Blog de roberiocanto_18846

Conversa de beiral

quarta-feira, 01 de junho de 2022

— Moça, dá licença. Não se assusta não. Dá licença pra eu sentar aí do seu lado.

— Que maluquice é essa, cara! Tá brincando comigo? Olha que eu pulo agora mesmo. Tou brincando não.

— Eu sei... Claro que não! Foi por isso que eu me resolvi também.

— Não se aproxima não. Nem vem com lero-lero, igual naqueles filmes que o policial vem chegando cheio de conversa e, de repente... Ninguém vai me fazer desistir não. Fica aí, se não eu pulo agora mesmo. Tou avisando.

— Vim te fazer desistir nada, menina. Eu vou é pular também.

— Moça, dá licença. Não se assusta não. Dá licença pra eu sentar aí do seu lado.

— Que maluquice é essa, cara! Tá brincando comigo? Olha que eu pulo agora mesmo. Tou brincando não.

— Eu sei... Claro que não! Foi por isso que eu me resolvi também.

— Não se aproxima não. Nem vem com lero-lero, igual naqueles filmes que o policial vem chegando cheio de conversa e, de repente... Ninguém vai me fazer desistir não. Fica aí, se não eu pulo agora mesmo. Tou avisando.

— Vim te fazer desistir nada, menina. Eu vou é pular também.

— O quê? Quem vai pular sou eu. Não se meta, se me faz o favor.

— Dá licença. A gente sentado conversa melhor. Dá licença. Ui, que altura!

— Fica longe. A laje é muito grande. Fica aí mesmo.

—Tá certo. Eu tava lá embaixo, no meio da multidão, ouvindo a conversa do povo. Tem gente querendo que você salte logo, tem uns até reclamando da demora. Um já tá nervoso, precisa ir embora e você não se decide.

— Decidida eu tou. E muito. Só tou aqui passando uns pensamentos a limpo.

— Pra que passar pensamento a limpo, se você vai morrer?  Besteira. Mas tem gente chorando, uma freira tá rezando um terço. Uma velhinha prometeu àquela Nossa Senhora lá da Polônia... como se chama? Acho que é Mediugorje. Se você não pular, ela vai pagar uma viagem à Disneylândia pro sobrinho que faz 12 anos hoje.

— Pois esse moleque vai ficar sem conhecer o Pato Donald, sinto muito.  E não é Polônia, é Iugoslávia.

— Já reparou como tem desocupado nessa cidade? Ninguém trabalha mais não? Há mais de uma hora lá na rua, olhando aqui pra cima.  E de lá nem dá pra te enxergar direito.

— Agora juntou mais gente, depois que você chegou.

— Uns dizem que você tem câncer, outros que teu marido te deixou.  O que mais tá correndo é que você roubou a loja onde trabalha, o patrão descobriu. 

— Se no Brasil alguém se matasse por ter roubado, lá em Brasília não tinha 8o andar que chegasse. Mas larga de conversa fiada: você quer mesmo se suicidar?

— Pois é. Eu vi você e pensei: ela vai se matar por essas mixarias, muito mais motivo tenho eu. Vamos de mãos dadas?

— Você acha câncer mixaria?

— Você tem câncer???

— Deixa de ser besta, cara!  Vira essa boca pra lá!  Meu problema é outro.  E o teu, qual é?

— Mulher ...

—Te traiu?

— Minha namorada há dois anos, veja só! Grávida!

— Mas isso é motivo pra alguém se matar? Francamente, cara. Um rapaz bonito igual você. Ah, vai embora. Me deixa morrer sossegada. Aliás, como você entrou aqui, se os bombeiros tentaram até arrombar a porta?

— Eu sou chaveiro. Quer dizer, fui. Abro qualquer porta. Será que aquele helicóptero é por nossa causa? Tamos ficando famosos.

— Vamos aparecer na televisão... Suicídio duplo não é todo dia que tem.  E eu tão mal vestida. Também, que diferença vai fazer depois? Mas essa de se matar porque a namorada tá esperando um filho teu... deixa de ser frouxo, homem.

—Nada disso. Eu nunca transei com ela. “Só depois do casamento”, “Sou virgem”, “Minha religião não permite”, e eu acreditando! Grávida! De outro, é claro!

— Não me faça rir. Que zinha que você arrumou, hem? Em todo caso, melhor agora do que depois do casamento. 

— E você? Vai ver que teu motivo é pior do que o meu. 

— É uma história muito comprida. Precisava de tempo pra contar. 

— Me conta, agora fiquei curioso.  Faz o seguinte: a gente desce para tomar um chope e você me conta a história.

— Mas depois a gente volta, que eu não vim aqui pra dar esse espetáculo todo à toa.

— Depois a gente vê. Primeiro a gente toma um chope. Depois a gente vê o que faz.

 

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A moça que gostava de estudar

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Nunca se sabe o que esperar de uma pessoa que gosta de ler e de estudar

Nunca se sabe o que esperar de uma pessoa que gosta de ler e de estudar

No bairro onde passei alguns anos de minha infância, estudar não era coisa a que se desse grande valor. Para a maioria das famílias, se o filho aprendesse o suficiente para conseguir emprego numa fábrica ou numa loja, já estava muito bom. Passar disso era ambicionar demais, já era estar querendo se meter a filho de doutor. Minha mãe, no entanto, era uma exceção, não sem motivo ela se chamava Conceição (no oficial); Ceção (para as coisas do dia a dia) e uma de suas ideias fixas era arrumar colégio para nós. De modo que eu e meus irmãos tínhamos grande dificuldade de escapar dos estudos. Apesar disso, eu comungava da crença geral entre a garotada local de que estudar contrariava a natureza humana. Não podia ser normal a gente ter que renunciar a jogar pelada ou apostar corrida pelas ruas para se enfurnar entre quatro paredes, contemplando a professora diante de um quadro negro, fazendo umas contas malucas que ninguém entendia.

 Mas havia nesse bairro certa mocinha que gostava de estudar. Aquilo rompia com a harmonia do universo. Lá ia ela carregando livros e cadernos e, ao contrário de nós outros, com a cara mais feliz do mundo. Sim, ela não apenas ia ao colégio, mas ia contente. Verdade que, sendo alguns anos mais velha do que nós, frequentava uma escola no Centro e ainda se dava ao luxo de ir e vir de bicicleta, enquanto nós marchávamos a pé para o grupo escolar da vizinhança. O mais assombroso era que havia quem garantisse que ela gostava também de ler, isto é, não se limitava aos que os professores mandavam, mas por conta própria enfiava os olhos e a cara em livros que ela mesma procurava.

 Diante de tamanha estranheza, também os adultos tinham a suspeita de que a moça era, como então se dizia, meio gira. Ou seja, meio pancada, meio abestada. Para falar francamente, meio maluca. A família, no entanto, tratava-a com naturalidade e até mesmo com orgulho. A mãe dela chegava a olhar a gente de cima, como se dissesse que a filha não era da nossa laia, muito pelo contrário, era alguém que gostava de estudar. Alguém que podia até vir a ser datilógrafa em algum escritório ou secretária em alguma fábrica, por que não?

Nós, meninos, nunca tivemos dúvida sobre a pouca sanidade mental da moça. Alguns, mais benevolentes, a consideravam esquisita; os demais a tinham na conta de doida varrida. Quando ela passava pedalando, pontas de cadernos e livros olhando para fora da pasta abarrotada, a gente parava para contemplar com curiosidade e um pouco de medo ─ nunca se sabe o que esperar de uma pessoa que gosta de ler e de estudar. Mas o fato é que a moça nunca nos fez outro mal, a não ser o mau exemplo que dava e que alguns pais logo começaram a querer que os filhos imitassem. Isso não me afetou muito porque, como já disse, mesmo que eu não quisesse, Ceção me mandava para as aulas. Quanto aos livros, muito cedo também eu viria a contrair a incurável doença de gostar deles.

Aquela misteriosa moça só deixou de ser para nós um mistério quando tomou um tombo de bicicleta. Aconteceu que certo dia ela não conseguiu equilibrar em cima de duas rodas o corpo e a sabedoria e ambos vieram ao chão. A pobrezinha ficou esparramada no meio da rua, numa deselegância que ninguém podia imaginar numa pessoa tão estudiosa. Um cidadão chegou para socorrê-la antes que ela pudesse arrumar a saia, tendo ele, no entanto, a infeliz gentileza de acalmá-la dizendo: “Não adianta esconder que eu já vi tudo!” Mas levantou-a com cuidado, enquanto os moleques juntavam pertences dela e cheios de cerimônia os entregavam.

A partir daquele dia deixamos de ver aquela jovem como um ser estranho, quase do outro mundo. Foi com certeza o momento em que de uma vez por todas compreendemos que os intelectuais são apenas seres humanos e que, como todos os mortais, estão sujeitos a quedas e fracassos.

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A operária do crime

quarta-feira, 04 de maio de 2022

Bem tranquilos estavam todos da casa, quando a polícia bateu à porta

Bem tranquilos estavam todos da casa, quando a polícia bateu à porta

O jornal garante que a velhinha tem 89 anos, é bisavó, e está em plena forma. Condenada a 32 anos de prisão, não se deu por achada, não deixou que a polícia a achasse e por muitos anos continuou trabalhando no que melhor sabia fazer: roubos e furtos, que são sua especialidade desde jovem. Não que ela fuja de tarefas mais pesadas, se a situação assim o exigir. Aos 80 anos namorava um ex-PM, mas tendo o bravo militar cometido a imprudência de juntar algum dinheiro, ela resolveu se ressarcir do tempo perdido com aquele romance e rompeu o relacionamento da forma mais radical possível: matou o desafortunado companheiro (desafortunado nos dois sentidos: ficou sem a fortuna e sem a vida). Nessa empreitada, no entanto, precisou recorrer à ajuda do filho. Este, menos competente do que a mãe, foi parar na cadeia, enquanto ela saiu por aí batendo asas e carteiras, para grande desassossego da população.

Mas quem desconfia de uma velhinha que se chama Socorro, tem os cabelos brancos e aquele doce olhar que é a maior doçura de toda vovozinha, até mesmo a de Chapeuzinho Vermelho? De nada desconfiou a família que a empregou como cuidadora, nada menos do que cuidadora! Bem tranquilos estavam todos da casa, quando a polícia bateu à porta, não por causa daquela veneranda senhora, que, apesar da idade, ainda se esfalfava amparando quem mais do que ela precisava de ajuda para ir vivendo. É que, por acaso, mero acaso, os roubos na região de repente haviam aumentado exponencialmente.

O azar da ilustre dama foi, portanto, ter arrumado um trabalho honesto, ainda que com desonestas intenções. Tinha naquele lar um pouso certo e seguro, uma base de operações a partir da qual podia exercer sua atividade laboral nos prédios circunvizinhos, sem as amolações e contratempos comuns a outros trabalhadores que moram em bairros pobres, desses que a polícia visita com regularidade. Só foi descoberta porque os investigadores, ao entrarem no apartamento para as perguntas de praxe, levaram o maior susto: “A senhora por aqui!”. Estava esclarecida a onda de roubos que obrigara a polícia a elaborar as mais variadas explicações, quando a explicação era tão simples e ao mesmo tempo tão inacreditável. A família empregadora não desconfiava de nada e estava bem satisfeita com o seu trabalho. Mas, por via das dúvidas, foi conferir as joias da casa. Não faltava um só botão. A empregada cumprira fielmente o que prometera ao ser contratada: não mexer em nada que não lhe pertencesse.

Ainda agora o STF está analisando a tal “revisão da vida toda”. Trata-se de saber se a aposentadoria do trabalhador brasileiro deve ser calculada pelo que ele recebia a partir de 1994, ano do Plano Real, ou se desde que ele começou a contribuir para o INSS, caso tenha sido antes daquela data. Na avançada idade em que se encontra, e estando em atividade a tanto tempo, sem nunca ter tirado férias, a dedicada operária do crime certamente tem direito a um salário a altura de sua longa dedicação à profissão que abraçou. Alguém dirá que ela não contribuía com a Previdência, muito pelo contrário. É verdade, mas não será a única dentre os nossos compatriotas a viver às custas da nação sem ter contribuído para a sua riqueza.

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Uma personagem da minha infância

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Tanto a missa quanto o pão doce são capazes desses milagres

Tanto a missa quanto o pão doce são capazes desses milagres

A maior ingratidão é que nem do nome dela eu me lembro. Mas, também, para uma criança de 7 ou 8 anos a pessoa chamar-se João ou Maria, Zezé ou Greta Garbo nenhuma diferença faz. Nem por isso deixa de ser ingratidão. Pois ela foi uma personagem importante no filme da minha infância, nunca protagonista, mas por algum tempo uma figurante de destaque. Morava próximo à nossa casa e, todo domingo, ainda de madrugada, batia levemente na nossa porta (o que agora me faz lembrar os versos daquela “Balada da neve”, de Augusto Gil: “Batem leve, levemente, / como quem chama por mim. / Será chuva? Será gente? / Gente não é, certamente, / e a chuva não bate assim”). Também madrugadora, mamãe já tinha nos acordado e aprontado. E então aquela santa vizinha nos levava de Olaria até o Centro para assistirmos à missa na catedral.

 Íamos a pé, que nenhum de nós tinha dinheiro para o luxo de pegar ônibus, e nem sei se havia ônibus àquela hora. Ela, embora tão ou mais pobre do que nós, talvez pudesse pagar sua própria passagem, mas e as cinco ou seis crianças que ela levava com os cuidados de uma galinha que tomasse conta de pintinhos alheios? Talvez ela sonhasse que daquela ninhada sairia algum santo. No que me diz respeito, reconheço tristemente que esse sonho, se existiu, não se realizou, e só me consola a certeza de que ela não chegou a ver os ralíssimos juros de santidade que resultaram de seus excelsos investimentos em mim. Mas, talvez, quem sabe, algum dos outros meninos pôde compensá-la por aquelas caminhadas nas frias manhãs dos domingos friburguenses.

Não sei por que não íamos à missa numa das igrejas do bairro, tão mais próximas de nossas casas. Duas hipóteses me ocorrem. Pode ser que ela acreditasse que a santidade não se alcança sem algum sacrifício, no que estaria coberta de razão. Veja se Irmã Dulce dormia em palacetes ou se Francisco de Assis andava de carruagem. E o apóstolo Paulo, que teve que cair do cavalo e ficar cego para entrar na linha? Outra possibilidade é que ela queria premiar nosso bom comportamento, e para isso não bastavam as conhecidas padarias do bairro. Uma padaria no coração da cidade, na praça principal... era uma emoção a mais, um acontecimento na vida de crianças tão humildes.

Além do que, provavelmente sacrificando boa parte dos seus ínfimos ganhos de operária, depois da missa ela nos levava à padaria e prodigamente pagava um pãozinho doce para cada um de nós. Era só isso, era tudo, era demais. Voltávamos para casa de alma leve, que tanto a missa quanto o pão doce são capazes desses milagres, quando neles se põe um coração puro e uma barriga vazia.

Só voltei a vê-la muitos anos e muitos pecados depois, quando fui com um grupo de alunos à Casa dos Pobres. Eu a reconheci imediatamente, mas ela apenas me olhou sem me olhar. Marcos nos conta (capítulo 8, versículos de 22 a 26) que Jesus curou um cego em duas etapas e ele só iria enxergar com clareza na segunda delas. Na primeira, disse ter visto os homens e que eles lhe pareciam árvores andando. Então, provavelmente eu era para ela não mais que uma árvore que se mexia no meio de outras árvores inquietas.  E assim eu me afastei, e talvez a velha senhora, cabelos tão alvos, sentadinha no banco, ouvindo as vozes infantis que a rodeavam, vagamente se lembrasse das crianças que ela muito antigamente levava à missa. Não sei se alguma delas foi ou irá para o céu, mas quem as conduzia certamente tem lugar garantido, e será recebida por São Pedro como a Irene de Manuel Bandeira: “Entra, Irene, você não precisa pedir licença”.

 

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Uma boa dose

quarta-feira, 06 de abril de 2022

Sem afobação e sem vacilação, trate de fazer sua encomenda

Sem afobação e sem vacilação, trate de fazer sua encomenda

Eu sei que você toma um golinho de vez em quando e não sou eu que vou criticá-lo por isso. Beber não é problema, o problema é ficar bêbado, o que sempre tem graves consequências, às vezes graves demais. Mas são coisas bem diferentes e é de muita sabedoria e de elogiável prudência não confundir uma com a outra. Então, se você toma seu traguinho e não perturba ninguém, acho que está no seu direito. Não chego ao exagero sem pé nem cabeça daquele samba antigo que dizia “Eu bebo sim, tô vivendo, tem gente que não bebe, tá morrendo”. Quem vive bebendo não só está se matando aos poucos como, pior ainda, frequentemente destrói a vida de outras pessoas.

Mas, como estou sabendo por fonte fidedigna que você já bebia com moderação muito antes de as propagandas serem obrigadas a dar esse conselho (que os fabricantes sinceramente desejam que ninguém siga), e como sei que você está nadando não em bebida, mas em dinheiro, vou dar uma notícia que com certeza vai lhe interessar. Uma destilaria escocesa acaba de lançar um uísque ao moderado preço de R$ 635.000,00 a garrafa. O produto tem 81 anos e talvez seja mais velho do que você. Ou seja, quando você acordou para a vida, ele já estava dormindo num barril de carvalho, do qual só saiu agora, para ser finalmente vendido nos mais elegantes botequins do mundo. Tão elegantes que não se chamam botequim, embora o sejam, apenas com toalhas mais limpas e garçons com luvas.

Não é necessário que você saia correndo para adquirir três ou quatro das 288 garrafas que foram produzidas. Elas ficarão em exposição até que o dono resolva colocá-las à venda. Por outro lado, também não é bom demorar muito para tomar a iniciativa, porque você não é o único ricaço do mundo que gosta de um bom uísque. Ainda mais como esse, que mistura os sabores de chocolate, canela, trufa, caramelo, gengibre e abacaxi, além do uísque propriamente dito.

Sem afobação e sem vacilação, trate de fazer sua encomenda ou acabará perdendo essa oportunidade, como já perdeu outra da maior importância: a de saborear o segundo colocado na lista dos “mais velhos”, que durante 80 anos esperou pacientemente no barril, até ser vendido pela bagatela de R$ 1.000.000,00 a garrafa. Não, eu não errei na quantidade de zeros.

De minha parte, continuarei me conformando com uma cerveja de vez em quando e um vinho sempre que possível. Mas, se você realmente comprar o uísque de um milhão ou mesmo o de 635 mil e me chamar para um brinde, aceitarei o convite pelo prazer de sua companhia e para não parecer orgulhoso. Prometo não fazer como a raposa da fábula que, após tentar sem sucesso alcançar o cacho de uvas, sentencia: “Estão azedas”.

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As mães ucranianas

quarta-feira, 23 de março de 2022

Se Deus não segurar o dedo nervoso dos grandes deste mundo, virão as bombas todo-poderosas

Lembro-me mais ou menos de uma frase do Padre António Vieira sobre a guerra. Também mais ou menos sei onde ela está e vou procurá-la. Ei-la: “A guerra é aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal algum que não se padeça, ou não se tema; nem bem que seja próprio e seguro”.

Se Deus não segurar o dedo nervoso dos grandes deste mundo, virão as bombas todo-poderosas

Lembro-me mais ou menos de uma frase do Padre António Vieira sobre a guerra. Também mais ou menos sei onde ela está e vou procurá-la. Ei-la: “A guerra é aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal algum que não se padeça, ou não se tema; nem bem que seja próprio e seguro”.

Já no tempo dele era assim. Muito antes dele já era assim, terá sido sempre assim, desde o momento em que o homem primitivo, que mal havia levantado a cara do chão, sentiu-se capaz de segurar um pedaço de pau ou de atirar uma pedra e ferir outro homem. E hoje, milênios e milênios depois, primitivos continuamos, agora com armas mais destrutivas do que quanto pau e pedra possam existir no universo. Armas capazes de ferir não um, mas milhares, milhões; armas inteligentes, certeiras, fatais. E, se Deus não segurar o dedo nervoso dos grandes deste mundo, virão as bombas todo-poderosas. Talvez nem se possa falar delas no plural, pois bastará uma para que tudo vire pó, fumaça, nada. E para que finalmente a vida se cale no planeta Terra.

A cada minuto a guerra nos atinge. Não há como ignorá-la, ainda que tentemos fechar os olhos, tapar os ouvidos, calar a consciência. Bombas explodem, prédios desabam, pessoas correm, tentando superar estradas, cruzar fronteiras. Vão carregando sacos ─ roupas, remédios, documentos ─ e carregando-se uns aos outros. O andar trôpego e a cara sofrida com que avançam penetram em nosso coração. Não o coração dos românticos, aquele músculo incessante que trazemos no peito e que na verdade nunca se alegra ou se entristece. Mas aquele coração que é a nossa espiritualidade, nosso sentimento do mundo, nossa própria humanidade.  O coração que nos distingue das coisas brutas como a pedra, e mesmo dos outros animais que compartilham este mundo conosco ─ serpentes, jumentos, passarinhos.

E todos nós temos rezado, cada um a seu jeito, pois há muitas maneiras de rezar e as melhores independem das palavras. Sim, rezamos por todos os que sofrem e morrem em meio ao barulho, a fumaça e a escuridão, perdidos entre os gritos e gemidos que ressoam naquele pedaço do mundo tão distante e tão ao alcance do nosso coração. Rezamos por russos e ucranianos, que o sofrimento e a dor não conhecem nacionalidade. E se rezamos com maior fervor pelos ucranianos é porque eles estão sendo agredidos, porque são mais fracos, porque morrem mais. Sim, rezemos pelos ucranianos, e ainda mais pelas mulheres ucranianas que sofrem pelos maridos e pais que estão no fragor da batalha ─ ou talvez não mais, talvez já tenham abandonado a luta e estejam estirados no chão, sujos de terra e de sangue.

E mais do que por todas, rezamos pelas mães ucranianas, que ora se escondem, ora correm, ora se encolhem, e disfarçam suas fraquezas e seus medos, para fazer deles força e determinação. Lá vão elas, bolsas despencando do ombro esquerdo, a mão direita segurando uma criança, e mais outra que dorme no seu colo. Quem sofre mais do que essas mães? Nem mesmo os pequeninos, que esses ao menos têm um vulto que os afaga e conduz, ainda que aos trancos e barrancos. As mães ucranianas lutam, temem e tremem sozinhas ─ por si e por todos que elas amam.

Mas nessa calamidade composta de todas as calamidades, rezemos também pelas mães russas, muitas das quais têm se manifestado contra a guerra, apesar de reprimidas pelo governo. Pois de que vale para qualquer mãe ganhar uma guerra, conquistar um país e perder um filho?

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O banheiro do Papa

quarta-feira, 09 de março de 2022

Talvez nos faltem governantes com o espírito empreendedor daquele cidadão uruguaio

Talvez nos faltem governantes com o espírito empreendedor daquele cidadão uruguaio

É difícil abordar certos assuntos sem perder a elegância. Por exemplo: fiquei sabendo que a ONU estabeleceu dezenove de novembro como o Dia Mundial do Banheiro. A princípio achei engraçado, porque, embora existam as celebrações mais esquisitas que possam ser imaginadas, celebrar o vaso sanitário me pareceu um exagero além da conta. No entanto, mais do que engraçada, a data é triste.  No Brasil, a efeméride se destina a lembrar às autoridades em particular e ao povo em geral que mais de 35 milhões de brasileiros não têm onde se aliviar senão indo atrás do poste ou no meio do mato. Ou então o sujeito faz o que tem que fazer num penico e joga fora, caia onde cair, azar de quem estiver passando por perto na hora em que alguma coisa estranha sair voando pela janela.

Já no Brasil colônia os escravos tinham entre outras tarefas igualmente honrosas a de recolher de manhã o trono que seus senhores haviam enchido no dia anterior, colocá-los no ombro e ir até a praia ou rio mais próximo e despejar ali o precioso conteúdo que, equilibrando mal e mal, entornando aqui e respingando ali, iam levando pelas ruas afora. Aliás, na falta de praia ou rio, qualquer recanto ou esquina da cidade servia para receber esse presente matinal. A poluição era completa. A visual ainda podia ser evitada, sempre era possível virar o rosto para o outro lado. O problema maior era a olfativa, porque ninguém aguenta ficar por muito tempo sem respirar, e aos pulmões humanos mais convém um ar empesteado do que a falta de ar. Sem falar que mal cheiro não pede licença para existir, entra por uma janela e sai pela outra, não sem antes percorrer todos os cômodos da casa.

Não sei se assistiram ao filme o Banheiro do Papa. Pedindo licença pelo spoiler, vou contar. Numa cidadezinha do lado de lá da fronteira Brasil - Uruguai corre a notícia de que João Paulo II em pessoa vai passar por ali. A expectativa é de que milhares de pessoas, de ambos os países, se acotovelem para ver o Sumo Pontífice. Como a população local é bem pobre, todos começam a pensar num jeito de aproveitar a oportunidade para ganhar algum dinheiro. Ou seja, assim como aconteceu com o Natal e tudo mais, o que era espiritual virou comercial. Nos dias que antecederam ao grande evento, cada habitante investiu o que podia ou não podia em alguma coisa de que os turistas viessem a precisar ou quisessem levar como lembrança. A maioria recorreu aos seus supostos dotes culinários e, em consequência, ao longo das ruas por onde desfilaria a comitiva papal havia comida suficiente para matar a fome de todos os fiéis desde o ano zero da Era Cristã.

Um deles, no entanto, se fez uma pergunta mais oportuna: onde esse povo vai se aliviar depois de comer tudo isso? Assim pensando, investiu o dinheiro que não tinha na construção de um banheiro. Mas pobre dá tanto azar na vida que nem o Papa consegue amenizar e a passagem de João Paulo foi tão rápida que ninguém teve tempo sequer para um adeusinho. O máximo que a população viu foi a poeira dos carros que passavam em alta velocidade. O triste fim da história é que ninguém chegou a sentir fome e todo mundo foi embora sem comer e sem precisar, como diz o eufemismo, ir ao banheiro. De modo que o engenhoso construtor ficou ainda mais pobre, mais endividado e provavelmente menos católico.

Talvez nos faltem governantes com o espírito empreendedor daquele cidadão uruguaio. Administradores capazes de fazer com que cada brasileiro usufrua desse direito tão básico e tão esquecido: um banheiro onde possa se trancar, se sentar e ficar pensando na vida. Mas não façamos mal juízo dos nossos homens públicos e das, com licença da má palavra, mulheres públicas. Talvez todos eles pensem — com razão — que brasileiro pobre come tão pouco que não tem como nem por que correr ou recorrer ao vaso sanitário.

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Meninos

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Um menino não há de nascer em vão.

Um menino não há de nascer em vão.

A qualquer hora, podeis constatar: os meninos ainda nascem. As mesmas caras assustadas, o mesmo choro de espanto, o mesmo jeito frágil e indeciso de passarinho que pela primeira vez deixa o lar e vem conhecer a realidade aqui fora. A realidade é às vezes dura, às vezes agradável. Os meninos vão se acostumando a descobrir que existe o beijo e a bofetada, o sol e a lua, o jogo de bola e os deveres escolares. Os casais passam e os meninos olham, vagamente desconfiados de que assim começam todos os meninos. O pai chega do trabalho, a mãe traz um remédio amargo, a televisão sai do ar justo na hora do desenho, o avô vem visitar e entrega chocolate. Um dia chove, os meninos se chateiam, vão inventar moda dentro de casa; no outro dia é um exagero de sol, um imenso ovo amarelo estrelado no céu, piscina, picolé, peraltices pelas ruas.

Sim, os meninos ainda nascem, embora a muitos de nós isso possa parecer insensato e inútil. Mas em cada menino que nasce revivem todas as esperanças e todos os desafios. Todo menino inaugura o mundo novamente. Para ele não importa que os homens se trucidem há tanto tempo sobre a face da terra: o menino veio para a paz. Para ele não pesa que os homens bebam e joguem e matem e se matem: o menino veio para o equilíbrio e a sobriedade. Para ele não conta ser filho do amor ou do descuido da aventura: o menino veio para inventar a pureza e a responsabilidade.

O menino é tão inocente, tão confiante, tão menino, que se atira nos braços dos homens e adormece. Um adulto quer apagar a chama do futuro porque o menino é culpado desde sempre e está condenado a repetir os mesmos pecados. Outro adulto, no entanto, olha para aquela criança, água ainda não turvada, e quer abafar a sombra do passado, porque o menino é bem capaz de descobrir no vento uma cantiga nova, que possa redimir o mundo. Se os meninos ainda nascem é porque há esperança. Cada menino que nasce é outra oportunidade de um mundo melhor. Um menino não há de nascer em vão.

Dormem muito. Às vezes abrem os olhos e contemplam a vida em redor. Talvez desanimem do que veem, talvez ainda se sintam fracos para enfrentar tanta coisa contraditória. Até que um dia criam coragem e resolvem que já é hora de sair do esconderijo. Então descobrem que o trigo vira massa, a massa vira pão, mas as pessoas nem sempre têm o que comer e o pão que o diabo amassou não é apenas uma maneira de falar. Há pássaros e há gaiolas, mas a liberdade é uma fome incurável.

Adolf Hitler é um sujeitinho rígido e antipático; Albert Schweitzer toca piano e aplica injeções. Um homem foi assaltado, espancado e largado na estrada; dois outros passaram por ali e se afastaram, um terceiro, porém, tratou dele e o levou para a hospedaria. Há sempre guerras, porque muitos amam o poder e a glória, mas há também tantas guerras evitadas, porque outros amam a paz. Derrubam-se florestas para plantar cimento, para plantar fumaça, para plantar dinheiro, mas o vento, que ignora tudo isso, vai transportando pólen, feito um cupido ecológico.

Cedo os meninos percebem que assim é o mundo em que terão de viver. Então escolhem o lado em que vão ficar. Alguns crescem, criam barba e se transformam em apenas mais um homem, disparam o revólver, ferem o chão em que pisam, envenenam o próprio ar que respiram. Mas todos trazem em si a esperança, que é nossa, apesar das nossas fraquezas, de um dia em que “O homem confiará no homem / Como um menino confia em outro menino”, tal qual sonhou Tiago de Mello, o poeta.

Eis, pois, o que te digo, a ti que mal abres os olhos e quando o fazes não distingues o médico que te trata do gato que mia na janela: não te iludas, que a vida não é mãe nem madrasta: é sempre e para todo o mundo um pouco de cada coisa. Acredita que a travessia merece ser feita e que deves fazê-la de modo a deixar o caminho mais claro e fácil atrás de ti. Acredita na vida, que não pode ser um mar de rosas, mas é uma rosa que se abre a cada manhã. Acredita nos outros, que são apenas pessoas, mas desejariam ser anjos na terra ou estrelas no céu. E, sobretudo, acredita em ti mesmo e age de tal forma que as pessoas possam dizer, ao te virem passar: “É um bom menino, um bom menino”.

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A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.

A culpa é da rainha

quarta-feira, 02 de fevereiro de 2022

A coisa mais feia que você pode fazer em almoço da alta nobreza é pensar em comer

A coisa mais feia que você pode fazer em almoço da alta nobreza é pensar em comer

Você me desculpe, eu juro que ia te convidar. Há meses eu vinha planejando oferecer um almoço de Natal a todos os meus leitores. A mesa lá de casa tem seis lugares, dava bem pra todo mundo. E é claro que você estava na lista, aliás, era dos primeiros nomes. Até comecei a pesquisar os serviços de nossa cidade, mas temendo que alguém me achasse somítico, sondei um buffet de Brasília, o mesmo que serve ao Itamaraty, onde o brasileiro, mão aberta que nem ele só, oferece aos visitantes estrangeiros canapé de caviar, vinho francês e uísque escocês. E disso muito devemos nos orgulhar, porque embora não possamos desfrutar de tais delícias, os nossos governantes podem, em nome do povo, oferecê-las fartamente a quem nos visita, dando assim prova da generosidade da nossa gente e da riqueza da nossa Pátria.

Enfim, meu propósito era oferecer o melhor para vocês. Mas vejam só como todos os acontecimentos cósmicos estão interligados! Bem se diz que quando uma folha de árvore cai na Índia todo o clima da Amazônia se altera. Também se costuma dizer que quando os Estados Unidos se resfriam o Brasil dispara a espirrar. Pior é agora, com a China. Se a China cair de cama num dia, no dia seguinte o Brasil será internado no CTI econômico. Digo isso para deixar bem claro que se a ideia do nosso almoço não foi adiante a culpa não é minha, e sim da rainha da Inglaterra.  Pois foi uma decisão de Sua Majestade que me fez desistir de concretizar meu sincero desejo de reunir em volta da mesa (seis lugares) a legião de leitores que tenho e da qual tanto me orgulho.

Acontece que também a rainha tinha programado um almoço de Natal, que até podia ser mais fino do que o nosso, mas não ia ter caipirinha, cerveja, feijoada e laranja baía de sobremesa. Enfim, o almoço da realeza não me causava inveja, e creio que meus convidados poderiam sair trocando pernas, tomando bênção a sapo e chamando urubu de meu louro, mas com fome é que não sairiam.  E pelo que ouço falar, a coisa mais feia que você pode fazer em almoço da alta nobreza é pensar em comer. Aliás, nem pensar! O certo, o elegante, é se contentar com a rodelinha verde que está no meio do prato, contemplá-la demoradamente e depois, de olhos fechados (possivelmente imaginando uma farta macarronada), mastigá-la lentamente, como se estivesse saboreando um manjar dos céus, ou pelo menos uma churrascada aqui da terra mesmo.

Mas Elisabeth II, vejam bem, resolveu suspender o almoço que daria no Natal à sua parentada. Aliás, ela já havia feito o mesmo em 2020, em ambos os casos alegando a necessidade de evitar aglomeração. Eu, no entanto, estou convencido que o problema da Coroa Inglesa (estou me referindo à monarquia e não à pessoa da veneranda senhora) é de dinheiro. Embora possuindo a razoável quantia de quinhentos milhões de dólares em bens próprios (ou seja, dela, como pessoa física) e sem contar a riqueza que a persegue aonde quer que ela vá, a mais longeva dos ocupantes do trono britânico também há de estar passando por apertos financeiros. Isso porque com a pandemia caiu muito o número de visitantes na Inglaterra. Sendo a rainha, como de fato é, a principal atração turística de todo o Reino Unido, há de ter sentido o baque.

Então, se Sua Majestade cancelou o jantar, eu achei que não ficava bem, seria quase uma afronta ao Império Britânico se eu batesse pé e mantivesse a comemoração que havia planejado. Sei que mundo afora muita gente comeu e bebeu, celebrou tanto que nem deu tempo de o aniversariante do dia comparecer à festa. Eu, no entanto, me senti na obrigação de ser solidário à Rainha. Quanto ao almoço do Natal de 2022, não prometo nada. Vamos esperar para ver o que vovó Beth decide.

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Presente de Natal

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Eu estava num quiosque em Copacabana, tomando uma caipirinha atrás da outra, esperando Juliana e pressentindo que Juliana não viria. Tinha chovido durante o dia, a tarde estava cinzenta, o mar vinha que parecia querer engolir a cidade, mas de repente mudava de ideia e estancava na beira da praia. Eu fazia força para não pensar em nada, mas a Ju também era uma onda que ia e voltava sem cessar.

Eu estava num quiosque em Copacabana, tomando uma caipirinha atrás da outra, esperando Juliana e pressentindo que Juliana não viria. Tinha chovido durante o dia, a tarde estava cinzenta, o mar vinha que parecia querer engolir a cidade, mas de repente mudava de ideia e estancava na beira da praia. Eu fazia força para não pensar em nada, mas a Ju também era uma onda que ia e voltava sem cessar.

Foi aí que dois meninos passaram na frente do quiosque, chutando uma bola já meio gasta de tanto levar pontapé. Fiquei me perguntado onde, naquela tarde feiosa, eles iriam jogar, a areia ainda encharcada não era uma opção. Mal eles saíram do meu campo de visão e eu já tinha me esquecido de como eles eram, se eram brancos ou negros, se vestiam camisa de algum time de futebol ou uniforme escolar. Somente a bola ficou, quicando na minha memória.

... O mais importante era a bola. Na ruazinha obscura em que a gente morava, um menino tinha bicicleta — velha, mas tinha —. E o Gutemberg (a mãe dele brigava se a gente chamava ele de Guto), o Gutemberg até estudava em escola particular. Nada disso me doía. Mas quase todos tinham bola de couro, presente de Natais passados. E a minha era uma porcaria de borracha, a única vez que eu levei ela pra pelada foi a maior vaia, voltei pra casa chorando.

Era dezembro de novo. Eu não pensava em bicicleta, ou em passeio ao Rio de Janeiro. Gutemberg já tinha ido e dizia ser muito maior e mais bonita do que nossa cidade, com prédios que raspavam nas nuvens. Eu queria era uma bola de couro. Uma vez sonhei que estava entrando no campinho de terra, a bola apertada embaixo do braço, brilhando que nem que fosse de ouro.

Mamãe quase não saía mais da cama, vovó tinha vindo de Campos tomar conta da casa e atazanar a minha vida. Mal eu botava o pé na rua, e ela já estava na janela gritando: “Entra pra dentro menino!” Mas foi bom, porque papai não precisava mais pagar empregada. Além disso, eu vi ele falando com mamãe que as coisas estavam melhorando na oficina.

Os dois meninos passaram de volta. Reparei que estavam com camisa do Flamengo. Parece que tinham desistido de bater bola e iam fazer qualquer outra coisa enquanto a noite não chegava. Eu é que não desistia. Naquele Natal, vovó ajudando em casa, a oficina com mais serviço, eu podia enfim pedir uma bola de couro. Na vida toda, foi o único bilhete que escrevi pro meu pai.  Botei num envelope e enfiei no bolso do macacão dele. Não tive resposta, mas tive certeza. No dia 25 ia sair de casa bem cedo, chutando uma bola de couro novinha. A rua inteira ia ficar parada, me admirando dar chutinhos pra lá e pra cá, driblando a mim mesmo.

Vinte e quatro chegou, vovó fez rabanada e doce de abóbora. De noite papai saiu todo contente, todo mundo na casa parecia contente, até mamãe, que veio pra sala e ficou olhando a televisão velha que vovô tinha mandado lá de Campos.

Eu esperei até tarde. Mas depois pensei que era melhor dormir, para aumentar a emoção do presente quando acordasse. Levantei antes de todo mundo, corri para a sala e vi a sacola com meu nome. O coração disparou... A mão tremia enquanto eu rasgava o papel ...

Tomei mais uma caipirinha e fui me arrastando em direção ao apartamento. Juliana não viria mesmo. Há muito tempo eu já devia ter aprendido a não sonhar com coisas que não posso ter.

 

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