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Imitando Tereza

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Quem é que nunca viveu a emoção de ver o mundo se transfigurar com a passagem da pessoa amada?

Quem é que nunca viveu a emoção de ver o mundo se transfigurar com a passagem da pessoa amada?

Em dezembro do ano passado, a excelente escritora e minha querida amiga Tereza Malcher publicou uma crônica em que comentava letras de músicas de sua preferência.  Isso me deu a ideia de fazer o mesmo. Afinal, não é pecado imitar quem sabe o que faz. Não tenho a pretensão de citar as canções mais lindas da MPB, mas apenas de registrar alguns versos de que gosto e que agora me vieram à mente. Certamente cada leitor faria suas próprias escolhas, e eu mesmo, se fizer outra lista amanhã, me lembrarei de coisas diferentes. Além do mais, tem a velha discussão sobre letra de música ser ou não poesia. Dizem os entendidos... bem... talvez... quem sabe... pode ser. Ou não.

Os teóricos ensinam que a letra é feita em função da melodia e nela se ampara para alcançar a atenção e a sensibilidade do ouvinte. São almas gêmeas, feitas para bailarem eternamente juntas. Às vezes, não somos capazes nem de assobiar um pedacinho da música, mas não conseguimos tirar os versos da cabeça. O contrário também acontece: as palavras ficam sepultadas sob a pesada pedra do esquecimento e os sons nos perseguem como um papagaio tagarela. Só quando de mãos dadas existem plenamente. As canções, quando lidas, normalmente se tornam prosa, e prosa sem graça.

Já a poesia se fundamenta na palavra, é a palavra que faz a melodia e, para sentir e entender um verdadeiro poema, é preciso agir como recomendou Carlos Drummond de Andrade: “Penetra surdamente no reino das palavras”. São elas que, flanando pelo cérebro, lidas baixinho ou exclamadas em voz alta, concentram a carga poética que existiu antes no autor e existe agora no leitor atento.

O que não significa que de quando em quando as coisas não se confundam. Boa parte das composições de Chico Buarque rompe essa barreira. Há letras que podem ser lidas, há poesias que podem ser cantadas. Mas, caramba!, já cheguei  ao meio da página com minhas rasas teorias e ainda não dei um exemplo. Vamos a eles, então.

“Minha rua é sem graça/ Mas quando por ela passa/ Seu vulto que me seduz/ a ruazinha modesta/ É uma paisagem de festa/ É uma cascata de luz” (A deusa da minha rua. Newton Teixeira e Jorge Faraj). Pode não ser a obra mais original da MPB, mas quem é que nunca viveu a emoção de ver o mundo se transfigurar com a passagem da pessoa amada? Ai de quem nunca!

“A saudade é o revés do parto/ A saudade é arrumar o quarto/do filho que já morreu”./ “A saudade dói como um barco/ Que aos poucos descreve um arco/ E evita atracar no cais”. “A saudade dói latejada/ É assim como uma fisgada/ No membro que já perdi. (Pedaços de mim. Chico Buarque). Toda a letra é uma sequência de metáforas e comparações originais, cada uma mais tocante do que a outra.

“Dorme o Sol à flor do Chico, meio-dia/ Tudo esbarra embriagado de seu lume/ Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia/ Só vigia um ponto negro: meu ciúme”./ “O ciúme lançou sua flecha preta/ E se viu ferido justo na garganta./ Tanta gente canta, tanta gente cala/ Tantas almas esticadas no curtume./ Sobre toda a estrada, sobre toda a sala/ Paira, monstruosa, a sombra do ciúme”. (O ciúme. Caetano Veloso). Dizem (talvez seja invencionice) que Caetano, viajando, parou às margens do São Francisco, onde lhe falaram de um homicídio ali cometido por alguém desvairado de ciúme. Verdade ou mentira, resultou nessa beleza de canção.

“Manhã, tão bonita manhã/ Na vida uma nova canção/ Cantando sou teus olhos/ Teu riso, tuas mãos/ Pois há de haver um dia/ Em que virás/ Das cordas do meu violão/ Que só teu amor procurou/ Vem uma voz, fala dos beijos/ Perdidos nos lábios teus”. (Manhã de Carnaval. Luís Bonfá e Antônio Maria). O maior sucesso dentre os vários sucessos do filme “Orfeu Negro”, gravada e cantada em muitos países, sobretudo nos Estados Unidos. É um clássico da Bossa Nova, e não é preciso dizer mais nada.

E você, qual seria a sua seleção?

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Um homem bonito

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Nascido em 1995 e falecido em 2024, com 100 anos de idade

Sammy Basso morreu e, para falar a verdade, foi justamente por causa de sua morte que eu fiquei sabendo que ele tinha existido. É estranho como, sendo a coisa mais previsível da vida, a morte sempre nos pega de surpresa. Ou quase sempre. Basso é uma das raras exceções. Já nasceu com prazo bem limitado de validade: treze anos. Viveu 28 e, apesar de tudo, viveu feliz e assim o declarou numa carta que deixou para ser lida no seu funeral.

Nascido em 1995 e falecido em 2024, com 100 anos de idade

Sammy Basso morreu e, para falar a verdade, foi justamente por causa de sua morte que eu fiquei sabendo que ele tinha existido. É estranho como, sendo a coisa mais previsível da vida, a morte sempre nos pega de surpresa. Ou quase sempre. Basso é uma das raras exceções. Já nasceu com prazo bem limitado de validade: treze anos. Viveu 28 e, apesar de tudo, viveu feliz e assim o declarou numa carta que deixou para ser lida no seu funeral.

O Basso era portador de uma doença cujo nome é por si mesmo de meter medo: progéria. O corpo humano não foi feito para durar muito. As peças vão falhando à medida que funcionam, até que um dia dizem “chega” e vão descansar da humana lida. E a tal progéria faz com que o corpo envelheça ainda mais aceleradamente. É como se um carro fabricado para andar a 100 quilômetros disparasse a mil, dois mil por hora.

Foi o que aconteceu com esse italiano nascido em 1995 e falecido em 2024, com cem anos de idade. Era especialmente feio e, sem querer ser cruel, ao ver sua foto imediatamente me lembrei do ET do filme de Spielberg. Basso era ainda mais estranho. Careca, orelhudo e narigudo, tinha o pescoço comprido e fino. Usava óculos e seu sorriso mostrava dentes maiores que a boca.

Nisso está a grandeza desse homem tão jovem e ao mesmo tempo tão consumido pelo tempo. Ele sorria! E, na carta de despedida, escreveu: “Quero que saibam, antes de mais nada, que vivi a minha vida feliz”. Além dessa frase, muitas outras revelam um ser humano tranquilo, generoso, que soube conviver com a adversidade. Da doença, ele disse que tinha sido “apenas uma parte muito pequena” de sua vida, embora admitisse que ela tinha influenciado o seu cotidiano e as suas escolhas. Um trecho desse comovente adeus merece ser transcrito: “Certamente muitos dirão que perdi a minha batalha contra a doença. Não ouçam! Nunca houve uma batalha a travar, havia apenas uma vida a abraçar tal como era, com as suas dificuldades, mas ainda assim maravilhosa, ainda assim fantástica, nem recompensa nem condenação, simplesmente uma dádiva que me foi dada por Deus"

Especialmente nestes tempos em que estamos vivendo, a beleza física parece ser para muita gente a mais alta preocupação, a maior das prioridades, o mais definitivo sentido da existência. Mais facilidade encontra um safado bonito do que um honrado feio. Mas a mosca que pousa no caixão não se importa se quem está ali deitado é feio ou bonito, e a terra ou o fogo a ambos consomem com igual indiferença.

Aos que iriam dele se despedir, Basso deixou estas palavras: “Quero estar convosco neste momento e dizer-vos que é normal. Para aqueles que vão chorar, saibam que é normal estar triste. Para os que querem festejar, saibam que é normal festejar. Chorem e festejem, façam-no em minha honra".

Em sua feiura, quantas lições de vida nos deixou este homem tão bonito. 

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A namorada de Elon Musk

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Além do mais, ciúmes inúteis, pois como é que eles iriam concorrer com O Rei?

Além do mais, ciúmes inúteis, pois como é que eles iriam concorrer com O Rei?

Prezada e mui bem informada leitora. Quanto você pagaria para namorar o bilionário Elon Musk? Você sabe que ele é dono da fábrica de automóveis Tesla, da rede social X e da agência espacial SpaceX. Quer dizer, não é com dez mil réis que você vai conquistar o coração ou o bolso do homem mais rico do mundo. No entanto, uma crédula senhora do Paraná, de 79 anos, investiu cerca de quatro mil reais na ilusão de que estava de amores com esse jovem senhor, que já namorou várias mulheres belas e famosas e até se casou com duas ou três delas. Suponho que no momento ele esteja disponível, o que certamente animou a também disponível paranaense.

Vejamos o que disse a imprensa. Tendo recebido uma ligação da Nigéria, mas acreditando que Elon Musk (que para isso até aprendeu português) ligava de Nova York para falar com ela, a boa mulher engatou com ele um promissor namoro on-line. Musk, estando no momento sem dinheiro para comprar cartões da Apple, pediu à nova namorada que os adquirisse e os enviasse para ele. Em troca, viria brevemente ao Brasil e a reembolsaria, provavelmente aproveitando a ocasião para juntar os trapinhos com ela. Nisso a romântica senhora foi investindo seu dinheirinho, até que o gerente da loja achou que era cartão demais para uma só pessoa. Questionada, ela declarou que os comprava para Elon Musk, com quem estava tendo um caso a distância, mas nem por isso menos real. O lojista achou por bem chamar a polícia. Fim do romance.

No Brasil muitos espectadores respondem ao “boa noite” dos apresentadores do Jornal Nacional quando o programa termina. E já se sabe que não são poucas as mulheres que acreditam que é para elas que Roberto Carlos joga beijos e rosas. Não falam isso com o marido, para que eles não fiquem com ciúmes. Além do mais, ciúmes inúteis, pois como é que eles iriam concorrer com O Rei?

A senhora conhece a palavra “bovarismo”? No livro de Flaubert, Emma Bovary (tal qual Luísa, de “O Primo Basilio”) acredita ter despertado a paixão de um jovem cortejador. Vendo a si mesma como a mulher que não era, iludiu-se até a tragédia final. Para saber mais, leia o livro, se é que ainda não o fez, e se o fez, faça de novo, porque vale a pena. Então, bovarismo é distúrbio psicológico em que a pessoa tem uma imagem irreal, distorcida de si mesma. Graças (ou por desgraça) a isso, julga-se alguém mais importante do que é, vê-se atraente e admirada.  Baixa autoestima, desencanto com a vida e tédio no dia a dia são as causas mais comuns do bovarismo.

Não sei se é esse o caso da nossa compatriota. Mas não a critico, e até tenho um pouco de pena. Todos nós vivemos mais ou menos iludidos sobre quem somos, sobre o que somos. Frequentemente lembramos aquela mãe que, ao ver que o passo de seu filho está diferente do resto do batalhão, se pergunta por que todos os demais soldados estão marchando errado.

Se, apesar da infeliz experiência da nossa amiga sulista, a senhora quiser namorar Elon Musk, entre em contato com ele pela internet. Pode ser que ele ainda esteja precisando de cartões da Apple.

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Grandes dúvidas

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver

            O governo me convoca para que eu prove ainda estar vivo, coisa de que de vez em quando até eu duvido. Sim, porque assisti a um filme em que os mortos custavam a se dar conta da nova realidade, e achavam que fantasmas eram os outros, isso é, os vivos de verdade. Nunca se pode ter certeza de nada. Já dizia Bertold Brecht que “de todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”.

Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver

            O governo me convoca para que eu prove ainda estar vivo, coisa de que de vez em quando até eu duvido. Sim, porque assisti a um filme em que os mortos custavam a se dar conta da nova realidade, e achavam que fantasmas eram os outros, isso é, os vivos de verdade. Nunca se pode ter certeza de nada. Já dizia Bertold Brecht que “de todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”.

            Por exemplo. No Japão o número de pessoas centenárias é uma coisa verdadeiramente japonesa. As mulheres da Terra do Sol Nascente são os seres humanos mais longevos do mundo, batem facilmente nos noventa e nos noventa ainda batem nos filhos, nos netos e no marido, se ele ainda estiver vivo e se meter a besta.

             Até algum tempo, quando alguém fazia cem anos, o governo lhe mandava uma taça de prata maior que uma jarra. Mas de repente disparou a crescer o número de velhinhos que se recusava a morrer antes de completar um século. A continuar assim, nem a poderosa economia nipônica aguentava.  Resultado: atualmente o governo oferece uma tacinha do tamanho de um dedal, e olhe lá!

            Pois bem, bateu a dúvida. Era ancião demais, não havia prata que desse. Os gastos com as ricas pensões era uma enormidade. As autoridades resolveram então investigar a história. Numa das casas visitadas, os fiscais encontraram uma múmia deitadinha, coberta por um lençol. Apertados pela polícia, os herdeiros da múmia, que todo mês embolsavam o dinheiro da pensão, alegaram que não sabiam que o digno parente já havia morrido. “Ele sempre foi assim quietinho”, alegaram com a cara mais sincera e sentida.

            Quanto a mim, considero legítima a preocupação do governo em saber se ainda existo, e tanto que fui lá para ser vivamente fichado e fotografado. Convencido de que ainda não sou uma múmia, o Poder julgou-me ainda merecedor dos trocadinhos que mensalmente deposita em minha conta. Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver, só mesmo ficando quietinha embaixo dos lençóis. Tendo provado que eu era eu e ainda respirava, voltei para a rua me sentindo alegre e orgulhoso. Orgulhoso por ter cumprido o dever cívico, alegre porque ─ conspiração da natureza ─ tudo em volta estava cheio de luz e cor.

            De repente, a chateação de atender a uma chamada burocrática havia se convertido na agradável sensação de estar vivo, em paz com tudo e todos, aí incluindo o governo e seus agentes. Longa é a arte, curta é a vida, já dizia nosso amigo Sêneca. Aliás, esse tal de Sêneca foi professor e conselheiro de Nero, aquele de Roma. Ainda hoje resta dúvida sobre qual a responsabilidade de Sêneca nas malvadezas de seu discípulo. Talvez muita, mas não se pode esquecer que o outro conselheiro de Nero chamava-se Burro ou, por extenso, Sexto Afrânio Burro. Um nome desses explica muita coisa.

            E lá fui eu, não menos burro, porém mais satisfeito, porque, feitas as contas, resulta que viver é uma experiência boa, e a gente às vezes a desperdiça com pequenos rancores, velhos preconceitos, tolas fantasias. Não vale a pena gastar a curta vida com essas miudezas. Alegremo-nos por estar vivos. Porque dia chegará em que o governo mandará perguntar por nós, e ficará sabendo que há muito nos tornamos uma múmia, coberta por um curto lençol de terra.

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A garota e o ipê

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Algumas caveiras já nascem maravilhosamente bem vestidas

Algumas caveiras já nascem maravilhosamente bem vestidas

Não tem jeito. A própria Heloisa Pinheiro, que não envelhece nunca na canção de Vinícius e Tom, completou 81 primaveras, como se dizia antigamente, e mais os verões, invernos e outonos correspondentes. Conservadíssima, está tão feliz com a nova idade que comemorou duas vezes o aniversário: em julho e em agosto. Que o tempo, esse implacável inimigo do corpo humano, lhe permita assim permanecer por longos anos, ela, que permanecerá eternamente jovem, para sempre a Garota de Ipanema, a “coisa mais linda, mais cheia de graça”. O Pe. António Vieira disse que a beleza nada mais é do que uma caveira bem vestida. Mas algumas caveiras já nascem maravilhosamente bem vestidas, e esse é o caso de Helô Pinheiro.

Teve razão o Poetinha quando a viu passar “num doce balanço a caminho do mar” e quando concluiu que a beleza é fundamental. Com certeza, e não só a beleza feminina, desde sempre e em todo lugar exaltada em prosa e verso. Mas também a que tantas vezes está ao nosso redor, sem que nela reparemos. Uma conhecida me disse que havia fotografado um ipê na minha rua. Eu já tinha reparado naquele amarelo exagerado, mas, ao retornar para casa, me detive um instante para contemplar o presente que a natureza colocara à disposição de meus olhos, de graça e sem que eu fizesse nada para merecer.

O sucesso de “Garota de Ipanema” se deve com certeza à qualidade da letra e da melodia, mas se deve também à sua inspiração original: a própria beleza. Em vozes que vão de Pery Ribeiro (primeiro a gravá-la) a Frank Sinatra, “Garota de Ipanema” chegou a ser a música mais executada ao redor no mundo, depois de “Yesterday”. Houve um tempo em que se dizia que ela nunca parava de tocar, porque, quando calava em algum lugar do planeta, já começava a se fazer ouvir em outro. Silenciava no Japão e no mesmo instante começava na Islândia. Em 1965 ganhou o Grammy, superando sucessos como “I want to hold your hand”, dos Beatles, e “Hello, Dolly”, com Louis Armstrong. Aliás, certa vez disseram a Tom Jobim que só os Beatles eram mais tocados do que ele, ao que o “maestro soberano”, como o chamou Chico Buarque, respondeu que “sim, mas eles eram quatro!”

Os dicionários ensinam que a beleza é a característica do que apresenta perfeição de formas; o ser ou a coisa que desperta sentimento de êxtase, admiração ou prazer através dos sentidos. Por isso mesmo ilumina os olhos e alegra o coração. A expressão “está cansando a minha beleza” não tem sentido, porque o belo nunca se cansa e nunca nos cansa. Ao contrário, é preciso que ele nos cerque, para que haja leveza num mundo com as guerras, as injustiças, as pequenas e grandes dores que podem tornar a nossa passagem pela existência uma coisa feia e pesada. Como na definição de Shakespeare/Macbeth: “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum”.

Da garota de Ipanema ao ipê da minha rua, a beleza existe e está aí, ao nosso redor, para nossa contemplação. Quem tem olhos de ver, que veja.

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A mãe, a pátria e a língua

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Zombamos do que somos, depreciamos o que temos

Perguntei a um amigo estrangeiro se, depois de tantos anos vivendo no

Brasil, ele ainda se lembrava da língua natal. A resposta foi ao mesmo tempo

sentida, poética e verdadeira. “Há três coisas de que nunca nos esquecemos”,

disse ele, “a mãe, a pátria e a língua”.

O que se pode dizer sobre as mães que ainda não tenha sido dito, por

poetas, filósofos, religiosos e quem mais se disponha a pensar por um segundo

que seja na própria vida? Como alguém pode contar sua história sem começar

Zombamos do que somos, depreciamos o que temos

Perguntei a um amigo estrangeiro se, depois de tantos anos vivendo no

Brasil, ele ainda se lembrava da língua natal. A resposta foi ao mesmo tempo

sentida, poética e verdadeira. “Há três coisas de que nunca nos esquecemos”,

disse ele, “a mãe, a pátria e a língua”.

O que se pode dizer sobre as mães que ainda não tenha sido dito, por

poetas, filósofos, religiosos e quem mais se disponha a pensar por um segundo

que seja na própria vida? Como alguém pode contar sua história sem começar

pelo começo? E acaso não é a mãe o começo de tudo? E o fim também:

reparem nas visitas aos presídios: o sujeito matou, roubou, violentou, enfim, é

um monstro do qual ninguém quer saber. Mas lá está a mãe, que foi levar pasta de dente e sabonete para o seu menino. Às vezes leva uma arma, um celular, um bilhete do crime dentro do sanduíche. Faz sentido, porque coração de mãe sempre tem amor, mas nem sempre tem juízo.

Mãe só uma, porque mais de uma ninguém aguenta, dizem os piadistas.

Mas, na verdade, para que precisaríamos de duas ou três, se, como me disse

uma conhecida, uma só mãe cuida de dez filhos, embora dez filhos nem

sempre cuidem da mãe.

...................

Ao que se sabe, o brasileiro é o único povo que gosta de falar mal de si

mesmo. Podemos criticar os outros, mas para zoar e ridicularizar não

precisamos sair daqui. Tem até uma anedota mais ou menos assim: fizeram

uma pesquisa internacional com a seguinte pergunta: “Responda

honestamente, por que sobra comida em alguns países, enquanto o resto do

mundo passa fome”? Não foi possível chegar a uma conclusão porque: a) os

africanos não sabiam o que era comida; b) os europeus não sabiam o que era

fome; c) os americanos não sabiam o que era o resto do mundo; d) os

brasileiros não sabiam o que era honestamente.

Zombamos do que somos, depreciamos o que temos. Quando no

estrangeiro, no entanto, parodiando Tom Jobim, acabamos por concluir que lá

fora é ótimo, mas é uma porcaria; aqui é uma porcaria, mas é ótimo.

........................

Dizemos que nosso idioma é muito difícil. Difícil para quem? Para os

alemães? Os chineses? Pode ser que o basco seja pior, tanto que se diz que,

quando Deus quis castigar o diabo, obrigou-o estudar basco por sete anos. Os

brasileiros desde criancinha falam português sem problema, e todo mundo se

entende. O que se pode dizer com alguma verdade é que a gramática “oficial”

da língua português é complicada.

Recentemente li um artigo sobre estrangeiros que vieram ao Brasil e se

apaixonaram pelo país e, espantoso, pelo idioma. Alguns depoimentos (*):

Mathew Shirts, americano: “A facilidade com que se brinca com a língua

portuguesa e sua musicalidade é admirável”. Yan Liang, chinesa: “No

português, falamos e a pessoa escreve mais fácil. A sonoridade encanta, além

de a gramática ser muito mais rica”.

Para o alemão Rolf Udo Zelmanowics a palavra “estacionamento” é a palavra mais bonita da nossa língua: “É só repetir bem devagar, saboreando cada sílaba, para perceber a sonoridade”. Se eles podem aprendê-la e gostar dela, tendo-a conhecido já adultos, por que não nós, que já nascemos com ela em nossos ouvidos, e “mãe” foi a primeira palavra que pronunciamos?

*Citados na revista Língua Portuguesa, ano 1, número 9, 2006.

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A sabedoria do pente e da tesoura

quarta-feira, 02 de outubro de 2024

Estando eu sentado e indefeso, e ele com a navalha na mão, não me convém criticá-lo

Estando eu sentado e indefeso, e ele com a navalha na mão, não me convém criticá-lo

Eu tive ótimos professores, mas também aprendi muito com os barbeiros a quem confiei minha cabeça e emprestei meus ouvidos. Ouvidos às vezes sonolentos, admito, mas nem por isso menos interessados na sabedoria que vinha junto com a tesoura e o pente. Um humorista irônico disse que é uma pena que todos os homens capazes de bem governar a nação estejam trabalhando como barbeiro ou taxista. Limito-me a falar dos primeiros, desde já excluindo o atual. A bem da justiça, afirmo que este, diferentemente dos anteriores, contenta-se em me cortar o cabelo, sem querer fazer de mim um sábio, ou mesmo um cidadão bem informado. Também porque, estando eu sentado e indefeso, e ele com a navalha na mão, não me convém criticá-lo.

Por outro lado, dizer “navalha” é um anacronismo. Os barbeiros modernos abandonaram o histórico instrumento da profissão e agora usam uma prosaica lâmina gilete para raspar a cara do freguês. Também é notável a transformação dos salões. Antes austeros, com cara de barbearia, transformaram-se em ambientes multiuso, com cafeteria, balcão e, se duvidar, uísque e queijos importados.  Ainda não vi nenhum com mesa de bilhar, mas não duvido que exista. E não mais usam a vulgar palavra portuguesa que por séculos denominou seus estabelecimentos, agora os batizam de “barber shop”, que lhes parece coisa bem mais refinada.

Um desses profissionais muito me enriqueceu com seus amplos conhecimentos sobre medicina, futebol e administração pública, que eram suas especialidades, embora os assuntos que dominava com igual profundidade fossem muito além disso. Verdade que já me esqueci de quase tudo que ele me ensinou ao longo dos anos em que fui seu freguês, ou cliente, que é uma maneira mais elegante de dizer a mesma coisa. Atualmente, nem as quitandas dos bairros têm mais fregueses, foram todos promovidos a clientes. Mas se esquecimento houve, a culpa é da pouca memória do aluno, não da muita competência do professor.

Na medicina, conhecia e avaliava cada um dos profissionais da nossa cidade. A urologia não tinha segredo para ele, embora usasse termos pouco científicos para falar do assunto, sobretudo quando abordava o temido exame de próstata. Indicou-me vários tratamentos, vaticinando problemas cardíacos que poderiam vir a me atacar, sendo a preocupação que então me atacou o único problema cardíaco que tive até hoje (Deo gratias!). Conhecia muito de ortopedia, cuja etimologia ─ “ciência do pé correto” ─ ensinava com ar professoral. Nessa matéria, tinha conhecimentos empíricos, uma vez que já atuara como técnico de futebol, condição em que socorrera muito craque com a canela ou o dedão atingidos pelo chute ou pisada do adversário.

Lamentava a pouca inteligência dos técnicos brasileiros, explicando como tinha conduzido seus pupilos com severidade e companheirismo, como escalaria os grandes times nacionais, como faria a seleção canarinho voltar aos seus tempos de glória. E, se lhe faltavam títulos, era porque nunca as diretorias lhe davam os atletas de que precisava para armar equipes imbatíveis. “Craque e perna de pau eu conhecia só de olhar o sujeito adentrar o gramado!”

Por fim, resta lamentarmos que ele nunca tenha exercido um cargo público, nem mesmo se candidatado. “Eu nunca quis me envolver com essa gente”, e “essa gente” tinha aí o pior significado possível, cada um que imagine o que ele queria dizer. Mas, fosse ele prefeito, de imediato acabaria com a corrupção (não sei se os corruptos concordariam). Administração austera, ágil, eficiente. Adeus ruas esburacadas, adeus escolas sem merenda, adeus trânsito engarrafado, adeus fila nos hospitais.

Enfim, tendo em vista como andam as coisas no Brasil e no mundo, talvez seja mesmo a hora de entregarmos o poder aos barbeiros e aos motoristas de táxi. Pior do que está, não fica.

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Café da manhã

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Não chego a acreditar que Deus também tenha o costume de fazer seu breakfast

Não chego a acreditar que Deus também tenha o costume de fazer seu breakfast

Levanto-me de manhã e vou para a cozinha. Levantado, mas não acordado. Pois só depois do primeiro gole de café me percebo vivo e consciente de que o mundo existe, além das brumas do sonho e do sono. Sei que tem gente que não gosta de café, existem até religiosos que recomendam que nos afastemos dele. Não sei se é pelo bem da saúde ou se porque essa bebida é, em si mesma, um pecado. Consolo-me pensando que, se esse hábito (ou vício) for nocivo à saúde, não há de ser tão grave que a medicina não possa vencê-lo. Se for nocivo à salvação da alma, confio em que Deus nos perdoará, já que Ele perdoa coisas tão mais graves. 

Não chego a acreditar que Deus também tenha o costume de fazer seu breakfast. Ele nunca dorme e, portanto, não acorda com vontade de tomar café. Mas não acho que Deus se aborreça comigo se, de manhã, logo depois de pensar n´Ele, penso na água quente inundando o coador, cobrindo o pó e espalhando pela casa o cheiro que entra por todos os sentidos, aquecendo o corpo e despertando a mente. Se o Criador deixou a rubiaceae no mundo, é porque bem sabia o que estava fazendo.

Sim, a vida tem muita preocupação e muita chatice. Às vezes, muito sofrimento. Com razão se diz que não há felicidade, só momentos felizes. Sendo assim, é de grande sabedoria guardar os bons momentos, esticá-los ao máximo e, no mesmo movimento, chutar a dor para longe, para o baú das coisas vividas, perdidas e esquecidas. Verdade que às vezes somos tentados a dar razão a Millôr Fernandes, quando diz que o homem é o único animal que não deu certo, ou a Sartre (“O inferno são os outros”), ou a Vinicius de Moraes, falando sobre as crianças que perturbam seu sossego (“Eu chego a achar Herodes natural”).

 Atrevemo-nos a assistir ao noticiário e a tela da TV se transforma num mundo de horrores coloridos. Na África, a camisa grudada na costela das crianças mais parece pano velho esticado na cerca. Mundo afora, o horror de ataques terroristas e guerras que matam indiscriminadamente, bombardeando até mesmo escolas e hospitais infantis. E, no Brasil, o paradoxo de milhões passando fome na terra da fartura. É preciso estar muito alienado para ser completamente feliz num mundo assim enlouquecido.

Mas tem o café da manhã, e tantas outras coisas que fazem a vida valer a pena, ou, na pior das hipóteses, ser navegada com leveza. Como diz Paulinho da Viola: “Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar”. Tem a família, filhos e netos; uma pessoa especialmente amada e que nos ama. Os amigos, um dia de sol e céu azul, de preferência na praia; uma taça de vinho nas noites frias; um bom filme antes de dormir ou para dormir durante. Ah, e tem os livros, companheiros sempre disponíveis, sempre solidários, sempre a nos ensinar tudo, como quem não quer ensinar nada.

A vida é bela? Às vezes. Às vezes é muito feia. Pelo sim, pelo não, o melhor é desafiá-la todas as manhãs, usando como arma uma boa e fumegante xícara de café.

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Prova de coragem

quarta-feira, 04 de setembro de 2024

Infelizmente, no futebol não existe meio gol, portanto, não havia conciliação possível

Infelizmente, no futebol não existe meio gol, portanto, não havia conciliação possível

Os meninos jogavam bola. “Na trave!” “Que trave? Não tem trave nenhuma, passou por cima de sua cabeça. Foi gol!” Embolam-se os treze junto à trave imaginária (uma das equipes, por ser mais fraquinha, apresenta-se com sete atletas). O menorzinho deles estende o braço para o céu e declara solenemente que a bola passou na altura de sua mão: portanto, foi gol. Mas o goleiro adversário demonstra sua discordância dando um empurrão no pixote. Eis que no mesmo time atuava também o irmão do pixote, dois anos mais velho e bem mais parrudo. Voou para cima do gool-keeper. O qual, a bem da verdade, não se intimidou: “Vem, pode vir! Vem, se tu é homem!”

Nesse momento crucial do conflito, um dos jogadores, com ares de capitão, enfia dois dedos na boca e dá uma apitada tão estridente que até a pouca grama do campo se arrepia. O susto foi suficiente para imobilizar os contendores. Uma menina que até então olhava a pelada com o ar de quem nunca viu coisa tão boba em toda sua longa vida de dez anos se aproveita desse segundo para, como dizem os locutores esportivos, adentrar o gramado.

A presença feminina serenou os ânimos, como sói acontecer. Eis que o dono da bola era o irmão dela, pelo que a invasora se atreveu a dar um bico na redonda que, já cansada de ser chutada em todas as direções e sem direção nenhuma, veio cair a meus pés. Era visível o alívio da pelota por fugir daquela confusão e visível era sua esperança de que eu ao menos não a chutasse de volta para a zona conflagrada.

De simples e anônimo observador, vi-me de repente envolvido no conflito. Os dois capitães vieram à frente dos seus comandados e pediram uníssonos a minha opinião. Opinião, já se vê, com peso de uma sentença. Pois fiquem sabendo do que eu mesmo só vim a saber mais tarde: o time perdedor pagaria o sorvete do vencedor. Era uma decisão de alta responsabilidade. A vocês confessarei, agora que o fato é passado, que desde o começo tinha opinião a respeito. Para mim, que justamente naquele momento havia desviado os olhos da revista que folheava, o gol era legítimo.

A regra é clara, já nos ensina um famoso comentarista. Não havia impedimento, aliás não havia juiz, nem bandeirinha. Verdade que o goleador tinha levado uma rasteira ao mirar a meta adversária, mas tendo se levantado a tempo de dar prosseguimento à jogada, aplicava-se no caso a lei da vantagem. E, último e decisivo argumento, a bola tinha passado um palminho acima da cabeça do goleiro. Frango dos grandes, talvez pelo justificado medo do tiro que vinha em sua direção.

O difícil era dar uma decisão tendo em volta treze garotos gritando e mais a menina que me encarava com aquele olhar com que as mulheres sabem intimidar um homem, ainda que este tenha idade para ser seu avô. Tremi nas bases. O que você faria? Segundo Voltaire, “A coragem não é uma virtude, mas uma qualidade comum aos celerados e aos grandes homens”. Não sendo nem uma coisa nem outra, achei prudente ganhar tempo, em busca de uma solução conciliatória. Infelizmente, no futebol não existe meio gol, portanto, não havia conciliação possível.

De repente, o som de uma campainha soa ao longe e uma funcionária se aproxima do gramado e sentencia; “Terminou o recreio! Todo mundo pra sala!” Tive esperança de que o grupo se desfizesse, mas ninguém arredava pé. Urgia dar uma decisão. Juntei toda a coragem que não tinha, calculei mentalmente onde era o centro do campo e, apontando para ele, imitei um antigo comentarista de arbitragem: “Gol legaaaaaaaal!”

E saí depressinha!

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Para quem quer vida mansa

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Você fica dispensado de querer salvar a alma

Você fica dispensado de querer salvar a alma

Você pode não gostar de viver no Brasil, e não sou eu que vou dizer que você não tem motivos. Eu, se dependesse de mim, trocava “Ordem e Progresso” da nossa bandeira por “Justiça e Paz”, que são condições necessárias para que a ordem e o progresso se tornem realidade. Mas aqui estamos, vamos fazendo o que é possível para não piorar a situação. Até porque, se o Brasil não é o melhor lugar do mundo, também não é o pior. Por exemplo: basta você passar um dia na Coreia do Norte para ficar morrendo de saudades do nosso país (se não morrer antes por outro motivo). Vou dar aqui alguns exemplos da vida mansa que você poderá levar naquele país asiático.

O atual mandatário é um baixinho barrigudo, que atende pelo nome de Kim-Jong-Un. Respeitá-lo é muito pouco, é preciso adorá-lo. Questão de vida ou morte. Se você cochilar durante o discurso dele, vai ofendê-lo gravemente e o mais provável é que você seja condenado a passar uma boa temporada num campo de concentração. Trabalhando, que lá não tem esse negócio de ficar no triplex com tornezeleira eletrônica. Tem mais é que quebrar pedra com marreta.

Essa adoração se estende, ainda que em menor grau, aos demais poderosos do país. Acima de todos está Kim-Il-Sun, pai de Kim-Jong-Un (Kim significa “querido”, é título exclusivo da família do ditador e deve sempre anteceder o nome do amado líder). O velho Kim faleceu em 8 de junho de 1994. Pra quê?! Esse dia passou a ser dia nacional de luto. E aí, nessa data, é proibido rir, dançar, tomar uma cachacinha ou mesmo falar alto. A menos que você ache divertido encarar pelotão de fuzilamento.

E se você, econômica leitora, vive torrando dinheiro em lojas e salões de beleza, inventando um corte de cabelo a cada mês, talvez não se dê bem com a moda norte-coreana. Lá existe uma lista dos cortes e penteados permitidos. Calça comprida para as mulheres, nem pensar. Biquini? Tá maluca mulher, tá querendo ser fuzilada?! E não tem esse negócio brasileiro de ficar inventando nomes, o que entre nós obriga a vítima a carregar vida afora o peso de chamar-se Childérico, Onestaldo ou Waternilda.

O povo pode ser pobre, mas não preguiçoso. A semana se constitui de seis dias de trabalho e um de folga. A folga consiste em realizar trabalhos “voluntários”, tais como consertar o calçamento das ruas. Essa norma vale também para as mulheres, que, ao invés de ficarem passeando com seus pets, vão carregar paralelepípedos, exercício ótimo para emagrecer e manter a forma física. E, em caso de incêndio, não se meta a besta de salvar seu filho primeiro. A primeira coisa a ser feita é salvar as fotos dos líderes da nação (é uma danação mesmo).

Há várias outras vantagens em se viver na Coreia do Norte. Por exemplo, você não precisa pensar em carreira profissional ou escolher onde morar. O governo decide se você vai ser engenheiro ou pintor de paredes, se vai morar na capital ou nos confins do Judas. Como é proibido ler a Bíblia, você fica dispensado de querer salvar a alma. Adorar, só à família Kim. É Kim no céu (Kim-Il-Sun) e Kim na terra (Kim-Jong-Un).

Também é falta gravíssima (sujeita à prisão ou pena de morte) fazer ligação internacional, ler obras estrangeiras, sonhar (ainda que em sonho) com a Coreia do Sul, acessar a internet, vestir coisa parecida com calça jeans, usar, na prática de esportes, as mesmas regras do mundo democrático, viajar para o exterior, ver filme estrangeiro, e por aí vai. A vantagem é que existem eleições livres. O eleitor pode votar em qualquer um dos candidatos escolhidos pelo governo.

Bem, acho que já deu para se ter uma ideia da maravilha que é a vida em terras norte-coreanas. Só mais um aviso, que pode ser de especial interesse para você, caro leitor: maconha é crime. O último que experimentou morreu gloriosamente, fuzilado na frente de 150 mil pessoas.

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