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Prova de coragem
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
Infelizmente, no futebol não existe meio gol, portanto, não havia conciliação possível
Os meninos jogavam bola. “Na trave!” “Que trave? Não tem trave nenhuma, passou por cima de sua cabeça. Foi gol!” Embolam-se os treze junto à trave imaginária (uma das equipes, por ser mais fraquinha, apresenta-se com sete atletas). O menorzinho deles estende o braço para o céu e declara solenemente que a bola passou na altura de sua mão: portanto, foi gol. Mas o goleiro adversário demonstra sua discordância dando um empurrão no pixote. Eis que no mesmo time atuava também o irmão do pixote, dois anos mais velho e bem mais parrudo. Voou para cima do gool-keeper. O qual, a bem da verdade, não se intimidou: “Vem, pode vir! Vem, se tu é homem!”
Nesse momento crucial do conflito, um dos jogadores, com ares de capitão, enfia dois dedos na boca e dá uma apitada tão estridente que até a pouca grama do campo se arrepia. O susto foi suficiente para imobilizar os contendores. Uma menina que até então olhava a pelada com o ar de quem nunca viu coisa tão boba em toda sua longa vida de dez anos se aproveita desse segundo para, como dizem os locutores esportivos, adentrar o gramado.
A presença feminina serenou os ânimos, como sói acontecer. Eis que o dono da bola era o irmão dela, pelo que a invasora se atreveu a dar um bico na redonda que, já cansada de ser chutada em todas as direções e sem direção nenhuma, veio cair a meus pés. Era visível o alívio da pelota por fugir daquela confusão e visível era sua esperança de que eu ao menos não a chutasse de volta para a zona conflagrada.
De simples e anônimo observador, vi-me de repente envolvido no conflito. Os dois capitães vieram à frente dos seus comandados e pediram uníssonos a minha opinião. Opinião, já se vê, com peso de uma sentença. Pois fiquem sabendo do que eu mesmo só vim a saber mais tarde: o time perdedor pagaria o sorvete do vencedor. Era uma decisão de alta responsabilidade. A vocês confessarei, agora que o fato é passado, que desde o começo tinha opinião a respeito. Para mim, que justamente naquele momento havia desviado os olhos da revista que folheava, o gol era legítimo.
A regra é clara, já nos ensina um famoso comentarista. Não havia impedimento, aliás não havia juiz, nem bandeirinha. Verdade que o goleador tinha levado uma rasteira ao mirar a meta adversária, mas tendo se levantado a tempo de dar prosseguimento à jogada, aplicava-se no caso a lei da vantagem. E, último e decisivo argumento, a bola tinha passado um palminho acima da cabeça do goleiro. Frango dos grandes, talvez pelo justificado medo do tiro que vinha em sua direção.
O difícil era dar uma decisão tendo em volta treze garotos gritando e mais a menina que me encarava com aquele olhar com que as mulheres sabem intimidar um homem, ainda que este tenha idade para ser seu avô. Tremi nas bases. O que você faria? Segundo Voltaire, “A coragem não é uma virtude, mas uma qualidade comum aos celerados e aos grandes homens”. Não sendo nem uma coisa nem outra, achei prudente ganhar tempo, em busca de uma solução conciliatória. Infelizmente, no futebol não existe meio gol, portanto, não havia conciliação possível.
De repente, o som de uma campainha soa ao longe e uma funcionária se aproxima do gramado e sentencia; “Terminou o recreio! Todo mundo pra sala!” Tive esperança de que o grupo se desfizesse, mas ninguém arredava pé. Urgia dar uma decisão. Juntei toda a coragem que não tinha, calculei mentalmente onde era o centro do campo e, apontando para ele, imitei um antigo comentarista de arbitragem: “Gol legaaaaaaaal!”
E saí depressinha!
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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