O mesmo

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Experimente colocar num banheiro público o aviso “é proibido escrever palavrão na porta”

Você tem medo de andar no mesmo? E quando o mesmo demora, você fica irritado? Você já ficou preso no mesmo? E se você não sabe que o pronome “mesmo” virou substantivo (sinônimo de elevador), é porque nunca prestou atenção ao aviso que está ao lado da porta de todos os sobe e desce do nosso estado: “Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar. Lei Estadual No. 9502/97”. Para orgulho nosso, o texto foi perpetrado na Assembleia Legislativa Fluminense e se espalhou pelo país. Pior do que isso o douto legislador não podia ter feito, e nenhum dos seus nobres companheiros ousou levantar a voz (ou a caneta) para salvar da redação infeliz tão feliz advertência. 

Eu não entendo de elevadores. Até para escolher entre os botões de subida e decida preciso de alguns instantes de reflexão. Também não entendo muito de português, mas ao menos sei que toda palavra antecedida de artigo vira substantivo, ou seja, nome de alguma coisa. Portanto, acho que a bem-intencionada 9502/97 ficaria melhor assim: “Ao abrir a porta do elevador, certifique-se ele está parada neste andar.” Ou, melhor ainda: “Stop! Antes de dar um passo adiante, verifique se não há um buraco negro à sua frente!” O uso do stop se justifica porque brasileiro presta mais atenção nas palavras inglesas do que nas portuguesas. Brincadeiras à parte, convém mesmo (olha ele aí, travestido de advérbio!) ficar atento, porque muita gente já morreu ao cair no poço ─ por exemplo: a atriz Anecy Rocha, irmã caçula do cineasta Glauber Rocha.

Palavras e expressões impõem-se na língua por si mesmas, não precisam de autorização nem aceitam proibição. É uma das poucas coisas em que o povo manda e desmanda. Resultaram sempre em fracasso as tentativas de regular por meio de canetadas como as pessoas devem falar. O latinista Castro Lopes propôs a criação de palavras que substituíssem o que ele chamou de “barbarismos dispensáveis”. Salvaram-se (mais ou menos) “cardápio” e “convescote” para ocupar o lugar de “menu” e “piquenique”, respectivamente. Outras, como “preconício” (anúncio comercial), “ludâmbulo” (turista), “runimol” (avalanche) e “ancenúbio” (nuance) foram completamente ignoradas pelos brasileiros. Durante a Segunda Grande Guerra, Mussolini proibiu o uso do pronome “Lei” na Itália. A guerra acabou, Mussolini morreu e, apesar dele, o pronome e a Itália sobreviveram. Experimente colocar num banheiro público o aviso “é proibido escrever palavrão na porta”. No dia seguinte o outro lado da porta estará cheio de palavrões.

Zamenhof pensou no esperanto como uma língua universal, mas calcula-se que hoje apenas cerca de 100 mil pessoas entendam esse idioma artificial. Enquanto isso, o inglês... Certa vez, um deputado brasileiro tentou extinguir a crase, que é um fenômeno da fala e, portanto, não pode ser regulado por leis. Isso nos obrigaria a falar, por exemplo, “cada...armário”, ou invés de “cadarmário”, como comumente se faz. O que o deputado certamente queria, e já seria um desastre, era extinguir o acento grave indicativo de crase, necessário para distinguir “pintar a máquina” de “pintar à máquina, ou “cheirando a flor” de “cheirando à flor”.

Enfim, vamos deixar de invencionices. Mas, por prudência e a amor à vida, não entre no elevador sem ter certeza de que ele (também conhecido como “o mesmo”) está ali parado, pacientemente esperando por você.

Publicidade
TAGS:

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.