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Café da manhã

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Não chego a acreditar que Deus também tenha o costume de fazer seu breakfast

Não chego a acreditar que Deus também tenha o costume de fazer seu breakfast

Levanto-me de manhã e vou para a cozinha. Levantado, mas não acordado. Pois só depois do primeiro gole de café me percebo vivo e consciente de que o mundo existe, além das brumas do sonho e do sono. Sei que tem gente que não gosta de café, existem até religiosos que recomendam que nos afastemos dele. Não sei se é pelo bem da saúde ou se porque essa bebida é, em si mesma, um pecado. Consolo-me pensando que, se esse hábito (ou vício) for nocivo à saúde, não há de ser tão grave que a medicina não possa vencê-lo. Se for nocivo à salvação da alma, confio em que Deus nos perdoará, já que Ele perdoa coisas tão mais graves. 

Não chego a acreditar que Deus também tenha o costume de fazer seu breakfast. Ele nunca dorme e, portanto, não acorda com vontade de tomar café. Mas não acho que Deus se aborreça comigo se, de manhã, logo depois de pensar n´Ele, penso na água quente inundando o coador, cobrindo o pó e espalhando pela casa o cheiro que entra por todos os sentidos, aquecendo o corpo e despertando a mente. Se o Criador deixou a rubiaceae no mundo, é porque bem sabia o que estava fazendo.

Sim, a vida tem muita preocupação e muita chatice. Às vezes, muito sofrimento. Com razão se diz que não há felicidade, só momentos felizes. Sendo assim, é de grande sabedoria guardar os bons momentos, esticá-los ao máximo e, no mesmo movimento, chutar a dor para longe, para o baú das coisas vividas, perdidas e esquecidas. Verdade que às vezes somos tentados a dar razão a Millôr Fernandes, quando diz que o homem é o único animal que não deu certo, ou a Sartre (“O inferno são os outros”), ou a Vinicius de Moraes, falando sobre as crianças que perturbam seu sossego (“Eu chego a achar Herodes natural”).

 Atrevemo-nos a assistir ao noticiário e a tela da TV se transforma num mundo de horrores coloridos. Na África, a camisa grudada na costela das crianças mais parece pano velho esticado na cerca. Mundo afora, o horror de ataques terroristas e guerras que matam indiscriminadamente, bombardeando até mesmo escolas e hospitais infantis. E, no Brasil, o paradoxo de milhões passando fome na terra da fartura. É preciso estar muito alienado para ser completamente feliz num mundo assim enlouquecido.

Mas tem o café da manhã, e tantas outras coisas que fazem a vida valer a pena, ou, na pior das hipóteses, ser navegada com leveza. Como diz Paulinho da Viola: “Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar”. Tem a família, filhos e netos; uma pessoa especialmente amada e que nos ama. Os amigos, um dia de sol e céu azul, de preferência na praia; uma taça de vinho nas noites frias; um bom filme antes de dormir ou para dormir durante. Ah, e tem os livros, companheiros sempre disponíveis, sempre solidários, sempre a nos ensinar tudo, como quem não quer ensinar nada.

A vida é bela? Às vezes. Às vezes é muito feia. Pelo sim, pelo não, o melhor é desafiá-la todas as manhãs, usando como arma uma boa e fumegante xícara de café.

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A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.

Prova de coragem

quarta-feira, 04 de setembro de 2024

Infelizmente, no futebol não existe meio gol, portanto, não havia conciliação possível

Infelizmente, no futebol não existe meio gol, portanto, não havia conciliação possível

Os meninos jogavam bola. “Na trave!” “Que trave? Não tem trave nenhuma, passou por cima de sua cabeça. Foi gol!” Embolam-se os treze junto à trave imaginária (uma das equipes, por ser mais fraquinha, apresenta-se com sete atletas). O menorzinho deles estende o braço para o céu e declara solenemente que a bola passou na altura de sua mão: portanto, foi gol. Mas o goleiro adversário demonstra sua discordância dando um empurrão no pixote. Eis que no mesmo time atuava também o irmão do pixote, dois anos mais velho e bem mais parrudo. Voou para cima do gool-keeper. O qual, a bem da verdade, não se intimidou: “Vem, pode vir! Vem, se tu é homem!”

Nesse momento crucial do conflito, um dos jogadores, com ares de capitão, enfia dois dedos na boca e dá uma apitada tão estridente que até a pouca grama do campo se arrepia. O susto foi suficiente para imobilizar os contendores. Uma menina que até então olhava a pelada com o ar de quem nunca viu coisa tão boba em toda sua longa vida de dez anos se aproveita desse segundo para, como dizem os locutores esportivos, adentrar o gramado.

A presença feminina serenou os ânimos, como sói acontecer. Eis que o dono da bola era o irmão dela, pelo que a invasora se atreveu a dar um bico na redonda que, já cansada de ser chutada em todas as direções e sem direção nenhuma, veio cair a meus pés. Era visível o alívio da pelota por fugir daquela confusão e visível era sua esperança de que eu ao menos não a chutasse de volta para a zona conflagrada.

De simples e anônimo observador, vi-me de repente envolvido no conflito. Os dois capitães vieram à frente dos seus comandados e pediram uníssonos a minha opinião. Opinião, já se vê, com peso de uma sentença. Pois fiquem sabendo do que eu mesmo só vim a saber mais tarde: o time perdedor pagaria o sorvete do vencedor. Era uma decisão de alta responsabilidade. A vocês confessarei, agora que o fato é passado, que desde o começo tinha opinião a respeito. Para mim, que justamente naquele momento havia desviado os olhos da revista que folheava, o gol era legítimo.

A regra é clara, já nos ensina um famoso comentarista. Não havia impedimento, aliás não havia juiz, nem bandeirinha. Verdade que o goleador tinha levado uma rasteira ao mirar a meta adversária, mas tendo se levantado a tempo de dar prosseguimento à jogada, aplicava-se no caso a lei da vantagem. E, último e decisivo argumento, a bola tinha passado um palminho acima da cabeça do goleiro. Frango dos grandes, talvez pelo justificado medo do tiro que vinha em sua direção.

O difícil era dar uma decisão tendo em volta treze garotos gritando e mais a menina que me encarava com aquele olhar com que as mulheres sabem intimidar um homem, ainda que este tenha idade para ser seu avô. Tremi nas bases. O que você faria? Segundo Voltaire, “A coragem não é uma virtude, mas uma qualidade comum aos celerados e aos grandes homens”. Não sendo nem uma coisa nem outra, achei prudente ganhar tempo, em busca de uma solução conciliatória. Infelizmente, no futebol não existe meio gol, portanto, não havia conciliação possível.

De repente, o som de uma campainha soa ao longe e uma funcionária se aproxima do gramado e sentencia; “Terminou o recreio! Todo mundo pra sala!” Tive esperança de que o grupo se desfizesse, mas ninguém arredava pé. Urgia dar uma decisão. Juntei toda a coragem que não tinha, calculei mentalmente onde era o centro do campo e, apontando para ele, imitei um antigo comentarista de arbitragem: “Gol legaaaaaaaal!”

E saí depressinha!

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Para quem quer vida mansa

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Você fica dispensado de querer salvar a alma

Você fica dispensado de querer salvar a alma

Você pode não gostar de viver no Brasil, e não sou eu que vou dizer que você não tem motivos. Eu, se dependesse de mim, trocava “Ordem e Progresso” da nossa bandeira por “Justiça e Paz”, que são condições necessárias para que a ordem e o progresso se tornem realidade. Mas aqui estamos, vamos fazendo o que é possível para não piorar a situação. Até porque, se o Brasil não é o melhor lugar do mundo, também não é o pior. Por exemplo: basta você passar um dia na Coreia do Norte para ficar morrendo de saudades do nosso país (se não morrer antes por outro motivo). Vou dar aqui alguns exemplos da vida mansa que você poderá levar naquele país asiático.

O atual mandatário é um baixinho barrigudo, que atende pelo nome de Kim-Jong-Un. Respeitá-lo é muito pouco, é preciso adorá-lo. Questão de vida ou morte. Se você cochilar durante o discurso dele, vai ofendê-lo gravemente e o mais provável é que você seja condenado a passar uma boa temporada num campo de concentração. Trabalhando, que lá não tem esse negócio de ficar no triplex com tornezeleira eletrônica. Tem mais é que quebrar pedra com marreta.

Essa adoração se estende, ainda que em menor grau, aos demais poderosos do país. Acima de todos está Kim-Il-Sun, pai de Kim-Jong-Un (Kim significa “querido”, é título exclusivo da família do ditador e deve sempre anteceder o nome do amado líder). O velho Kim faleceu em 8 de junho de 1994. Pra quê?! Esse dia passou a ser dia nacional de luto. E aí, nessa data, é proibido rir, dançar, tomar uma cachacinha ou mesmo falar alto. A menos que você ache divertido encarar pelotão de fuzilamento.

E se você, econômica leitora, vive torrando dinheiro em lojas e salões de beleza, inventando um corte de cabelo a cada mês, talvez não se dê bem com a moda norte-coreana. Lá existe uma lista dos cortes e penteados permitidos. Calça comprida para as mulheres, nem pensar. Biquini? Tá maluca mulher, tá querendo ser fuzilada?! E não tem esse negócio brasileiro de ficar inventando nomes, o que entre nós obriga a vítima a carregar vida afora o peso de chamar-se Childérico, Onestaldo ou Waternilda.

O povo pode ser pobre, mas não preguiçoso. A semana se constitui de seis dias de trabalho e um de folga. A folga consiste em realizar trabalhos “voluntários”, tais como consertar o calçamento das ruas. Essa norma vale também para as mulheres, que, ao invés de ficarem passeando com seus pets, vão carregar paralelepípedos, exercício ótimo para emagrecer e manter a forma física. E, em caso de incêndio, não se meta a besta de salvar seu filho primeiro. A primeira coisa a ser feita é salvar as fotos dos líderes da nação (é uma danação mesmo).

Há várias outras vantagens em se viver na Coreia do Norte. Por exemplo, você não precisa pensar em carreira profissional ou escolher onde morar. O governo decide se você vai ser engenheiro ou pintor de paredes, se vai morar na capital ou nos confins do Judas. Como é proibido ler a Bíblia, você fica dispensado de querer salvar a alma. Adorar, só à família Kim. É Kim no céu (Kim-Il-Sun) e Kim na terra (Kim-Jong-Un).

Também é falta gravíssima (sujeita à prisão ou pena de morte) fazer ligação internacional, ler obras estrangeiras, sonhar (ainda que em sonho) com a Coreia do Sul, acessar a internet, vestir coisa parecida com calça jeans, usar, na prática de esportes, as mesmas regras do mundo democrático, viajar para o exterior, ver filme estrangeiro, e por aí vai. A vantagem é que existem eleições livres. O eleitor pode votar em qualquer um dos candidatos escolhidos pelo governo.

Bem, acho que já deu para se ter uma ideia da maravilha que é a vida em terras norte-coreanas. Só mais um aviso, que pode ser de especial interesse para você, caro leitor: maconha é crime. O último que experimentou morreu gloriosamente, fuzilado na frente de 150 mil pessoas.

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Animizades

quarta-feira, 07 de agosto de 2024

Pessoas que, embora nos conhecendo, gostam de nós

Pessoas que, embora nos conhecendo, gostam de nós

Pior do que encontrar um inimigo é dar de cara com um ex-amigo, porque este traz consigo, além da inimizade, a lembrança da amizade que acabou. Essa foi a ideia que me ocorreu quando, no labirinto das prateleiras do supermercado, esbarrei com uma pessoa com a qual convivi fraternalmente por alguns anos. Não sei se eu errei, se ele errou, ou se foram as circunstâncias que, no passado, ergueram entre nós uma parede tão concreta que, se um de nós escorregar, bate com a cabeça nela e ganha um galo na testa. Para falar a verdade, eu acho que eu estava com a razão e ele, claro, com a desrazão. Mas está na cara (dele) que ele pensa exatamente o contrário.

Em uma de suas palestras, Leandro Karnal conta uma história (ou será anedota?) sobre Voltaire. O famoso filósofo iluminista já estava nos últimos suspiros, partindo desta para a melhor (embora ele não acreditasse em outra vida e menos ainda em outra vida melhor). Um padre, querendo salvar aquela alma rebelde, insistiu com ele: “Abandona o demônio, renega o diabo!” Voltaire, ateu que era, respondeu: “Padre, eu estou pra morrer. Não é hora de fazer inimigos”.

Pois eu devoto a mais radical inimizade àquele “cujo nome não se diz”. Concordo com Riobaldo: “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta”. Afora isso, procuro me dar bem com todo mundo. Outro dia tive o trabalho de contar as pessoas que viram a cara quando dão o azar de passar por mim. Vai ver que são centenas, mas que eu saiba, declaradas, não foram além dos cinco dedos da mão direita. Depois disso, uma dessas pessoas faleceu, infelizmente antes que tivéssemos fumado o cachimbo da paz ou ao menos tomado em paz um cafezinho. As outras quatro estão aí, e eu peço a Deus que lhes dê vida longa, cheia de saúde e sucesso.

Porque a vida não é mais do que um pequeno jardim no fundo do quintal. Não vale a pena desperdiçar esse espaço, que já é pouco, cultivando ervas daninhas. Rancores e antipatias, raivas e animosidades. Ódio, então, nem se fala, que esse não só estraga o jardim inteiro como envenena quem o plantou.  A triste verdade é que somos mesquinhos demais para amar a todos de todo o coração. Mas não custa reservar ao menos um cantinho do jardim para aquelas pessoas que olham para as nuvens quando passam por nós. Ou mesmo para as que lamentam que já tivéssemos chegado na calçada quando o caminhão passou.

Lembremo-nos de Mandela, que, após décadas nas prisões do apartheid, saiu delas não para vingar, mas para pacificar. Lembremo-nos de Ghandi, que pagou com a vida sua teoria e prática de resistência pacífica, mas libertou a Índia do jugo inglês. E não nos esqueçamos de Teresa de Calcutá e Dulce da Bahia.

O que não falta no mundo é gente do mal, agentes do mal. Gente cheia de ódio, preconceito, fanatismo. Melhor deixá-las no fundo baú do esquecimento e lembrar apenas de quantas pessoas boas existem, daquelas que, embora nos conhecendo, gostam de nós.

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Outros hawkings

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Os insetos ─ as formigas e as abelhas em particular ─ apresentam exemplos dramáticos de cooperação social que poderiam facilmente fazer corar de vergonha a Assembleia Geral das Nações Unidas - (António R. Damásio, in O erro de Descartes)

Os insetos ─ as formigas e as abelhas em particular ─ apresentam exemplos dramáticos de cooperação social que poderiam facilmente fazer corar de vergonha a Assembleia Geral das Nações Unidas - (António R. Damásio, in O erro de Descartes)

Vocês sabem que o astrofísico inglês Stephen Hawking é um dos maiores gênios da ciência moderna, tendo criado teorias que mudaram a nossa humilde, porém muito melhorada por ele, compreensão do universo. Hawking foi grande não só pela sua inteligência impressionante, mas também por sua capacidade produtiva, mesmo sofrendo de esclerose lateral amiotrófica. Desde os 21 anos, quando descobriu que a fatalidade o atingira, até a morte, aos 76, não se deixou curvar pela doença, embora ela tivesse curvado e torcido tanto o seu corpo. Vale a pena ver o filme “A teoria de tudo”, que conta a história desse homem extraordinário.

Pois bem, uma das mais preocupantes previsões de Hawking é a de que nosso planeta está com os dias contados. Bastantes dias, é verdade, mas ele foi o primeiro a marcar uma data baseada em cálculos e não em palpites. E concluiu que isso acontecerá se os seres humanos ─ isto é, eu, você e todos os demais ­─ continuarem a tratar a Terra como se fosse uma produtora inesgotável de bens e, ao mesmo tempo, um imenso depósito de lixo.

Hawking acreditava que, do jeito que as coisas vão, o planeta suportará nossa presença por mais 600 anos no máximo. Então, tudo acabará, não haverá mais canto de passarinho, nem sorriso de criança. Se o sol e a lua continuarem pendurados no céu, não será para nosso proveito, pois não sobrará ninguém para sentir calor de um ou admirar o brilho da outra. Quando o último de nós sair, nem mesmo terá que apagar a luz: vai ter que sair correndo, e no escuro. Mas, como de tudo resta um lado bom, também não haverá mais guerra, doença, fome, ou preocupação com o fim do mundo.

Uma saída apontada por Hawking seria a descoberta de um lugarzinho que possa nos abrigar neste vasto universo, mas tenho dúvida de que a mudança de endereço seja suficiente para melhorar a situação. Bem pouco nos preocupamos com o que não está perto de nós, com o que não é imediato, com o que não nos pertence. Sofremos mais com nosso resfriado do que com as mortes na Faixa de Gaza. Se levarmos conosco esse egoísmo, essa cegueira, uns poucos séculos e já teremos destruído esse lar futuro, caso ele venha de fato a ser encontrado.

Não é que eu pretenda viver mais 600 anos. Nem por isso deixo de ficar preocupado com o que acontece enquanto estou por aqui. E, embora seja um dos oito bilhões de habitantes que estão consumindo o planeta, fico triste com queimadas no Pantanal, inundações no Rio Grande do Sul, desmatamento no Cerrado, barragens que se rompem, derretimento das calotas polares, vazamento de óleo no oceano, lixo nos rios. E, pairando acima de tudo, o aquecimento global, que faz o mundo parecer um fumante inveterado, que conscientemente envenena a si mesmo.

Nossa esperança é que surjam outros hawkings e que eles finalmente sejam ouvidos. Não adianta pedir que o mundo pare para a gente sair. No momento não há para onde sair. Talvez daqui a 600 anos.

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Duas histórias

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Uma alegre: marido brasileiro

Eu estava andando na praia quando passou um rapaz que, conduzindo um carrinho com alto-falante, vendia CDs de piadas. Ouvi o final de uma delas, deduzi o resto, inventei um pouco e conto-a agora para vocês.

Dizem que se realizou nos Estados Unidos um curso para mulheres, cujo objetivo era torná-las livres do jugo masculino e, portanto, capazes de ver o mundo de outra maneira. Na segunda versão do curso, as diplomadas do ano anterior foram chamadas a dar seus depoimentos.

Uma alegre: marido brasileiro

Eu estava andando na praia quando passou um rapaz que, conduzindo um carrinho com alto-falante, vendia CDs de piadas. Ouvi o final de uma delas, deduzi o resto, inventei um pouco e conto-a agora para vocês.

Dizem que se realizou nos Estados Unidos um curso para mulheres, cujo objetivo era torná-las livres do jugo masculino e, portanto, capazes de ver o mundo de outra maneira. Na segunda versão do curso, as diplomadas do ano anterior foram chamadas a dar seus depoimentos.

O apresentador pediu a opinião da representante da França.

─ Então, Madame Balzac, o curso foi útil para a senhora?

─ Muito útil, vocês nem imaginam! Cheguei em casa e disse: “François, a partir de hoje eu não lavo nem mais uma pecinha de roupa”.

─ E qual foi a reação do seu marido?

─ Olha, no primeiro dia eu não vi nada. No segundo, também não. Mas no terceiro dia ele começou a lavar as meias, as cuecas... Hoje ele é dono da maior rede de lavanderias da França.

─ Muito bem, Madame Balzac! Vamos ouvir agora Mrs. Fitzgerald, representante dos Estados Unidos. Qual foi o resultado do curso para a senhora, Mrs. Fitzgerald?

─ Bom demais, vocês nem imaginam! Cheguei em casa e disse “Bob, a partir de hoje eu não cozinho mais, adeus fogão!”

─ E qual foi a reação do seu marido?

─ Olha, no primeiro dia eu não vi nada. No segundo, também não. Mas no terceiro dia ele começou a fritar um ovo, fazer umas panquecas... Hoje ele é dono da maior rede de restaurantes dos Estados Unidos.

─ Muito bem, Mrs. Fitzgerald! Vamos agora ouvir a representante do Brasil, Dona Hermenegilda, vinda lá do interior da Paraíba. Dona Hermê, qual foi o resultado do curso na vida da senhora?

─ Pois veje, seu moço, cheguei em casa e falei “Severino Raimundo, a partir de hoje não lavo mais roupa, não cozinho mais e nem varro quintal”.

─ E qual foi a reação do seu marido, Dona Hermê?

─ Olha, no primeiro dia eu não vi nada. No segundo, também não. Mas no terceiro dia, quando meus olho começaro a desinchar, comecei a ver uns vulto, umas sombra, uns movimentozinho pela casa!

 

Outra triste: O voo do motociclista

A caminho da festa, a moto voava ─ um palmo acima do chão. De repente, o caminhão parou. Ele sentiu que agora a moto estava em pleno ar, e ele junto com ela. Mas o chão do asfalto parecia subir ao seu encontro.

Levantou-se logo e partiu para a festa. Num segundo estava lá, no meio da zoeira. Luzes e som por todo lado, muita gente cantando, pulando, dançando, bebendo. O movimento era grande, e ele não conseguia ver as caras, apenas vultos. Uma bebida estranha foi parar na sua boca, e depois outra e mais outra, em golfadas. No meio da multidão, reconheceu Luana. Nem sabia que ela gostava de festa! Dançou muito com ela, como tantas vezes tinha sonhado fazer.

Às vezes a cabeça parecia ir às nuvens. Ou explodir.  Aos poucos, Luana foi se desintegrando no meio do povo. Estendeu a mão para alcançá-la, mas antes disso homens de rostos borrados o agarraram. Queria desvencilhar-se deles e voltar para casa. A mãe com certeza ainda acordada, rezando para que ele chegasse. Nessas horas, gostava de cantar para ela: “Não sou filho único, não moro em Jaçanã...” Ela guardava o terço, benzia-o e ia dormir.

Agora, no entanto, a casa era um vazio branco. Seguiu a luz que brilhava no fundo do corredor, mas a luz fugia e o corredor não acabava nunca. Cansado, deitou-se no chão. O ar sumia, sugado pelas nuvens. Um barulho estridente crescia à sua volta. Vermelha, a lua girava e piscava, e de repente a palavra AMBUL formou-se no espaço. Sentiu que o levantavam e o deitavam. Alguém passou a mão sobre seu rosto e fechou seus olhos.

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Andando de aplicativo no Rio de Janeiro

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Vai por mim: só fuzil pra dar jeito no Brasil

 

Motorista 1 – O revolucionário

Vai por mim: só fuzil pra dar jeito no Brasil

 

Motorista 1 – O revolucionário

            Olha aí, engarrafado de novo. Não tem mais dia, nem hora, nem lugar. Uma miséria. E os bacanas só roubando a gente, obra que é bom, neca de pitibiriba. Tá vendo algum guarda de trânsito? É ruim! Os carinhas lá de cima só querem faturar e, quando cansam de roubar com a direita, mudam de mão e começam a roubar com a esquerda. Haja banco suíço! E quem paga? O trabalhador, tá na cara. Já fui multado duas vezes na rodoviária no mesmo dia. Estava deixando passageiro, o guardinha achou que eu estava estacionado e me meteu a caneta. Ladroagem geral. 

Eu acho que só tem um jeito: é todo mundo pegar na metralhadora e liquidar essa cambada de ladrões. E quem ficaria no lugar dos que a gente matasse? Ah, meu senhor! Botava gente que não fosse ladrão. E se começar a roubar, igual aos que estão aí, a gente mata também. Mas brasileiro é tudo frouxo. Eu pegava na metralhadora e saia atirando. Uns frouxos!  Só correndo muito sangue é que o Brasil tem jeito. Olha na França: dizem que francês é tudo bicha, mas vê só: o governo pisa no calo do povo e eles vão pra rua, botam fogo em tudo. Mas no Brasil... Na minha opinião, só metendo bala pra acabar com essa ... Desculpa aí o palavrão.  Já vi que o senhor não é de pegar em arma, mas vai por mim: só fuzil pra dar jeito no Brasil. Até rimou!

 

Motorista 2 – O caladão

─ Bom dia!

─ Pode fechar a janela, por favor?

─ Prefiro ir pela praia, se não tiver problema para o senhor.

─ É aquele prédio ali na frente.

─ Obrigado, Bom dia de trabalho para o senhor. Vai com Deus.

BANG! (Porta do carro sendo fechada).

 

Motorista 3 - O otimista

Bom dia, doutor. Bom dia, madame. Tem uma retençãozinha ali na frente, mas é coisa só de dez, quinze minutos. Vinte talvez. Meia hora, no máximo.  Aeroporto?! Sem problema, o avião espera. Rá-rá-rá! Mais uma obra da prefeitura! É a Cidade Maravilhosa maravilhando ainda mais. O senhor vê, enquanto a gente espera liberarem a pista, a gente fica olhando essa beleza de mar, esse céu azul (se bem que hoje tá meio cinzento). E a mulherada, hein?! A madame me desculpe, mas o Rio tem a maior concentração de mulheres bonitas do mundo. Isso é fato verdadeiro e comprovado, tem até pesquisa americana. E o Cristo!? Só em olhar para o Cristo já ganhei o meu dia. Olha lá o bondinho. Nunca andei porque tenho medo, mas que é muito legal, ah, isso é. Assalto? Assaltado só fui uma vez. O cara abriu a janela, meteu um três oitão na minha cara e falou “passa a grana, cidadão!” Ainda teve a gentileza de me chamar de cidadão! É o Rio de Janeiro! Tá aí, chegamos. Corre que o avião ainda deve estar na pista. Vão com Deus, com São Cristóvão e com São Jorge. Ogum proteja o lindo casal! 

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O mesmo

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Experimente colocar num banheiro público o aviso “é proibido escrever palavrão na porta”

Experimente colocar num banheiro público o aviso “é proibido escrever palavrão na porta”

Você tem medo de andar no mesmo? E quando o mesmo demora, você fica irritado? Você já ficou preso no mesmo? E se você não sabe que o pronome “mesmo” virou substantivo (sinônimo de elevador), é porque nunca prestou atenção ao aviso que está ao lado da porta de todos os sobe e desce do nosso estado: “Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar. Lei Estadual No. 9502/97”. Para orgulho nosso, o texto foi perpetrado na Assembleia Legislativa Fluminense e se espalhou pelo país. Pior do que isso o douto legislador não podia ter feito, e nenhum dos seus nobres companheiros ousou levantar a voz (ou a caneta) para salvar da redação infeliz tão feliz advertência. 

Eu não entendo de elevadores. Até para escolher entre os botões de subida e decida preciso de alguns instantes de reflexão. Também não entendo muito de português, mas ao menos sei que toda palavra antecedida de artigo vira substantivo, ou seja, nome de alguma coisa. Portanto, acho que a bem-intencionada 9502/97 ficaria melhor assim: “Ao abrir a porta do elevador, certifique-se ele está parada neste andar.” Ou, melhor ainda: “Stop! Antes de dar um passo adiante, verifique se não há um buraco negro à sua frente!” O uso do stop se justifica porque brasileiro presta mais atenção nas palavras inglesas do que nas portuguesas. Brincadeiras à parte, convém mesmo (olha ele aí, travestido de advérbio!) ficar atento, porque muita gente já morreu ao cair no poço ─ por exemplo: a atriz Anecy Rocha, irmã caçula do cineasta Glauber Rocha.

Palavras e expressões impõem-se na língua por si mesmas, não precisam de autorização nem aceitam proibição. É uma das poucas coisas em que o povo manda e desmanda. Resultaram sempre em fracasso as tentativas de regular por meio de canetadas como as pessoas devem falar. O latinista Castro Lopes propôs a criação de palavras que substituíssem o que ele chamou de “barbarismos dispensáveis”. Salvaram-se (mais ou menos) “cardápio” e “convescote” para ocupar o lugar de “menu” e “piquenique”, respectivamente. Outras, como “preconício” (anúncio comercial), “ludâmbulo” (turista), “runimol” (avalanche) e “ancenúbio” (nuance) foram completamente ignoradas pelos brasileiros. Durante a Segunda Grande Guerra, Mussolini proibiu o uso do pronome “Lei” na Itália. A guerra acabou, Mussolini morreu e, apesar dele, o pronome e a Itália sobreviveram. Experimente colocar num banheiro público o aviso “é proibido escrever palavrão na porta”. No dia seguinte o outro lado da porta estará cheio de palavrões.

Zamenhof pensou no esperanto como uma língua universal, mas calcula-se que hoje apenas cerca de 100 mil pessoas entendam esse idioma artificial. Enquanto isso, o inglês... Certa vez, um deputado brasileiro tentou extinguir a crase, que é um fenômeno da fala e, portanto, não pode ser regulado por leis. Isso nos obrigaria a falar, por exemplo, “cada...armário”, ou invés de “cadarmário”, como comumente se faz. O que o deputado certamente queria, e já seria um desastre, era extinguir o acento grave indicativo de crase, necessário para distinguir “pintar a máquina” de “pintar à máquina, ou “cheirando a flor” de “cheirando à flor”.

Enfim, vamos deixar de invencionices. Mas, por prudência e a amor à vida, não entre no elevador sem ter certeza de que ele (também conhecido como “o mesmo”) está ali parado, pacientemente esperando por você.

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Tempos rudes

terça-feira, 28 de maio de 2024

“Que coisa é a formosura senão uma caveira bem vestida?”

“Que coisa é a formosura senão uma caveira bem vestida?”

Recebeu destaque na internet uma distinta senhora que ostenta um título do qual muito se orgulha e que faz com que ela mereça ser notícia de primeira página. Não se trata de nenhuma cientista, nenhuma líder de causas humanitárias, nem mesmo de uma atriz ou cantora famosa. Naturalmente que há em nosso país outras mulheres admiráveis, e eu me lembro, assim de pronto, da dra. Zilda Arns, que, ensinando às mães métodos simples e baratos, tirou da desnutrição e da morte milhares de crianças Brasil afora, sem pedir um tostão ao governo ou a quem quer que fosse. A Pastoral das Crianças, criada por ela, já inspirou similares em outros países e foi indicada para o Prêmio Nobel da Paz.

Mas a senhora da qual estou falando é admirável (ou pelo menos admirada) por outros merecimentos, ou melhor dizendo, por um único merecimento, embora muito grande, tão grande que não deixa de ser notado por onde ela passa. Notável sobretudo quando a citada senhora é vista pelas costas. Em resumo: ela tem o maior traseiro do Brasil, foi eleita a Rainha Nacional do Bumbum.  Quando vi sua foto, o que mais me causou espanto foi a habilidade do fotógrafo, que conseguiu colocar tudo aquilo na telinha do computador. É coisa para tela de cinemascope.

Nada contra as mulheres calipígias. A beleza, onde quer que se situe, é sempre um colírio neste mundo onde há tanta feiura. Também não quero criticar ninguém, cada um goste do que quiser ou puder. Beleza é um conceito muito vago, para o sapo a sapa é a coisa mais linda que existe. Além disso, como sentenciou o Pe. Antônio Vieira, “que coisa é a formosura senão uma caveira bem vestida?”, para em seguida concluir, melancolicamente, que mesmo a formosura feminina é “a cada ano cortada com o arado do tempo”. Se não me engana a lembrança de um livro de José de Alencar lido há muitos anos, em “A pata da gazela” um personagem se apaixona pela heroína ao encontrar um pé de sapato que ela havia deixado cair. Ele conclui que a dona de pezinho tão delicado só podia ser uma mulher encantadora.

Enfim, tem gosto pra tudo neste mundo, quem ama o feio bonito lhe parece. Mas certas notícias que eu vejo me fazem pensar que estamos vivendo tempos especialmente vulgares, embora seja certo que a vulgaridade sempre existiu, é coisa do começo do mundo. Mas atualmente estamos exagerando. Basta ligar o rádio, por exemplo, para ver que estamos ouvindo mais sapos cururus do que uirapurus. Onde estão os antigos poetas da MBP?  Caíram no mais profundo silêncio. E mesmo dentre os atuais, é um uirapuru para cada mil sapos cururus. Assim na música, assim no humor, assim em tudo mais.

Mas não desanimemos. Sempre haverá gente fina, cuja grandeza, se mede pelo que têm na mente e no coração, e não pelo tamanho de qualquer parte do corpo. Aprendamos com a fala de Cora Coralina, nos últimos versos do poema “Assim eu vejo a vida”: “Nasci em tempos rudes/ Aceitei contradições/ lutas e pedras/ como lições de vida/ e delas me sirvo/ Aprendi a viver”.

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A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.

As mães tem sempre razão

terça-feira, 14 de maio de 2024

Em homenagem às mães leitoras de A VOZ DA SERRA, republico esta crônica  

As mães têm sempre razão. Para não exagerar, porque toda generalização é perigosa, direi que as mães têm razão em 99,9% das vezes. Pelas minhas contas, qualquer mãe tem que dar 10.000 opiniões para errar uma. Melhor que isso, só Deus, que nunca erra.  Verdade que criou o homem, mas se redimiu, criando a mulher logo em seguida. Parece que consta das Escrituras que, tendo feito Adão, Deus olhou bem e falou: “Eu posso fazer coisa melhor”. Então criou Eva.

Em homenagem às mães leitoras de A VOZ DA SERRA, republico esta crônica  

As mães têm sempre razão. Para não exagerar, porque toda generalização é perigosa, direi que as mães têm razão em 99,9% das vezes. Pelas minhas contas, qualquer mãe tem que dar 10.000 opiniões para errar uma. Melhor que isso, só Deus, que nunca erra.  Verdade que criou o homem, mas se redimiu, criando a mulher logo em seguida. Parece que consta das Escrituras que, tendo feito Adão, Deus olhou bem e falou: “Eu posso fazer coisa melhor”. Então criou Eva.

Um exemplo, só para exemplificar: Uma senhora levou a filha a um conceituado médico de nossa cidade e sugeriu que a moça estava com o mesmo problema que ela, mãe, havia tido quando jovem. Dizem que 10% dos juízes pensam que são Deus. Os outros 90% têm certeza. Parece que com os médicos não é muito diferente, e tanto que esse desfez do diagnóstico materno, pontificando que toda mãe apresenta essa mania doentia de querer saber, mais do que os doutores, do que os filhos padecem. Deu outra definição para o caso, rabiscou uma receita e mandou as duas para casa. Dois dias depois internou a moça, exatamente com o problema que a mãe havia sugerido. Eu, se fosse médico, consultava a mãe do paciente antes de tomar qualquer decisão, porque a ciência, por melhor que seja, nunca alcança 99,9% de acerto, coisa que coração de mãe faz sem precisar de vade mecum.

Estou puxando esse assunto porque ultimamente ando me lembrando de coisas que minha mãe dizia. Não que ela vivesse fazendo citações. Ao contrário, ela era de pouca conversa, mais de calar do que de falar. E tinha o dom de poupar os filhos de longos sermões, sintetizando em poucas palavras o que outras transformariam numa infindável catilinária.

Quando reclamávamos de algum acontecimento que nos parecia injusto, ela sentenciava: “Deus sabe o que faz, a gente não sabe o que fala”. Grande verdade! Se ouvíssemos mais a voz de Deus e falássemos menos, com certeza nossas burradas e consequentes sofrimentos seriam bem menores. “Quando a cabeça não pensa, o corpo é que paga”, ponderava ela, se atitudes erradas resultassem em sofrimentos físicos, tais como ficar doente, engordar ou emagrecer demais, ferir-se ou mesmo morrer. De alguém que colocava no prato mais do que podia comer, dizia que o guloso pretendia “Comer com os olhos”, ou que tinha “O olho maior que a barriga”.

Na verdade, era um tempo de sínteses definitivas. Bares e armazéns abriam todos os dias com a mesma tabuleta pendurada na parede: “Fiado só amanhã”. E, embora fosse comum a existência de um prego em que as dívidas dos fregueses eram penduradas, o fiado sempre foi malvisto. Não era incomum que vários estabelecimentos ostentassem um cartaz em que duas famílias ficavam lado a lado, separadas por dois fios de tinta: um azul e outro vermelho.  No lado azul, numa sala luxuosa, um comerciante rico e saudável, cercado de lindos filhos e linda esposa. No vermelho, seu colega esquelético, sentado numa cadeira capenga; a mulher, esfarrapada, segurando nos braços uma criança desnutrida, enquanto duas outras olham para a clientela com olhos de fome. Embaixo de cada figura, a legenda completava a obra de arte: “Este vendeu a dinheiro. Este vendeu fiado”.

E vou parando por aqui, porque já falei demais, e mamãe sempre dizia que “A palavra é de prata e o silêncio, de ouro”. Em todo caso, espero não ter gasto toda essa prata sem dizer ao menos alguma coisa que se aproveitasse.

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