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Grandes dúvidas

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver

            O governo me convoca para que eu prove ainda estar vivo, coisa de que de vez em quando até eu duvido. Sim, porque assisti a um filme em que os mortos custavam a se dar conta da nova realidade, e achavam que fantasmas eram os outros, isso é, os vivos de verdade. Nunca se pode ter certeza de nada. Já dizia Bertold Brecht que “de todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”.

Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver

            O governo me convoca para que eu prove ainda estar vivo, coisa de que de vez em quando até eu duvido. Sim, porque assisti a um filme em que os mortos custavam a se dar conta da nova realidade, e achavam que fantasmas eram os outros, isso é, os vivos de verdade. Nunca se pode ter certeza de nada. Já dizia Bertold Brecht que “de todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”.

            Por exemplo. No Japão o número de pessoas centenárias é uma coisa verdadeiramente japonesa. As mulheres da Terra do Sol Nascente são os seres humanos mais longevos do mundo, batem facilmente nos noventa e nos noventa ainda batem nos filhos, nos netos e no marido, se ele ainda estiver vivo e se meter a besta.

             Até algum tempo, quando alguém fazia cem anos, o governo lhe mandava uma taça de prata maior que uma jarra. Mas de repente disparou a crescer o número de velhinhos que se recusava a morrer antes de completar um século. A continuar assim, nem a poderosa economia nipônica aguentava.  Resultado: atualmente o governo oferece uma tacinha do tamanho de um dedal, e olhe lá!

            Pois bem, bateu a dúvida. Era ancião demais, não havia prata que desse. Os gastos com as ricas pensões era uma enormidade. As autoridades resolveram então investigar a história. Numa das casas visitadas, os fiscais encontraram uma múmia deitadinha, coberta por um lençol. Apertados pela polícia, os herdeiros da múmia, que todo mês embolsavam o dinheiro da pensão, alegaram que não sabiam que o digno parente já havia morrido. “Ele sempre foi assim quietinho”, alegaram com a cara mais sincera e sentida.

            Quanto a mim, considero legítima a preocupação do governo em saber se ainda existo, e tanto que fui lá para ser vivamente fichado e fotografado. Convencido de que ainda não sou uma múmia, o Poder julgou-me ainda merecedor dos trocadinhos que mensalmente deposita em minha conta. Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver, só mesmo ficando quietinha embaixo dos lençóis. Tendo provado que eu era eu e ainda respirava, voltei para a rua me sentindo alegre e orgulhoso. Orgulhoso por ter cumprido o dever cívico, alegre porque ─ conspiração da natureza ─ tudo em volta estava cheio de luz e cor.

            De repente, a chateação de atender a uma chamada burocrática havia se convertido na agradável sensação de estar vivo, em paz com tudo e todos, aí incluindo o governo e seus agentes. Longa é a arte, curta é a vida, já dizia nosso amigo Sêneca. Aliás, esse tal de Sêneca foi professor e conselheiro de Nero, aquele de Roma. Ainda hoje resta dúvida sobre qual a responsabilidade de Sêneca nas malvadezas de seu discípulo. Talvez muita, mas não se pode esquecer que o outro conselheiro de Nero chamava-se Burro ou, por extenso, Sexto Afrânio Burro. Um nome desses explica muita coisa.

            E lá fui eu, não menos burro, porém mais satisfeito, porque, feitas as contas, resulta que viver é uma experiência boa, e a gente às vezes a desperdiça com pequenos rancores, velhos preconceitos, tolas fantasias. Não vale a pena gastar a curta vida com essas miudezas. Alegremo-nos por estar vivos. Porque dia chegará em que o governo mandará perguntar por nós, e ficará sabendo que há muito nos tornamos uma múmia, coberta por um curto lençol de terra.

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A garota e o ipê

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Algumas caveiras já nascem maravilhosamente bem vestidas

Algumas caveiras já nascem maravilhosamente bem vestidas

Não tem jeito. A própria Heloisa Pinheiro, que não envelhece nunca na canção de Vinícius e Tom, completou 81 primaveras, como se dizia antigamente, e mais os verões, invernos e outonos correspondentes. Conservadíssima, está tão feliz com a nova idade que comemorou duas vezes o aniversário: em julho e em agosto. Que o tempo, esse implacável inimigo do corpo humano, lhe permita assim permanecer por longos anos, ela, que permanecerá eternamente jovem, para sempre a Garota de Ipanema, a “coisa mais linda, mais cheia de graça”. O Pe. António Vieira disse que a beleza nada mais é do que uma caveira bem vestida. Mas algumas caveiras já nascem maravilhosamente bem vestidas, e esse é o caso de Helô Pinheiro.

Teve razão o Poetinha quando a viu passar “num doce balanço a caminho do mar” e quando concluiu que a beleza é fundamental. Com certeza, e não só a beleza feminina, desde sempre e em todo lugar exaltada em prosa e verso. Mas também a que tantas vezes está ao nosso redor, sem que nela reparemos. Uma conhecida me disse que havia fotografado um ipê na minha rua. Eu já tinha reparado naquele amarelo exagerado, mas, ao retornar para casa, me detive um instante para contemplar o presente que a natureza colocara à disposição de meus olhos, de graça e sem que eu fizesse nada para merecer.

O sucesso de “Garota de Ipanema” se deve com certeza à qualidade da letra e da melodia, mas se deve também à sua inspiração original: a própria beleza. Em vozes que vão de Pery Ribeiro (primeiro a gravá-la) a Frank Sinatra, “Garota de Ipanema” chegou a ser a música mais executada ao redor no mundo, depois de “Yesterday”. Houve um tempo em que se dizia que ela nunca parava de tocar, porque, quando calava em algum lugar do planeta, já começava a se fazer ouvir em outro. Silenciava no Japão e no mesmo instante começava na Islândia. Em 1965 ganhou o Grammy, superando sucessos como “I want to hold your hand”, dos Beatles, e “Hello, Dolly”, com Louis Armstrong. Aliás, certa vez disseram a Tom Jobim que só os Beatles eram mais tocados do que ele, ao que o “maestro soberano”, como o chamou Chico Buarque, respondeu que “sim, mas eles eram quatro!”

Os dicionários ensinam que a beleza é a característica do que apresenta perfeição de formas; o ser ou a coisa que desperta sentimento de êxtase, admiração ou prazer através dos sentidos. Por isso mesmo ilumina os olhos e alegra o coração. A expressão “está cansando a minha beleza” não tem sentido, porque o belo nunca se cansa e nunca nos cansa. Ao contrário, é preciso que ele nos cerque, para que haja leveza num mundo com as guerras, as injustiças, as pequenas e grandes dores que podem tornar a nossa passagem pela existência uma coisa feia e pesada. Como na definição de Shakespeare/Macbeth: “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum”.

Da garota de Ipanema ao ipê da minha rua, a beleza existe e está aí, ao nosso redor, para nossa contemplação. Quem tem olhos de ver, que veja.

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A mãe, a pátria e a língua

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Zombamos do que somos, depreciamos o que temos

Perguntei a um amigo estrangeiro se, depois de tantos anos vivendo no

Brasil, ele ainda se lembrava da língua natal. A resposta foi ao mesmo tempo

sentida, poética e verdadeira. “Há três coisas de que nunca nos esquecemos”,

disse ele, “a mãe, a pátria e a língua”.

O que se pode dizer sobre as mães que ainda não tenha sido dito, por

poetas, filósofos, religiosos e quem mais se disponha a pensar por um segundo

que seja na própria vida? Como alguém pode contar sua história sem começar

Zombamos do que somos, depreciamos o que temos

Perguntei a um amigo estrangeiro se, depois de tantos anos vivendo no

Brasil, ele ainda se lembrava da língua natal. A resposta foi ao mesmo tempo

sentida, poética e verdadeira. “Há três coisas de que nunca nos esquecemos”,

disse ele, “a mãe, a pátria e a língua”.

O que se pode dizer sobre as mães que ainda não tenha sido dito, por

poetas, filósofos, religiosos e quem mais se disponha a pensar por um segundo

que seja na própria vida? Como alguém pode contar sua história sem começar

pelo começo? E acaso não é a mãe o começo de tudo? E o fim também:

reparem nas visitas aos presídios: o sujeito matou, roubou, violentou, enfim, é

um monstro do qual ninguém quer saber. Mas lá está a mãe, que foi levar pasta de dente e sabonete para o seu menino. Às vezes leva uma arma, um celular, um bilhete do crime dentro do sanduíche. Faz sentido, porque coração de mãe sempre tem amor, mas nem sempre tem juízo.

Mãe só uma, porque mais de uma ninguém aguenta, dizem os piadistas.

Mas, na verdade, para que precisaríamos de duas ou três, se, como me disse

uma conhecida, uma só mãe cuida de dez filhos, embora dez filhos nem

sempre cuidem da mãe.

...................

Ao que se sabe, o brasileiro é o único povo que gosta de falar mal de si

mesmo. Podemos criticar os outros, mas para zoar e ridicularizar não

precisamos sair daqui. Tem até uma anedota mais ou menos assim: fizeram

uma pesquisa internacional com a seguinte pergunta: “Responda

honestamente, por que sobra comida em alguns países, enquanto o resto do

mundo passa fome”? Não foi possível chegar a uma conclusão porque: a) os

africanos não sabiam o que era comida; b) os europeus não sabiam o que era

fome; c) os americanos não sabiam o que era o resto do mundo; d) os

brasileiros não sabiam o que era honestamente.

Zombamos do que somos, depreciamos o que temos. Quando no

estrangeiro, no entanto, parodiando Tom Jobim, acabamos por concluir que lá

fora é ótimo, mas é uma porcaria; aqui é uma porcaria, mas é ótimo.

........................

Dizemos que nosso idioma é muito difícil. Difícil para quem? Para os

alemães? Os chineses? Pode ser que o basco seja pior, tanto que se diz que,

quando Deus quis castigar o diabo, obrigou-o estudar basco por sete anos. Os

brasileiros desde criancinha falam português sem problema, e todo mundo se

entende. O que se pode dizer com alguma verdade é que a gramática “oficial”

da língua português é complicada.

Recentemente li um artigo sobre estrangeiros que vieram ao Brasil e se

apaixonaram pelo país e, espantoso, pelo idioma. Alguns depoimentos (*):

Mathew Shirts, americano: “A facilidade com que se brinca com a língua

portuguesa e sua musicalidade é admirável”. Yan Liang, chinesa: “No

português, falamos e a pessoa escreve mais fácil. A sonoridade encanta, além

de a gramática ser muito mais rica”.

Para o alemão Rolf Udo Zelmanowics a palavra “estacionamento” é a palavra mais bonita da nossa língua: “É só repetir bem devagar, saboreando cada sílaba, para perceber a sonoridade”. Se eles podem aprendê-la e gostar dela, tendo-a conhecido já adultos, por que não nós, que já nascemos com ela em nossos ouvidos, e “mãe” foi a primeira palavra que pronunciamos?

*Citados na revista Língua Portuguesa, ano 1, número 9, 2006.

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A sabedoria do pente e da tesoura

quarta-feira, 02 de outubro de 2024

Estando eu sentado e indefeso, e ele com a navalha na mão, não me convém criticá-lo

Estando eu sentado e indefeso, e ele com a navalha na mão, não me convém criticá-lo

Eu tive ótimos professores, mas também aprendi muito com os barbeiros a quem confiei minha cabeça e emprestei meus ouvidos. Ouvidos às vezes sonolentos, admito, mas nem por isso menos interessados na sabedoria que vinha junto com a tesoura e o pente. Um humorista irônico disse que é uma pena que todos os homens capazes de bem governar a nação estejam trabalhando como barbeiro ou taxista. Limito-me a falar dos primeiros, desde já excluindo o atual. A bem da justiça, afirmo que este, diferentemente dos anteriores, contenta-se em me cortar o cabelo, sem querer fazer de mim um sábio, ou mesmo um cidadão bem informado. Também porque, estando eu sentado e indefeso, e ele com a navalha na mão, não me convém criticá-lo.

Por outro lado, dizer “navalha” é um anacronismo. Os barbeiros modernos abandonaram o histórico instrumento da profissão e agora usam uma prosaica lâmina gilete para raspar a cara do freguês. Também é notável a transformação dos salões. Antes austeros, com cara de barbearia, transformaram-se em ambientes multiuso, com cafeteria, balcão e, se duvidar, uísque e queijos importados.  Ainda não vi nenhum com mesa de bilhar, mas não duvido que exista. E não mais usam a vulgar palavra portuguesa que por séculos denominou seus estabelecimentos, agora os batizam de “barber shop”, que lhes parece coisa bem mais refinada.

Um desses profissionais muito me enriqueceu com seus amplos conhecimentos sobre medicina, futebol e administração pública, que eram suas especialidades, embora os assuntos que dominava com igual profundidade fossem muito além disso. Verdade que já me esqueci de quase tudo que ele me ensinou ao longo dos anos em que fui seu freguês, ou cliente, que é uma maneira mais elegante de dizer a mesma coisa. Atualmente, nem as quitandas dos bairros têm mais fregueses, foram todos promovidos a clientes. Mas se esquecimento houve, a culpa é da pouca memória do aluno, não da muita competência do professor.

Na medicina, conhecia e avaliava cada um dos profissionais da nossa cidade. A urologia não tinha segredo para ele, embora usasse termos pouco científicos para falar do assunto, sobretudo quando abordava o temido exame de próstata. Indicou-me vários tratamentos, vaticinando problemas cardíacos que poderiam vir a me atacar, sendo a preocupação que então me atacou o único problema cardíaco que tive até hoje (Deo gratias!). Conhecia muito de ortopedia, cuja etimologia ─ “ciência do pé correto” ─ ensinava com ar professoral. Nessa matéria, tinha conhecimentos empíricos, uma vez que já atuara como técnico de futebol, condição em que socorrera muito craque com a canela ou o dedão atingidos pelo chute ou pisada do adversário.

Lamentava a pouca inteligência dos técnicos brasileiros, explicando como tinha conduzido seus pupilos com severidade e companheirismo, como escalaria os grandes times nacionais, como faria a seleção canarinho voltar aos seus tempos de glória. E, se lhe faltavam títulos, era porque nunca as diretorias lhe davam os atletas de que precisava para armar equipes imbatíveis. “Craque e perna de pau eu conhecia só de olhar o sujeito adentrar o gramado!”

Por fim, resta lamentarmos que ele nunca tenha exercido um cargo público, nem mesmo se candidatado. “Eu nunca quis me envolver com essa gente”, e “essa gente” tinha aí o pior significado possível, cada um que imagine o que ele queria dizer. Mas, fosse ele prefeito, de imediato acabaria com a corrupção (não sei se os corruptos concordariam). Administração austera, ágil, eficiente. Adeus ruas esburacadas, adeus escolas sem merenda, adeus trânsito engarrafado, adeus fila nos hospitais.

Enfim, tendo em vista como andam as coisas no Brasil e no mundo, talvez seja mesmo a hora de entregarmos o poder aos barbeiros e aos motoristas de táxi. Pior do que está, não fica.

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Café da manhã

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Não chego a acreditar que Deus também tenha o costume de fazer seu breakfast

Não chego a acreditar que Deus também tenha o costume de fazer seu breakfast

Levanto-me de manhã e vou para a cozinha. Levantado, mas não acordado. Pois só depois do primeiro gole de café me percebo vivo e consciente de que o mundo existe, além das brumas do sonho e do sono. Sei que tem gente que não gosta de café, existem até religiosos que recomendam que nos afastemos dele. Não sei se é pelo bem da saúde ou se porque essa bebida é, em si mesma, um pecado. Consolo-me pensando que, se esse hábito (ou vício) for nocivo à saúde, não há de ser tão grave que a medicina não possa vencê-lo. Se for nocivo à salvação da alma, confio em que Deus nos perdoará, já que Ele perdoa coisas tão mais graves. 

Não chego a acreditar que Deus também tenha o costume de fazer seu breakfast. Ele nunca dorme e, portanto, não acorda com vontade de tomar café. Mas não acho que Deus se aborreça comigo se, de manhã, logo depois de pensar n´Ele, penso na água quente inundando o coador, cobrindo o pó e espalhando pela casa o cheiro que entra por todos os sentidos, aquecendo o corpo e despertando a mente. Se o Criador deixou a rubiaceae no mundo, é porque bem sabia o que estava fazendo.

Sim, a vida tem muita preocupação e muita chatice. Às vezes, muito sofrimento. Com razão se diz que não há felicidade, só momentos felizes. Sendo assim, é de grande sabedoria guardar os bons momentos, esticá-los ao máximo e, no mesmo movimento, chutar a dor para longe, para o baú das coisas vividas, perdidas e esquecidas. Verdade que às vezes somos tentados a dar razão a Millôr Fernandes, quando diz que o homem é o único animal que não deu certo, ou a Sartre (“O inferno são os outros”), ou a Vinicius de Moraes, falando sobre as crianças que perturbam seu sossego (“Eu chego a achar Herodes natural”).

 Atrevemo-nos a assistir ao noticiário e a tela da TV se transforma num mundo de horrores coloridos. Na África, a camisa grudada na costela das crianças mais parece pano velho esticado na cerca. Mundo afora, o horror de ataques terroristas e guerras que matam indiscriminadamente, bombardeando até mesmo escolas e hospitais infantis. E, no Brasil, o paradoxo de milhões passando fome na terra da fartura. É preciso estar muito alienado para ser completamente feliz num mundo assim enlouquecido.

Mas tem o café da manhã, e tantas outras coisas que fazem a vida valer a pena, ou, na pior das hipóteses, ser navegada com leveza. Como diz Paulinho da Viola: “Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar”. Tem a família, filhos e netos; uma pessoa especialmente amada e que nos ama. Os amigos, um dia de sol e céu azul, de preferência na praia; uma taça de vinho nas noites frias; um bom filme antes de dormir ou para dormir durante. Ah, e tem os livros, companheiros sempre disponíveis, sempre solidários, sempre a nos ensinar tudo, como quem não quer ensinar nada.

A vida é bela? Às vezes. Às vezes é muito feia. Pelo sim, pelo não, o melhor é desafiá-la todas as manhãs, usando como arma uma boa e fumegante xícara de café.

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Prova de coragem

quarta-feira, 04 de setembro de 2024

Infelizmente, no futebol não existe meio gol, portanto, não havia conciliação possível

Infelizmente, no futebol não existe meio gol, portanto, não havia conciliação possível

Os meninos jogavam bola. “Na trave!” “Que trave? Não tem trave nenhuma, passou por cima de sua cabeça. Foi gol!” Embolam-se os treze junto à trave imaginária (uma das equipes, por ser mais fraquinha, apresenta-se com sete atletas). O menorzinho deles estende o braço para o céu e declara solenemente que a bola passou na altura de sua mão: portanto, foi gol. Mas o goleiro adversário demonstra sua discordância dando um empurrão no pixote. Eis que no mesmo time atuava também o irmão do pixote, dois anos mais velho e bem mais parrudo. Voou para cima do gool-keeper. O qual, a bem da verdade, não se intimidou: “Vem, pode vir! Vem, se tu é homem!”

Nesse momento crucial do conflito, um dos jogadores, com ares de capitão, enfia dois dedos na boca e dá uma apitada tão estridente que até a pouca grama do campo se arrepia. O susto foi suficiente para imobilizar os contendores. Uma menina que até então olhava a pelada com o ar de quem nunca viu coisa tão boba em toda sua longa vida de dez anos se aproveita desse segundo para, como dizem os locutores esportivos, adentrar o gramado.

A presença feminina serenou os ânimos, como sói acontecer. Eis que o dono da bola era o irmão dela, pelo que a invasora se atreveu a dar um bico na redonda que, já cansada de ser chutada em todas as direções e sem direção nenhuma, veio cair a meus pés. Era visível o alívio da pelota por fugir daquela confusão e visível era sua esperança de que eu ao menos não a chutasse de volta para a zona conflagrada.

De simples e anônimo observador, vi-me de repente envolvido no conflito. Os dois capitães vieram à frente dos seus comandados e pediram uníssonos a minha opinião. Opinião, já se vê, com peso de uma sentença. Pois fiquem sabendo do que eu mesmo só vim a saber mais tarde: o time perdedor pagaria o sorvete do vencedor. Era uma decisão de alta responsabilidade. A vocês confessarei, agora que o fato é passado, que desde o começo tinha opinião a respeito. Para mim, que justamente naquele momento havia desviado os olhos da revista que folheava, o gol era legítimo.

A regra é clara, já nos ensina um famoso comentarista. Não havia impedimento, aliás não havia juiz, nem bandeirinha. Verdade que o goleador tinha levado uma rasteira ao mirar a meta adversária, mas tendo se levantado a tempo de dar prosseguimento à jogada, aplicava-se no caso a lei da vantagem. E, último e decisivo argumento, a bola tinha passado um palminho acima da cabeça do goleiro. Frango dos grandes, talvez pelo justificado medo do tiro que vinha em sua direção.

O difícil era dar uma decisão tendo em volta treze garotos gritando e mais a menina que me encarava com aquele olhar com que as mulheres sabem intimidar um homem, ainda que este tenha idade para ser seu avô. Tremi nas bases. O que você faria? Segundo Voltaire, “A coragem não é uma virtude, mas uma qualidade comum aos celerados e aos grandes homens”. Não sendo nem uma coisa nem outra, achei prudente ganhar tempo, em busca de uma solução conciliatória. Infelizmente, no futebol não existe meio gol, portanto, não havia conciliação possível.

De repente, o som de uma campainha soa ao longe e uma funcionária se aproxima do gramado e sentencia; “Terminou o recreio! Todo mundo pra sala!” Tive esperança de que o grupo se desfizesse, mas ninguém arredava pé. Urgia dar uma decisão. Juntei toda a coragem que não tinha, calculei mentalmente onde era o centro do campo e, apontando para ele, imitei um antigo comentarista de arbitragem: “Gol legaaaaaaaal!”

E saí depressinha!

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Para quem quer vida mansa

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Você fica dispensado de querer salvar a alma

Você fica dispensado de querer salvar a alma

Você pode não gostar de viver no Brasil, e não sou eu que vou dizer que você não tem motivos. Eu, se dependesse de mim, trocava “Ordem e Progresso” da nossa bandeira por “Justiça e Paz”, que são condições necessárias para que a ordem e o progresso se tornem realidade. Mas aqui estamos, vamos fazendo o que é possível para não piorar a situação. Até porque, se o Brasil não é o melhor lugar do mundo, também não é o pior. Por exemplo: basta você passar um dia na Coreia do Norte para ficar morrendo de saudades do nosso país (se não morrer antes por outro motivo). Vou dar aqui alguns exemplos da vida mansa que você poderá levar naquele país asiático.

O atual mandatário é um baixinho barrigudo, que atende pelo nome de Kim-Jong-Un. Respeitá-lo é muito pouco, é preciso adorá-lo. Questão de vida ou morte. Se você cochilar durante o discurso dele, vai ofendê-lo gravemente e o mais provável é que você seja condenado a passar uma boa temporada num campo de concentração. Trabalhando, que lá não tem esse negócio de ficar no triplex com tornezeleira eletrônica. Tem mais é que quebrar pedra com marreta.

Essa adoração se estende, ainda que em menor grau, aos demais poderosos do país. Acima de todos está Kim-Il-Sun, pai de Kim-Jong-Un (Kim significa “querido”, é título exclusivo da família do ditador e deve sempre anteceder o nome do amado líder). O velho Kim faleceu em 8 de junho de 1994. Pra quê?! Esse dia passou a ser dia nacional de luto. E aí, nessa data, é proibido rir, dançar, tomar uma cachacinha ou mesmo falar alto. A menos que você ache divertido encarar pelotão de fuzilamento.

E se você, econômica leitora, vive torrando dinheiro em lojas e salões de beleza, inventando um corte de cabelo a cada mês, talvez não se dê bem com a moda norte-coreana. Lá existe uma lista dos cortes e penteados permitidos. Calça comprida para as mulheres, nem pensar. Biquini? Tá maluca mulher, tá querendo ser fuzilada?! E não tem esse negócio brasileiro de ficar inventando nomes, o que entre nós obriga a vítima a carregar vida afora o peso de chamar-se Childérico, Onestaldo ou Waternilda.

O povo pode ser pobre, mas não preguiçoso. A semana se constitui de seis dias de trabalho e um de folga. A folga consiste em realizar trabalhos “voluntários”, tais como consertar o calçamento das ruas. Essa norma vale também para as mulheres, que, ao invés de ficarem passeando com seus pets, vão carregar paralelepípedos, exercício ótimo para emagrecer e manter a forma física. E, em caso de incêndio, não se meta a besta de salvar seu filho primeiro. A primeira coisa a ser feita é salvar as fotos dos líderes da nação (é uma danação mesmo).

Há várias outras vantagens em se viver na Coreia do Norte. Por exemplo, você não precisa pensar em carreira profissional ou escolher onde morar. O governo decide se você vai ser engenheiro ou pintor de paredes, se vai morar na capital ou nos confins do Judas. Como é proibido ler a Bíblia, você fica dispensado de querer salvar a alma. Adorar, só à família Kim. É Kim no céu (Kim-Il-Sun) e Kim na terra (Kim-Jong-Un).

Também é falta gravíssima (sujeita à prisão ou pena de morte) fazer ligação internacional, ler obras estrangeiras, sonhar (ainda que em sonho) com a Coreia do Sul, acessar a internet, vestir coisa parecida com calça jeans, usar, na prática de esportes, as mesmas regras do mundo democrático, viajar para o exterior, ver filme estrangeiro, e por aí vai. A vantagem é que existem eleições livres. O eleitor pode votar em qualquer um dos candidatos escolhidos pelo governo.

Bem, acho que já deu para se ter uma ideia da maravilha que é a vida em terras norte-coreanas. Só mais um aviso, que pode ser de especial interesse para você, caro leitor: maconha é crime. O último que experimentou morreu gloriosamente, fuzilado na frente de 150 mil pessoas.

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Animizades

quarta-feira, 07 de agosto de 2024

Pessoas que, embora nos conhecendo, gostam de nós

Pessoas que, embora nos conhecendo, gostam de nós

Pior do que encontrar um inimigo é dar de cara com um ex-amigo, porque este traz consigo, além da inimizade, a lembrança da amizade que acabou. Essa foi a ideia que me ocorreu quando, no labirinto das prateleiras do supermercado, esbarrei com uma pessoa com a qual convivi fraternalmente por alguns anos. Não sei se eu errei, se ele errou, ou se foram as circunstâncias que, no passado, ergueram entre nós uma parede tão concreta que, se um de nós escorregar, bate com a cabeça nela e ganha um galo na testa. Para falar a verdade, eu acho que eu estava com a razão e ele, claro, com a desrazão. Mas está na cara (dele) que ele pensa exatamente o contrário.

Em uma de suas palestras, Leandro Karnal conta uma história (ou será anedota?) sobre Voltaire. O famoso filósofo iluminista já estava nos últimos suspiros, partindo desta para a melhor (embora ele não acreditasse em outra vida e menos ainda em outra vida melhor). Um padre, querendo salvar aquela alma rebelde, insistiu com ele: “Abandona o demônio, renega o diabo!” Voltaire, ateu que era, respondeu: “Padre, eu estou pra morrer. Não é hora de fazer inimigos”.

Pois eu devoto a mais radical inimizade àquele “cujo nome não se diz”. Concordo com Riobaldo: “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta”. Afora isso, procuro me dar bem com todo mundo. Outro dia tive o trabalho de contar as pessoas que viram a cara quando dão o azar de passar por mim. Vai ver que são centenas, mas que eu saiba, declaradas, não foram além dos cinco dedos da mão direita. Depois disso, uma dessas pessoas faleceu, infelizmente antes que tivéssemos fumado o cachimbo da paz ou ao menos tomado em paz um cafezinho. As outras quatro estão aí, e eu peço a Deus que lhes dê vida longa, cheia de saúde e sucesso.

Porque a vida não é mais do que um pequeno jardim no fundo do quintal. Não vale a pena desperdiçar esse espaço, que já é pouco, cultivando ervas daninhas. Rancores e antipatias, raivas e animosidades. Ódio, então, nem se fala, que esse não só estraga o jardim inteiro como envenena quem o plantou.  A triste verdade é que somos mesquinhos demais para amar a todos de todo o coração. Mas não custa reservar ao menos um cantinho do jardim para aquelas pessoas que olham para as nuvens quando passam por nós. Ou mesmo para as que lamentam que já tivéssemos chegado na calçada quando o caminhão passou.

Lembremo-nos de Mandela, que, após décadas nas prisões do apartheid, saiu delas não para vingar, mas para pacificar. Lembremo-nos de Ghandi, que pagou com a vida sua teoria e prática de resistência pacífica, mas libertou a Índia do jugo inglês. E não nos esqueçamos de Teresa de Calcutá e Dulce da Bahia.

O que não falta no mundo é gente do mal, agentes do mal. Gente cheia de ódio, preconceito, fanatismo. Melhor deixá-las no fundo baú do esquecimento e lembrar apenas de quantas pessoas boas existem, daquelas que, embora nos conhecendo, gostam de nós.

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Outros hawkings

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Os insetos ─ as formigas e as abelhas em particular ─ apresentam exemplos dramáticos de cooperação social que poderiam facilmente fazer corar de vergonha a Assembleia Geral das Nações Unidas - (António R. Damásio, in O erro de Descartes)

Os insetos ─ as formigas e as abelhas em particular ─ apresentam exemplos dramáticos de cooperação social que poderiam facilmente fazer corar de vergonha a Assembleia Geral das Nações Unidas - (António R. Damásio, in O erro de Descartes)

Vocês sabem que o astrofísico inglês Stephen Hawking é um dos maiores gênios da ciência moderna, tendo criado teorias que mudaram a nossa humilde, porém muito melhorada por ele, compreensão do universo. Hawking foi grande não só pela sua inteligência impressionante, mas também por sua capacidade produtiva, mesmo sofrendo de esclerose lateral amiotrófica. Desde os 21 anos, quando descobriu que a fatalidade o atingira, até a morte, aos 76, não se deixou curvar pela doença, embora ela tivesse curvado e torcido tanto o seu corpo. Vale a pena ver o filme “A teoria de tudo”, que conta a história desse homem extraordinário.

Pois bem, uma das mais preocupantes previsões de Hawking é a de que nosso planeta está com os dias contados. Bastantes dias, é verdade, mas ele foi o primeiro a marcar uma data baseada em cálculos e não em palpites. E concluiu que isso acontecerá se os seres humanos ─ isto é, eu, você e todos os demais ­─ continuarem a tratar a Terra como se fosse uma produtora inesgotável de bens e, ao mesmo tempo, um imenso depósito de lixo.

Hawking acreditava que, do jeito que as coisas vão, o planeta suportará nossa presença por mais 600 anos no máximo. Então, tudo acabará, não haverá mais canto de passarinho, nem sorriso de criança. Se o sol e a lua continuarem pendurados no céu, não será para nosso proveito, pois não sobrará ninguém para sentir calor de um ou admirar o brilho da outra. Quando o último de nós sair, nem mesmo terá que apagar a luz: vai ter que sair correndo, e no escuro. Mas, como de tudo resta um lado bom, também não haverá mais guerra, doença, fome, ou preocupação com o fim do mundo.

Uma saída apontada por Hawking seria a descoberta de um lugarzinho que possa nos abrigar neste vasto universo, mas tenho dúvida de que a mudança de endereço seja suficiente para melhorar a situação. Bem pouco nos preocupamos com o que não está perto de nós, com o que não é imediato, com o que não nos pertence. Sofremos mais com nosso resfriado do que com as mortes na Faixa de Gaza. Se levarmos conosco esse egoísmo, essa cegueira, uns poucos séculos e já teremos destruído esse lar futuro, caso ele venha de fato a ser encontrado.

Não é que eu pretenda viver mais 600 anos. Nem por isso deixo de ficar preocupado com o que acontece enquanto estou por aqui. E, embora seja um dos oito bilhões de habitantes que estão consumindo o planeta, fico triste com queimadas no Pantanal, inundações no Rio Grande do Sul, desmatamento no Cerrado, barragens que se rompem, derretimento das calotas polares, vazamento de óleo no oceano, lixo nos rios. E, pairando acima de tudo, o aquecimento global, que faz o mundo parecer um fumante inveterado, que conscientemente envenena a si mesmo.

Nossa esperança é que surjam outros hawkings e que eles finalmente sejam ouvidos. Não adianta pedir que o mundo pare para a gente sair. No momento não há para onde sair. Talvez daqui a 600 anos.

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A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.

Duas histórias

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Uma alegre: marido brasileiro

Eu estava andando na praia quando passou um rapaz que, conduzindo um carrinho com alto-falante, vendia CDs de piadas. Ouvi o final de uma delas, deduzi o resto, inventei um pouco e conto-a agora para vocês.

Dizem que se realizou nos Estados Unidos um curso para mulheres, cujo objetivo era torná-las livres do jugo masculino e, portanto, capazes de ver o mundo de outra maneira. Na segunda versão do curso, as diplomadas do ano anterior foram chamadas a dar seus depoimentos.

Uma alegre: marido brasileiro

Eu estava andando na praia quando passou um rapaz que, conduzindo um carrinho com alto-falante, vendia CDs de piadas. Ouvi o final de uma delas, deduzi o resto, inventei um pouco e conto-a agora para vocês.

Dizem que se realizou nos Estados Unidos um curso para mulheres, cujo objetivo era torná-las livres do jugo masculino e, portanto, capazes de ver o mundo de outra maneira. Na segunda versão do curso, as diplomadas do ano anterior foram chamadas a dar seus depoimentos.

O apresentador pediu a opinião da representante da França.

─ Então, Madame Balzac, o curso foi útil para a senhora?

─ Muito útil, vocês nem imaginam! Cheguei em casa e disse: “François, a partir de hoje eu não lavo nem mais uma pecinha de roupa”.

─ E qual foi a reação do seu marido?

─ Olha, no primeiro dia eu não vi nada. No segundo, também não. Mas no terceiro dia ele começou a lavar as meias, as cuecas... Hoje ele é dono da maior rede de lavanderias da França.

─ Muito bem, Madame Balzac! Vamos ouvir agora Mrs. Fitzgerald, representante dos Estados Unidos. Qual foi o resultado do curso para a senhora, Mrs. Fitzgerald?

─ Bom demais, vocês nem imaginam! Cheguei em casa e disse “Bob, a partir de hoje eu não cozinho mais, adeus fogão!”

─ E qual foi a reação do seu marido?

─ Olha, no primeiro dia eu não vi nada. No segundo, também não. Mas no terceiro dia ele começou a fritar um ovo, fazer umas panquecas... Hoje ele é dono da maior rede de restaurantes dos Estados Unidos.

─ Muito bem, Mrs. Fitzgerald! Vamos agora ouvir a representante do Brasil, Dona Hermenegilda, vinda lá do interior da Paraíba. Dona Hermê, qual foi o resultado do curso na vida da senhora?

─ Pois veje, seu moço, cheguei em casa e falei “Severino Raimundo, a partir de hoje não lavo mais roupa, não cozinho mais e nem varro quintal”.

─ E qual foi a reação do seu marido, Dona Hermê?

─ Olha, no primeiro dia eu não vi nada. No segundo, também não. Mas no terceiro dia, quando meus olho começaro a desinchar, comecei a ver uns vulto, umas sombra, uns movimentozinho pela casa!

 

Outra triste: O voo do motociclista

A caminho da festa, a moto voava ─ um palmo acima do chão. De repente, o caminhão parou. Ele sentiu que agora a moto estava em pleno ar, e ele junto com ela. Mas o chão do asfalto parecia subir ao seu encontro.

Levantou-se logo e partiu para a festa. Num segundo estava lá, no meio da zoeira. Luzes e som por todo lado, muita gente cantando, pulando, dançando, bebendo. O movimento era grande, e ele não conseguia ver as caras, apenas vultos. Uma bebida estranha foi parar na sua boca, e depois outra e mais outra, em golfadas. No meio da multidão, reconheceu Luana. Nem sabia que ela gostava de festa! Dançou muito com ela, como tantas vezes tinha sonhado fazer.

Às vezes a cabeça parecia ir às nuvens. Ou explodir.  Aos poucos, Luana foi se desintegrando no meio do povo. Estendeu a mão para alcançá-la, mas antes disso homens de rostos borrados o agarraram. Queria desvencilhar-se deles e voltar para casa. A mãe com certeza ainda acordada, rezando para que ele chegasse. Nessas horas, gostava de cantar para ela: “Não sou filho único, não moro em Jaçanã...” Ela guardava o terço, benzia-o e ia dormir.

Agora, no entanto, a casa era um vazio branco. Seguiu a luz que brilhava no fundo do corredor, mas a luz fugia e o corredor não acabava nunca. Cansado, deitou-se no chão. O ar sumia, sugado pelas nuvens. Um barulho estridente crescia à sua volta. Vermelha, a lua girava e piscava, e de repente a palavra AMBUL formou-se no espaço. Sentiu que o levantavam e o deitavam. Alguém passou a mão sobre seu rosto e fechou seus olhos.

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