só tinha um muro na frente.

─ Ninguém te avisou, não?

─ Tava cada um na sua, esperando ganhar qualquer coisa, nem que fosse um pedaço de osso pra sopa. Pobre é assim mesmo, acredita na sorte.

─ Que sorte, mas sorte! Pobre nasceu pra ter azar na vida. E quando pobre tá de azar, já sabe, urubu de baixo defeca no de cima, com licença do palavrão.

─ A senhora tá aqui há muito tempo?

─ Cheguei às cinco. Me disseram que ontem à noite já tinha gente esperando. Acredita que teve um que dormiu abraçado na grade do portão?!

─ Pra tomar vacina?

─ Nada! A gente entra na fila, depois vê pra que que é... Hoje é vacina...

─ Contra quê?

─ Sabe que eu não sei. Deve ser a tal da astrogênica. Uns falam bem, outros falam mal. Vou experimentar. Se eu virar jacaré não vai fazer muita diferença. Quem sabe vou até caçar na lagoa. Só assim vou comer carne.

─ Eu, modéstia à parte, ontem mesmo comi carne.

─ Deixa de contar vantagem homem de Deus! Pela tua cara, tu não vê carne tem muito tempo!

─ Alto lá! Não é por tá pele e osso que tou passando fome!

─ E onde foi que tu comeu carne?

─ Pra falar a verdade, não foi bem carne. Senti um cheirinho de churrasco, fiquei do lado de fora chupando aquele ar. Aí, o pessoal encheu a cara, começaram a jogar osso pelo muro. Mas tinha uns fiapinhos de carne. Uma delícia!

─ Se até duas horas não chegar minha vez, vou-me embora. Amanhã eu volto. As crianças ficaram sozinhas em casa. Quer dizer, tem a Crenilda que toma conta.

─ Ainda bem que a senhora tem uma pessoa pra ajudar...

─ Pessoa coisa nenhuma.  Crenilda é a cachorra vira-lata lá de casa.

─ Bem, acho que eu já vou indo...

─ Mas já? Não vai esperar? Daqui a pouquinho chega a nossa vez!

─ Tem uma fila lá no outro lado da cidade.

─ Fila de quê?

─ Não sei, não. Mas dizem que é uma fila das boas...

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Nome feio

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Algumas dessas localidades batizadas de maneira incomum, às vezes beirando o pornográfico

Tem gente que acha esquisito o nome de certas cidades brasileiras. De fato, Varre-Sai, Não-Me-Toque e outras tantas são...  não digamos que sejam esquisitas, mas originais, e talvez assim os varre-saienses e os não-me-toquenses não se aborreçam conosco se por acaso um dia (nunca se sabe) vierem a pôr os olhos nestas mal traçadas linhas.

Algumas dessas localidades batizadas de maneira incomum, às vezes beirando o pornográfico

Tem gente que acha esquisito o nome de certas cidades brasileiras. De fato, Varre-Sai, Não-Me-Toque e outras tantas são...  não digamos que sejam esquisitas, mas originais, e talvez assim os varre-saienses e os não-me-toquenses não se aborreçam conosco se por acaso um dia (nunca se sabe) vierem a pôr os olhos nestas mal traçadas linhas.

Antes de continuar, convém explicar aos leitores mais jovens o significado da expressão “mal traçadas linhas”. Em priscas eras (outra expressão que precisaria ser explicada, mas fica para outro dia, ou talvez nunca), pois bem, em priscas eras as cartas eram escritas ─ acreditem! ─ à mão e, mais incrível ainda, levadas na mão a uma agência dos Correios, a partir de onde, de mão em mão, acabavam nas mãos do carteiro que as entregava nas mãos do destinatário.

Tem até aquela música que diz assim: “Quando o carteiro chegou/ E o meu nome gritou com a carta na mão/ Ante surpresa tão rude/ nem sei como pude/ chegar ao portão”, e por aí vai. Caso alguém ache esses versos ridículos, lembre-se de Fernando Pessoa: “Todas as cartas de amor são ridículas/Não seriam de amor se não fossem ridículas/ Também escrevi, no meu tempo,/ cartas de amor, como as outras, ridículas”.

Pelo número de vezes que escrevi a palavra mão no segundo parágrafo, dá para perceber como a coisa era complicada e demorada. O sujeito podia mandar uma carta pedindo a mão (outra vez!) de uma jovem em casamento e, quando recebia a resposta, já estava casado ─ com outra, naturalmente. E sempre, por modéstia ou por ser de fato dono de um verdadeiro garrancho, o emitente começava pedindo desculpas pelas “mal traçadas linhas” formadas por sua letra.

Mas voltemos a falar das cidades com nomes esquisitos. Andei, por falta do que fazer, ou mais precisamente por falta de vontade de fazer o que precisava ser feito, dando uma olhada na internet para me divertir com algumas dessas localidades batizadas de maneira incomum, às vezes beirando o pornográfico. É o caso de Pintópolis (MG), ou seja, cidade do pinto, palavra que no Brasil designa várias coisas, entre elas... o pinto.

No Rio Grande do Sul encontramos Entrepelado. Para se dar bem lá, é só o visitante não levar ao pé da letra a placa que o saúda na entrada do município, do contrário, poderá ser preso por atentado ao pudor. Continuando a viagem pelo RS, encontramos a cidade de Sério, onde todo mundo pode se divertir, mas sem perder a compostura. É um lugar onde o bom cidadão, ao botar a cara na janela, evita ficar mostrando os dentes pro vizinho. Quando alguém telefona de lá e o ouvinte duvida, o sujeito garante: “Estou em Sério, sério!” Nem vou falar em Anta Gorda, para os gaúchos não me acusarem de estar de implicância com eles.

Não faltam outros exemplos eloquentes. Por exemplo: Jijoca de Jericoacoara (CE), onde as crianças passam seis meses na escola aprendendo a falar o nome do lugar em que vivem; Virginópolis, onde as mulheres só podem morar até se casarem: depois da lua de mel, têm que ir viver em outro lugar, para não desmerecer o nome da cidade; Barro Duro (PI) ­─ não deve ser mole morar num lugar desses! Tem Rolândia (PR) e Dormentes (PE), entre outras preciosidades. E, como se tudo isso fosse pouco, ainda tem Presidente Kennedy, grande pecado do Espírito Santo!

Mas não é só o Brasil que tem dessas coisas. Nos States, só para ficar no país que os brasileiros tanto admiram (a ponto de batizar uma cidade com o nome de um presidente deles), tem a Misery Bay (Baía da Miséria), a Grumpy Dog Road (Rodovia do Cachorro Mal-humorado), Melancholy Waterhole, (Buraco da Água Melancólica), The End of the World (O Fim do Mundo), Mistake Island (Ilha do Erro) e, para encerrar uma lista que poderia encher mais uma página, Defeated (Fracassado). Mas não tem nenhuma chamada Presidente Kubitscheck.

Enfim, há nomes para todos os gostos e desgostos. Feliz de quem pode dizer que nasceu em Nova Friburgo e não precisa passar pelo constrangimento que deve se abater sobre quem é obrigado a se declarar kennediense!

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É uma fria!

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Já comemorou cinquenta vezes o aniversário de falecimento

Não sei se você sabe o que é criogenia, ou mesmo se está interessado no assunto. Pode ser até que você já tenha feito uma encomenda ou, melhor dizendo, que você já tenha “se encomendado”. Em qualquer dos casos, vou passar algumas informações a respeito que poderão ser úteis, se não a você, talvez a algum outro leitor que sonhe com a imortalidade, não da alma e na eternidade, mas do próprio corpo e aqui na Terra mesmo.

Já comemorou cinquenta vezes o aniversário de falecimento

Não sei se você sabe o que é criogenia, ou mesmo se está interessado no assunto. Pode ser até que você já tenha feito uma encomenda ou, melhor dizendo, que você já tenha “se encomendado”. Em qualquer dos casos, vou passar algumas informações a respeito que poderão ser úteis, se não a você, talvez a algum outro leitor que sonhe com a imortalidade, não da alma e na eternidade, mas do próprio corpo e aqui na Terra mesmo.

A criogenia é, se assim se pode dizer, uma ciência, mas há quem ache que não passa de charlatanice ou, na melhor das hipóteses, de uma ilusão. Porque bem espantoso é o objetivo dessa pseudociência: conservar corpos humanos a uma temperatura tão baixa (- 1960. C) que ele não se desfaça com o tempo. Naturalmente, é necessário que o indivíduo, antes de mergulhar nessa friagem, esteja devidamente morto e que tenha manifestado em vida seu desejo de virar picolé.

Também é necessário que disponha de uma boa reserva de dólares, porque ficar dormindo num dos laboratórios que prestam esse serviço custa, nos Estados Unidos, duzentos mil dólares, para o corpo inteiro, e oitenta mil dólares somente para a cabeça ─ caso o freguês considere que já não vale mais a pena investir no corpo e queira preservar somente sua parte pensante, com tudo o que nela acumulou enquanto vivia. Na Rússia o serviço completo pode ser feito por modestos oitenta mil dólares, mas, como diria algum ucraniano, vá lá confiar na Rússia. Com um pequeno acréscimo é possível levar junto seu cão ou gato de estimação. Ninguém ainda manifestou o desejo de que venham a renascer também o patrão, o cunhado ou a sogra.

Se alguém acha que isso é uma loucura, fique sabendo que já existem 350 corpos congelados, à espera do dia feliz em que a medicina tenha encontrado um jeito de ressuscitar a matéria e trazer seu dono novamente à vida. Um desses terráqueos esperançosos já descansa agasalhado no gelo há cinco décadas. Ou seja, já comemorou cinquenta vezes o aniversário de falecimento.

As dúvidas ainda existentes não são apenas quanto ao retorno do corpo para o mundo dos vivos, mas também como será esse camarada que vier a ocupar novamente um lugar no planeta, depois de ter estado sabe-se lá onde, dormindo à espera da palavra mágica que o traga de volta. Será que ele reconheceria o mundo e as pessoas ou, mais grave ainda, será que ele reconheceria a si mesmo? Por outro lado, já imaginou se um dia for possível dar outra chance a um bilhão e duzentos milhões de chineses e a outro tanto de indianos? Vai faltar espaço para a entrada de gente nova.

         Quanto a mim, prefiro deixar a questão da morte nas mãos de Deus que, ao contrário dos criogenistas, sabe o que faz. E depois, é como escreveu o poeta Paulo Leminski:

“Vida e morte/ amor e dúvida/ dor e sorte/ quem for louco/ que volte.

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