Café da manhã

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Não chego a acreditar que Deus também tenha o costume de fazer seu breakfast

Levanto-me de manhã e vou para a cozinha. Levantado, mas não acordado. Pois só depois do primeiro gole de café me percebo vivo e consciente de que o mundo existe, além das brumas do sonho e do sono. Sei que tem gente que não gosta de café, existem até religiosos que recomendam que nos afastemos dele. Não sei se é pelo bem da saúde ou se porque essa bebida é, em si mesma, um pecado. Consolo-me pensando que, se esse hábito (ou vício) for nocivo à saúde, não há de ser tão grave que a medicina não possa vencê-lo. Se for nocivo à salvação da alma, confio em que Deus nos perdoará, já que Ele perdoa coisas tão mais graves. 

Não chego a acreditar que Deus também tenha o costume de fazer seu breakfast. Ele nunca dorme e, portanto, não acorda com vontade de tomar café. Mas não acho que Deus se aborreça comigo se, de manhã, logo depois de pensar n´Ele, penso na água quente inundando o coador, cobrindo o pó e espalhando pela casa o cheiro que entra por todos os sentidos, aquecendo o corpo e despertando a mente. Se o Criador deixou a rubiaceae no mundo, é porque bem sabia o que estava fazendo.

Sim, a vida tem muita preocupação e muita chatice. Às vezes, muito sofrimento. Com razão se diz que não há felicidade, só momentos felizes. Sendo assim, é de grande sabedoria guardar os bons momentos, esticá-los ao máximo e, no mesmo movimento, chutar a dor para longe, para o baú das coisas vividas, perdidas e esquecidas. Verdade que às vezes somos tentados a dar razão a Millôr Fernandes, quando diz que o homem é o único animal que não deu certo, ou a Sartre (“O inferno são os outros”), ou a Vinicius de Moraes, falando sobre as crianças que perturbam seu sossego (“Eu chego a achar Herodes natural”).

 Atrevemo-nos a assistir ao noticiário e a tela da TV se transforma num mundo de horrores coloridos. Na África, a camisa grudada na costela das crianças mais parece pano velho esticado na cerca. Mundo afora, o horror de ataques terroristas e guerras que matam indiscriminadamente, bombardeando até mesmo escolas e hospitais infantis. E, no Brasil, o paradoxo de milhões passando fome na terra da fartura. É preciso estar muito alienado para ser completamente feliz num mundo assim enlouquecido.

Mas tem o café da manhã, e tantas outras coisas que fazem a vida valer a pena, ou, na pior das hipóteses, ser navegada com leveza. Como diz Paulinho da Viola: “Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar”. Tem a família, filhos e netos; uma pessoa especialmente amada e que nos ama. Os amigos, um dia de sol e céu azul, de preferência na praia; uma taça de vinho nas noites frias; um bom filme antes de dormir ou para dormir durante. Ah, e tem os livros, companheiros sempre disponíveis, sempre solidários, sempre a nos ensinar tudo, como quem não quer ensinar nada.

A vida é bela? Às vezes. Às vezes é muito feia. Pelo sim, pelo não, o melhor é desafiá-la todas as manhãs, usando como arma uma boa e fumegante xícara de café.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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