Animizades

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 07 de agosto de 2024

Pessoas que, embora nos conhecendo, gostam de nós

Pior do que encontrar um inimigo é dar de cara com um ex-amigo, porque este traz consigo, além da inimizade, a lembrança da amizade que acabou. Essa foi a ideia que me ocorreu quando, no labirinto das prateleiras do supermercado, esbarrei com uma pessoa com a qual convivi fraternalmente por alguns anos. Não sei se eu errei, se ele errou, ou se foram as circunstâncias que, no passado, ergueram entre nós uma parede tão concreta que, se um de nós escorregar, bate com a cabeça nela e ganha um galo na testa. Para falar a verdade, eu acho que eu estava com a razão e ele, claro, com a desrazão. Mas está na cara (dele) que ele pensa exatamente o contrário.

Em uma de suas palestras, Leandro Karnal conta uma história (ou será anedota?) sobre Voltaire. O famoso filósofo iluminista já estava nos últimos suspiros, partindo desta para a melhor (embora ele não acreditasse em outra vida e menos ainda em outra vida melhor). Um padre, querendo salvar aquela alma rebelde, insistiu com ele: “Abandona o demônio, renega o diabo!” Voltaire, ateu que era, respondeu: “Padre, eu estou pra morrer. Não é hora de fazer inimigos”.

Pois eu devoto a mais radical inimizade àquele “cujo nome não se diz”. Concordo com Riobaldo: “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta”. Afora isso, procuro me dar bem com todo mundo. Outro dia tive o trabalho de contar as pessoas que viram a cara quando dão o azar de passar por mim. Vai ver que são centenas, mas que eu saiba, declaradas, não foram além dos cinco dedos da mão direita. Depois disso, uma dessas pessoas faleceu, infelizmente antes que tivéssemos fumado o cachimbo da paz ou ao menos tomado em paz um cafezinho. As outras quatro estão aí, e eu peço a Deus que lhes dê vida longa, cheia de saúde e sucesso.

Porque a vida não é mais do que um pequeno jardim no fundo do quintal. Não vale a pena desperdiçar esse espaço, que já é pouco, cultivando ervas daninhas. Rancores e antipatias, raivas e animosidades. Ódio, então, nem se fala, que esse não só estraga o jardim inteiro como envenena quem o plantou.  A triste verdade é que somos mesquinhos demais para amar a todos de todo o coração. Mas não custa reservar ao menos um cantinho do jardim para aquelas pessoas que olham para as nuvens quando passam por nós. Ou mesmo para as que lamentam que já tivéssemos chegado na calçada quando o caminhão passou.

Lembremo-nos de Mandela, que, após décadas nas prisões do apartheid, saiu delas não para vingar, mas para pacificar. Lembremo-nos de Ghandi, que pagou com a vida sua teoria e prática de resistência pacífica, mas libertou a Índia do jugo inglês. E não nos esqueçamos de Teresa de Calcutá e Dulce da Bahia.

O que não falta no mundo é gente do mal, agentes do mal. Gente cheia de ódio, preconceito, fanatismo. Melhor deixá-las no fundo baú do esquecimento e lembrar apenas de quantas pessoas boas existem, daquelas que, embora nos conhecendo, gostam de nós.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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