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Ao rés do chão

quarta-feira, 26 de março de 2025

A Inteligência Artificial será o Deus desses novos tempos

A Inteligência Artificial será o Deus desses novos tempos

Talvez vocês não saibam, mas muitas pessoas acreditam que, sobrevoando este pequeno grão de areia em que vivemos, existe uma versão melhorada de seres humanos. Gente como nós, porém muito mais evoluída em todos os sentidos: espiritual, moral, científico e assim por diante. Embora geograficamente afastados, são nossos parentes próximos, pois descendem como nós de Adão e Eva.  Com o passar dos milênios, no entanto, foram se aperfeiçoando, enquanto nós, que ficamos aqui, ao rés do chão, nos esquecemos que somos seres de luz, e vivemos como sombras daquilo que poderíamos ser.

É o que me conta, com entusiasmo, meu amigo eubiota. Explico: eubiota é o adepto da eubiose, doutrina que (simplificando demais) propõe que levemos uma vida em harmonia com as leis do universo e assim nos tornemos pessoas mais conscientes, mais iluminadas e, portanto, mais felizes. Segundo ele tem me explicado, é nas profundezas do planeta que vivem as comunidades dessa versão melhorada de nós mesmos. Esses seres do interior (no sentido exato da palavra) sobem de vez em quando para verificar como andam as coisas por aqui e, por certo decepcionados, voltam para a profundidade onde moram. Limitam-se, segundo meu informante, a trocar figurinhas com o governo americano, que os recebe secretamente e com eles mantém relações diplomáticas. O que, aliás, explica os discos-voadores.

Provoco-o, dizendo que eles devem ter um sistema de refrigeração de primeiríssima qualidade, porque o calor lá embaixo deve bater nos mil graus. No inverno. Ele reage a isso com tolerância. Afinal, minha incredulidade apenas prova que eu sou mais um ignorante, em meio aos bilhões que desconhecem os ensinamentos eubióticos. Ele me garante que, ao contrário, no coração do planeta também existem praias, florestas, cores e luz.

Ele pode ter razão sobre minha ignorância, mas me consolo pensando que a maioria vive na mesma escuridão que eu. Contudo, não desconheço que, como disse um tal Hamlet, há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia. Ou, como ouvi de um cidadão que censurava seu colega de trabalho: “Tu sabe tudo, mas tem coisa que tu não sabe”.

Não, não sou totalmente incrédulo. Com relação ao mundo material, gosto das coisas que possam ser vistas e tocadas. Quanto ao mais, sou apenas um pouco precavido. Li há alguns dias o livro “Sapiens – uma breve história da humanidade”, em que o historiador israelense Yuval Harahi explica como viemos dando cabeçadas através de milhões de anos, para resultar no que somos e no que construímos, no que deixamos de ser e no que destruímos. Mais do que isso, Harahi olha para a frente e faz previsões espantosas. Uma delas: A inteligência artificial tem evoluído tanto e demonstrado tamanho potencial para continuar evoluindo por conta própria que não é loucura acreditar num futuro em que ela terá criado uma nova espécie de gente (ou seja, lá o que for), que substituirá o atual ser humano. Em outras palavras, a IA criará sua própria “humanidade”, e a que até agora habitou o mundo deixará de existir. A Inteligência Artificial será o Deus desses novos tempos.

Parece conversa de doido, mas o que pensariam os nossos antepassados, digamos, dois mil anos atrás, se alguém lhes dissesse que no futuro: a) máquinas voariam pelo espaço; b) as pessoas poderiam se ver e falar, mesmo estando a milhares de quilômetros umas das outras; c) uma voz nos ensinaria o caminho a seguir quando estivéssemos dentro de um carro; d) tal carro seria capaz de mover-se e guiar-se por si mesmo;  e) um coração velho ou doente poderia ser trocado por outro em melhores condições; f) um foguete levaria terrestres à lua; g) o homem criaria uma forma de inteligência que se tornaria mais inteligente do que o próprio homem; h) um filme brasileiro ganharia o Oscar e i) o mais espantoso de tudo: o Botafogo seria campeão nacional e continental num mesmo ano? 

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Fernanda

quarta-feira, 12 de março de 2025

Essa carência brasileira que Nélson Rodrigues chamou de nosso complexo de vira-lata

Essa carência brasileira que Nélson Rodrigues chamou de nosso complexo de vira-lata

Não tenho acompanhado isso muito de perto, mas parece que sai nos próximos dias o resultado do Oscar. Eu até podia deixar para escrever mais tarde, quando já soubermos quem são os vencedores. Mas não é tanto isso que me importa, embora eu esteja torcendo pelo filme brasileiro e por Fernanda Torres, sabendo a importância e a repercussão desse prêmio. Achei “Ainda estou aqui” um filme tocante, extremamente bem feito, merecedor de quantos prêmios vier a ganhar (já são trinta e oito no exterior). Quanto a Fernanda Torres, parece que foi necessário todo esse sucesso internacional para o Brasil descobrir a grande atriz que tem (e sendo filha de quem é).

Recentemente vi uma declaração da americana Glen Close, que concorreu ao Oscar com a outra Fernanda, a Montenegro. Ambas perderam para uma estrela modesta, que depois ficou mais ou menos esquecida. Glen Close disse não ter se importado em perder, e que ter concorrido já era uma honra. E acrescentou: “O que eu não entendo é como o prêmio não foi dado àquela excelente atriz brasileira”.

Antes de continuar, lembro que Fernanda Torres é também ótima escritora, com dois livros que bem merecem ser lidos: “Fim” e “A glória e seu cortejo de horrores”. Mas o que eu queria mesmo falar é sobre essa carência brasileira que Nélson Rodrigues chamou de nosso complexo de vira-lata. Se a famosa estatueta vier ou não para o Brasil, isso muda a qualidade do filme ou da atriz? Não basta que milhões de brasileiros tenham gostado? Não basta que algo seja bom e significativo para nós, ainda que só para nós? É preciso a chancela dos outros, sobretudo a dos americanos? Temos escritores, músicos, cientistas, professores em vários lugares do mundo, realizando trabalhos notáveis e reconhecidos lá fora, mas que nada significam para nós porque não receberam esta ou aquela premiação estrangeira (ou não ficamos sabendo que receberam).

Desde “Os cangaceiros”, o cinema brasileiro vem acumulando dezenas e dezenas de troféus internacionais. “Orfeu Negro”, 99% brasileiro, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, mas concorreu como francês, porque o produtor e diretor eram franceses. De nada adiantou ter nos créditos nomes como Vinícius de Morais, Tom Jobim, Luis Bonfá, Breno Melo, Léa Garcia, Lourdes de Oliveira e tantos outros. José Saramago achava que Jorge Amado era o escritor de língua portuguesa que deveria receber o Nobel de Literatura. Quantos levaram o Prêmio Nobel da Paz, ainda que contribuindo menos para ela do que os indicados e ignorados Zilda Arns e Dom Hélder Câmara?

Outros povos reverenciam seus machados de assis, seus ruis barbosas, seus castros alves, suas cecílias meireles, nós os consideramos de segunda linha. Afinal, não escreveram em inglês ou, pelo menos, em francês, em espanhol que seja. João Ubaldo Ribeiro, para ficar em um só exemplo, recebeu pelo menos oito grandes prêmios, inclusive na Alemanha e na Suíça, sem falar no conceituadíssimo Prêmio Camões. Não mencionarei Guimarães Rosa, basta dizer que um tradutor alemão levou nove anos passando “Grande Sertão – Veredas” para o seu idioma. Recentemente uma influenciadora americana leu “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Saiu gritando que era o melhor livro do mundo e que ia estudar português para ler no original.

Mas nada disso vale nada.  Se não ganharmos o Oscar, continuaremos com nosso complexo de vira-lata e achando nosso cinema um fracasso e nossos atores uns canastrões.

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Não conte para ninguém

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

       Juliano chega em casa e desabafa com a mulher, Isadora.

       ─ Sabe o Pauloca, lá do escritório, um que cuida dos computadores?

       ─ Mais ou menos. Que que tem ele?

       ─ Levou a maior bronca do Dr. Camargo. Imagina que ele se irritou com os computadores e começou a rasgar papel. Você sabe como o Dr. Camargo é. Ficou uma fera e repreendeu o funcionário em público. Mas, olha, não conta isso pra ninguém, que eu não quero confusão com Pauloca, que é meu colega e amigo há mais de dez anos.

       Juliano chega em casa e desabafa com a mulher, Isadora.

       ─ Sabe o Pauloca, lá do escritório, um que cuida dos computadores?

       ─ Mais ou menos. Que que tem ele?

       ─ Levou a maior bronca do Dr. Camargo. Imagina que ele se irritou com os computadores e começou a rasgar papel. Você sabe como o Dr. Camargo é. Ficou uma fera e repreendeu o funcionário em público. Mas, olha, não conta isso pra ninguém, que eu não quero confusão com Pauloca, que é meu colega e amigo há mais de dez anos.

       ─ Claro que não vou contar. Eu mal conheço esse tal Pauloca.

       Na manhã seguinte, Isadora sai da academia com sua amiga Catarina.

       ─ Juliano chegou em casa ontem chateado. Problema lá no escritório. Parece que o Dr. Camargo surpreendeu o técnico em computador, Pauloca, levando uma resma de papel para casa. Acho que foi isso. Falei para ele não esquentar a cabeça com problemas do Pauloca, já bastam os nossos. Mas, olha, não conta isso pra ninguém, que eu não quero que Juliano se aborreça ainda mais com essa história.

       ─ Claro que eu não vou contar. Pra falar a verdade, nunca vi esse Pauloca mais gordo.

       Catarina à tarde está no motel com o namorado, João Vítor. Depois do depois, pergunta se ele conhece a empresa de um tal Dr. Camargo.

       ─ Conheço. Camargo & Camargo. Até estagiei lá.  Será que tão precisando de advogado? Tô procurando emprego.

       ─ Isso eu não sei. O que minha amiga Isadora me contou é que o marido dela soube que anda sumindo coisa lá no escritório. Parece que um tal Pauloca roubou um computador da firma. Roubar computador! Se ainda fosse dinheiro! Mas não conta isso pra ninguém, que Isadora me pediu segredo.

       ─ Eu sou lá de fazer fofoca? Esse negócio de leva-e-traz é coisa de mulher!

       No domingo, João Vítor vai ao shopping com a outra namorada, Maristela, que também é técnica em computador.

       ─ Essa tua profissão, hein! Tem um colega seu roubando firme do patrão. Não me lembro bem o que me falaram, mas parece que um tal Pauloca está desviando dinheiro grosso dos Camargos! Desse jeito, vai acabar dono de metade da firma. Vê se segue o exemplo dele e termina aquela obra lá na tua casa! Mas não conta isso pra ninguém, que eu nem lembro quem me passou essa história.

       ─ Que isso, João Vítor? Eu sou lá alguma fofoqueira? Amanhã nem me lembro de mais nada.

       Dois dias depois, Maristela vai ao shopping com a amiga Anamara.

­─ Me contaram que na Camargo & Camargo um tal Pauloca superfaturou tanto nas obras que a construtora está à beira da falência. Pior que esse cara já era dono de metade da empresa. Tem necessidade?! Agora, faz favor de não contar isso pra ninguém: eles que são brancos que se entendam!

       ─ Querida, eu sou um túmulo. Falou comigo, enterrou o assunto.

        Mal saem do shopping, Anamara telefona para seu primo Adalberto.

       ─ Priminho, você nem sabe o que eu descobri. Soube por uma fonte fidedigna que não demora muito você perde o emprego, porque, do jeito que um colega seu chamado Pauloca tá desviando dinheiro, em pouco tempo a empresa fecha as portas! Só te peço pra não espalhar a notícia, pra não comprometer a minha fonte.

       ─ Que contar, que contar! Vou é fechar a boca mais ainda! Bem que eu nunca confiei nesse Pauloca, futicando os computadores da gente! Só não denuncio porque ele é casado e tem dois filhos. O patrão é que trate de ficar de olho!

       Na manhã do outro dia, enquanto Pauloca mexe em um computador, Adalberto reúne os colegas atrás de uns armários do escritório.

       ─ Gentes, tenho uma coisa pra contar que vocês nem vão acreditar...

..........................

       ─ Deitados na cama, Pauloca desabafa com a mulher, Rosa Maria:

       ─ Não sei o que está acontecendo no escritório. Tá todo mundo me olhando esquisito. Tem colegas que há dias não falam comigo. E, ainda por cima, o Dr. Camargo me mandou ir à sala dele amanhã de manhã. Que será que tá havendo?

        Rosa Maria, mais dormindo que acordada:

       ─ Se preocupa não, amor. Vai ver que vão te dar um aumento de salário.

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Histórias alheias

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Tudo depende de como se conta

Com todo respeito aos autores (que já não podem me contestar), contarei hoje três histórias que não são de minha autoria, como fica declarado desde o título. Eu as conheci lendo algum livro ou revista, ouvindo alguém contar ou juntando pedaços de filmes a que assisti. Talvez esquecendo um pouco, ou inventando outro tanto. Mas, na essência, são assim mesmo.

Tudo depende de como se conta

Com todo respeito aos autores (que já não podem me contestar), contarei hoje três histórias que não são de minha autoria, como fica declarado desde o título. Eu as conheci lendo algum livro ou revista, ouvindo alguém contar ou juntando pedaços de filmes a que assisti. Talvez esquecendo um pouco, ou inventando outro tanto. Mas, na essência, são assim mesmo.

A primeira é do escritor W. Somerset Maughan e serve de epígrafe ao livro “Encontro em Samarra”, de John O´Hara. Vamos a ela. Um rico mercador manda seu empregado à feira. Chegando lá, o homem esbarra em uma mulher. Quando ela se vira, ele reconhece que tem diante de si a Morte em pessoa. Apavorado, volta correndo e pede ao seu patrão que lhe dê um cavalo para que ele possa fugir para Samarra, onde a Morte não o encontrará. E parte em disparada.

O mercador vai então à feira e, encontrando a Indesejada das Gentes, lhe pergunta por que ela havia assustado o pobre criado. Resposta da Morte: “Eu não quis assustá-lo, apenas fiquei surpresa de encontrá-lo aqui, pois tenho um encontro com ele hoje à noite em Samarra”.

Moral da história: dela ninguém escapa.

Segunda história. Uma pesquisadora americana estava investigando sua árvore genealógica quando se deparou com um criminoso entre seus antepassados. No velho oeste, o homem tinha sido ladrão de gado e assaltante de trem. Preso, passou alguns anos na cadeia, mas, quando libertado, voltou ao mundo do crime. Novamente capturado, balançou na forca em praça pública, sob gritos e aplausos da população aliviada.

A pesquisadora, sabendo que um senador era do mesmo ramo da família, mandou perguntar se ele tinha alguma informação sobre aquele parente. Ela teve a prudência de não informá-lo sobre o que já tinha descoberto. O ilustre homem público respondeu que se tratava de alguém que havia se dedicado aos negócios ferroviários e de criação de gado. Mudando de atividade, durante algum tempo estivera trabalhando num órgão do governo. Encerrado aquele período, voltou às atividades anteriores, só as deixando por ocasião de sua morte, aliás assistida por grande número de pessoas, que lotaram o centro da cidade para dele se despedir.

Moral da história: tudo depende de como se conta.

Para terminar. Durante a Guerra Civil americana, foi inaugurado em Getttysburg um cemitério em memória dos mortos na batalha sangrenta e decisiva ali travada contra os Confederados. Encarregado das providências, o governador da Pensilvânia pediu a um advogado famoso que fizesse o discurso. Depois de muita demora, o discurso ficou pronto, e só então, duas semanas antes da data marcada, se lembraram de convidar o Presidente Lincoln.

O discurso do advogado durou duas horas e caiu no merecido esquecimento. Lincoln falou por dois minutos, e suas palavras ficaram para a História. O discurso terminou com a frase célebre e nunca suficientemente repetida: “Que o governo do povo, pelo povo e para o povo jamais desapareça da face da terra”.

Moral da história: não importa o quanto se fala, e sim o quê e como se fala.

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Terríveis perguntas

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Sem ao menos me pedir licença, caíram de tapas em cima de mim

Morávamos há pouco tempo em Olaria ─ eu tinha entre sete e oito anos ─ quando levei uma surra inesquecível. Felizmente, o fato nunca se repetiu, com igual, maior ou menor intensidade. Talvez eu tenha merecido outras vezes, mas como sou prudente até a covardia, sempre evitei as situações de confronto, sobretudo os confrontos físicos, pois desde cedo reconheci que eu não era nenhum Tarzan ou Super-Homem, nem mesmo o modesto Sargento Garcia, célebre adversário do Zorro.

Sem ao menos me pedir licença, caíram de tapas em cima de mim

Morávamos há pouco tempo em Olaria ─ eu tinha entre sete e oito anos ─ quando levei uma surra inesquecível. Felizmente, o fato nunca se repetiu, com igual, maior ou menor intensidade. Talvez eu tenha merecido outras vezes, mas como sou prudente até a covardia, sempre evitei as situações de confronto, sobretudo os confrontos físicos, pois desde cedo reconheci que eu não era nenhum Tarzan ou Super-Homem, nem mesmo o modesto Sargento Garcia, célebre adversário do Zorro.

O bairro era então pequeno e sossegado, de modo que minha mãe me permitiu a aventura de circular sozinho por ali. Lá ia eu desbravando a região, quando surgiram à minha frente três garotos que eu nunca tinha visto antes nem voltei a ver depois. Sem mais nem menos, sem ao menos me pedir licença, caíram de tapas em cima de mim. Voltei para casa chorando, minha santa mãe me colocou numa bacia com água morna e me deu um banho que secou minhas lágrimas.

A pergunta que até hoje me faço é: por que eles me atacaram? Eu nem sequer morava ali há tempo suficiente para dar motivo àquela agressão que, além de gratuita, era covarde, com três batendo e só um apanhando. O que me lembra outro acontecimento, esse da infância de meu filho. Eu estava assistindo a um faroeste na televisão, soldados americanos e índios trocavam tiros e flechadas. Leonardo então me perguntou por que eles estavam brigando. Eis aí uma pergunta que não tem resposta satisfatória: por que eles estão brigando?

É a mesma que se pode fazer quando se assiste ao noticiário ou se lê o jornal atualmente. O mundo é tão grande, tem lugar para todos os bilhões de seres que se movem sobre ele. Então o que justifica que tantos soldados se matem, tantos prédios desabem sob bombas, tantas crianças morram e tantas mães chorem? Alimentos sobram, o que se desperdiça é de uma enormidade assustadora, e nem por isso a fome diminui. Doentes e remédios com data vencida são jogados fora. Li que o planeta enfrenta no momento pelo menos sete guerras, algumas mais conceituadas, como a do Oriente Médio, e outras com menos mídia, na África e em regiões periféricas. Isto é: periféricas em relação aos países ricos e poderosos.

Ninguém ignora as razões históricas desses conflitos. Na Palestina eles remontam aos tempos bíblicos. Mas muitos países que hoje posam de civilizados deram um passeio pelo mundo, arrasaram povos, terras e riquezas por onde passaram e agora se espantam com o refluxo da história, na forma de milhões de imigrantes famintos e desesperados. A lei do eterno retorno não costuma falhar.

Por que as pessoas ignoram o sofrimento alheio, se agridem e se matam? Sim, por que eles estão lutando? Quando soubermos a resposta para essas terríveis perguntas, teremos enfim encontrado a paz, sonho que se comemora a cada primeiro de janeiro, Dia Mundial da Paz, data em que, hoje, no sossego de minha casa, escrevo esta humilde crônica.

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Imitando Tereza

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Quem é que nunca viveu a emoção de ver o mundo se transfigurar com a passagem da pessoa amada?

Quem é que nunca viveu a emoção de ver o mundo se transfigurar com a passagem da pessoa amada?

Em dezembro do ano passado, a excelente escritora e minha querida amiga Tereza Malcher publicou uma crônica em que comentava letras de músicas de sua preferência.  Isso me deu a ideia de fazer o mesmo. Afinal, não é pecado imitar quem sabe o que faz. Não tenho a pretensão de citar as canções mais lindas da MPB, mas apenas de registrar alguns versos de que gosto e que agora me vieram à mente. Certamente cada leitor faria suas próprias escolhas, e eu mesmo, se fizer outra lista amanhã, me lembrarei de coisas diferentes. Além do mais, tem a velha discussão sobre letra de música ser ou não poesia. Dizem os entendidos... bem... talvez... quem sabe... pode ser. Ou não.

Os teóricos ensinam que a letra é feita em função da melodia e nela se ampara para alcançar a atenção e a sensibilidade do ouvinte. São almas gêmeas, feitas para bailarem eternamente juntas. Às vezes, não somos capazes nem de assobiar um pedacinho da música, mas não conseguimos tirar os versos da cabeça. O contrário também acontece: as palavras ficam sepultadas sob a pesada pedra do esquecimento e os sons nos perseguem como um papagaio tagarela. Só quando de mãos dadas existem plenamente. As canções, quando lidas, normalmente se tornam prosa, e prosa sem graça.

Já a poesia se fundamenta na palavra, é a palavra que faz a melodia e, para sentir e entender um verdadeiro poema, é preciso agir como recomendou Carlos Drummond de Andrade: “Penetra surdamente no reino das palavras”. São elas que, flanando pelo cérebro, lidas baixinho ou exclamadas em voz alta, concentram a carga poética que existiu antes no autor e existe agora no leitor atento.

O que não significa que de quando em quando as coisas não se confundam. Boa parte das composições de Chico Buarque rompe essa barreira. Há letras que podem ser lidas, há poesias que podem ser cantadas. Mas, caramba!, já cheguei  ao meio da página com minhas rasas teorias e ainda não dei um exemplo. Vamos a eles, então.

“Minha rua é sem graça/ Mas quando por ela passa/ Seu vulto que me seduz/ a ruazinha modesta/ É uma paisagem de festa/ É uma cascata de luz” (A deusa da minha rua. Newton Teixeira e Jorge Faraj). Pode não ser a obra mais original da MPB, mas quem é que nunca viveu a emoção de ver o mundo se transfigurar com a passagem da pessoa amada? Ai de quem nunca!

“A saudade é o revés do parto/ A saudade é arrumar o quarto/do filho que já morreu”./ “A saudade dói como um barco/ Que aos poucos descreve um arco/ E evita atracar no cais”. “A saudade dói latejada/ É assim como uma fisgada/ No membro que já perdi. (Pedaços de mim. Chico Buarque). Toda a letra é uma sequência de metáforas e comparações originais, cada uma mais tocante do que a outra.

“Dorme o Sol à flor do Chico, meio-dia/ Tudo esbarra embriagado de seu lume/ Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia/ Só vigia um ponto negro: meu ciúme”./ “O ciúme lançou sua flecha preta/ E se viu ferido justo na garganta./ Tanta gente canta, tanta gente cala/ Tantas almas esticadas no curtume./ Sobre toda a estrada, sobre toda a sala/ Paira, monstruosa, a sombra do ciúme”. (O ciúme. Caetano Veloso). Dizem (talvez seja invencionice) que Caetano, viajando, parou às margens do São Francisco, onde lhe falaram de um homicídio ali cometido por alguém desvairado de ciúme. Verdade ou mentira, resultou nessa beleza de canção.

“Manhã, tão bonita manhã/ Na vida uma nova canção/ Cantando sou teus olhos/ Teu riso, tuas mãos/ Pois há de haver um dia/ Em que virás/ Das cordas do meu violão/ Que só teu amor procurou/ Vem uma voz, fala dos beijos/ Perdidos nos lábios teus”. (Manhã de Carnaval. Luís Bonfá e Antônio Maria). O maior sucesso dentre os vários sucessos do filme “Orfeu Negro”, gravada e cantada em muitos países, sobretudo nos Estados Unidos. É um clássico da Bossa Nova, e não é preciso dizer mais nada.

E você, qual seria a sua seleção?

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Um homem bonito

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Nascido em 1995 e falecido em 2024, com 100 anos de idade

Sammy Basso morreu e, para falar a verdade, foi justamente por causa de sua morte que eu fiquei sabendo que ele tinha existido. É estranho como, sendo a coisa mais previsível da vida, a morte sempre nos pega de surpresa. Ou quase sempre. Basso é uma das raras exceções. Já nasceu com prazo bem limitado de validade: treze anos. Viveu 28 e, apesar de tudo, viveu feliz e assim o declarou numa carta que deixou para ser lida no seu funeral.

Nascido em 1995 e falecido em 2024, com 100 anos de idade

Sammy Basso morreu e, para falar a verdade, foi justamente por causa de sua morte que eu fiquei sabendo que ele tinha existido. É estranho como, sendo a coisa mais previsível da vida, a morte sempre nos pega de surpresa. Ou quase sempre. Basso é uma das raras exceções. Já nasceu com prazo bem limitado de validade: treze anos. Viveu 28 e, apesar de tudo, viveu feliz e assim o declarou numa carta que deixou para ser lida no seu funeral.

O Basso era portador de uma doença cujo nome é por si mesmo de meter medo: progéria. O corpo humano não foi feito para durar muito. As peças vão falhando à medida que funcionam, até que um dia dizem “chega” e vão descansar da humana lida. E a tal progéria faz com que o corpo envelheça ainda mais aceleradamente. É como se um carro fabricado para andar a 100 quilômetros disparasse a mil, dois mil por hora.

Foi o que aconteceu com esse italiano nascido em 1995 e falecido em 2024, com cem anos de idade. Era especialmente feio e, sem querer ser cruel, ao ver sua foto imediatamente me lembrei do ET do filme de Spielberg. Basso era ainda mais estranho. Careca, orelhudo e narigudo, tinha o pescoço comprido e fino. Usava óculos e seu sorriso mostrava dentes maiores que a boca.

Nisso está a grandeza desse homem tão jovem e ao mesmo tempo tão consumido pelo tempo. Ele sorria! E, na carta de despedida, escreveu: “Quero que saibam, antes de mais nada, que vivi a minha vida feliz”. Além dessa frase, muitas outras revelam um ser humano tranquilo, generoso, que soube conviver com a adversidade. Da doença, ele disse que tinha sido “apenas uma parte muito pequena” de sua vida, embora admitisse que ela tinha influenciado o seu cotidiano e as suas escolhas. Um trecho desse comovente adeus merece ser transcrito: “Certamente muitos dirão que perdi a minha batalha contra a doença. Não ouçam! Nunca houve uma batalha a travar, havia apenas uma vida a abraçar tal como era, com as suas dificuldades, mas ainda assim maravilhosa, ainda assim fantástica, nem recompensa nem condenação, simplesmente uma dádiva que me foi dada por Deus"

Especialmente nestes tempos em que estamos vivendo, a beleza física parece ser para muita gente a mais alta preocupação, a maior das prioridades, o mais definitivo sentido da existência. Mais facilidade encontra um safado bonito do que um honrado feio. Mas a mosca que pousa no caixão não se importa se quem está ali deitado é feio ou bonito, e a terra ou o fogo a ambos consomem com igual indiferença.

Aos que iriam dele se despedir, Basso deixou estas palavras: “Quero estar convosco neste momento e dizer-vos que é normal. Para aqueles que vão chorar, saibam que é normal estar triste. Para os que querem festejar, saibam que é normal festejar. Chorem e festejem, façam-no em minha honra".

Em sua feiura, quantas lições de vida nos deixou este homem tão bonito. 

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A namorada de Elon Musk

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Além do mais, ciúmes inúteis, pois como é que eles iriam concorrer com O Rei?

Além do mais, ciúmes inúteis, pois como é que eles iriam concorrer com O Rei?

Prezada e mui bem informada leitora. Quanto você pagaria para namorar o bilionário Elon Musk? Você sabe que ele é dono da fábrica de automóveis Tesla, da rede social X e da agência espacial SpaceX. Quer dizer, não é com dez mil réis que você vai conquistar o coração ou o bolso do homem mais rico do mundo. No entanto, uma crédula senhora do Paraná, de 79 anos, investiu cerca de quatro mil reais na ilusão de que estava de amores com esse jovem senhor, que já namorou várias mulheres belas e famosas e até se casou com duas ou três delas. Suponho que no momento ele esteja disponível, o que certamente animou a também disponível paranaense.

Vejamos o que disse a imprensa. Tendo recebido uma ligação da Nigéria, mas acreditando que Elon Musk (que para isso até aprendeu português) ligava de Nova York para falar com ela, a boa mulher engatou com ele um promissor namoro on-line. Musk, estando no momento sem dinheiro para comprar cartões da Apple, pediu à nova namorada que os adquirisse e os enviasse para ele. Em troca, viria brevemente ao Brasil e a reembolsaria, provavelmente aproveitando a ocasião para juntar os trapinhos com ela. Nisso a romântica senhora foi investindo seu dinheirinho, até que o gerente da loja achou que era cartão demais para uma só pessoa. Questionada, ela declarou que os comprava para Elon Musk, com quem estava tendo um caso a distância, mas nem por isso menos real. O lojista achou por bem chamar a polícia. Fim do romance.

No Brasil muitos espectadores respondem ao “boa noite” dos apresentadores do Jornal Nacional quando o programa termina. E já se sabe que não são poucas as mulheres que acreditam que é para elas que Roberto Carlos joga beijos e rosas. Não falam isso com o marido, para que eles não fiquem com ciúmes. Além do mais, ciúmes inúteis, pois como é que eles iriam concorrer com O Rei?

A senhora conhece a palavra “bovarismo”? No livro de Flaubert, Emma Bovary (tal qual Luísa, de “O Primo Basilio”) acredita ter despertado a paixão de um jovem cortejador. Vendo a si mesma como a mulher que não era, iludiu-se até a tragédia final. Para saber mais, leia o livro, se é que ainda não o fez, e se o fez, faça de novo, porque vale a pena. Então, bovarismo é distúrbio psicológico em que a pessoa tem uma imagem irreal, distorcida de si mesma. Graças (ou por desgraça) a isso, julga-se alguém mais importante do que é, vê-se atraente e admirada.  Baixa autoestima, desencanto com a vida e tédio no dia a dia são as causas mais comuns do bovarismo.

Não sei se é esse o caso da nossa compatriota. Mas não a critico, e até tenho um pouco de pena. Todos nós vivemos mais ou menos iludidos sobre quem somos, sobre o que somos. Frequentemente lembramos aquela mãe que, ao ver que o passo de seu filho está diferente do resto do batalhão, se pergunta por que todos os demais soldados estão marchando errado.

Se, apesar da infeliz experiência da nossa amiga sulista, a senhora quiser namorar Elon Musk, entre em contato com ele pela internet. Pode ser que ele ainda esteja precisando de cartões da Apple.

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Grandes dúvidas

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver

            O governo me convoca para que eu prove ainda estar vivo, coisa de que de vez em quando até eu duvido. Sim, porque assisti a um filme em que os mortos custavam a se dar conta da nova realidade, e achavam que fantasmas eram os outros, isso é, os vivos de verdade. Nunca se pode ter certeza de nada. Já dizia Bertold Brecht que “de todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”.

Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver

            O governo me convoca para que eu prove ainda estar vivo, coisa de que de vez em quando até eu duvido. Sim, porque assisti a um filme em que os mortos custavam a se dar conta da nova realidade, e achavam que fantasmas eram os outros, isso é, os vivos de verdade. Nunca se pode ter certeza de nada. Já dizia Bertold Brecht que “de todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida”.

            Por exemplo. No Japão o número de pessoas centenárias é uma coisa verdadeiramente japonesa. As mulheres da Terra do Sol Nascente são os seres humanos mais longevos do mundo, batem facilmente nos noventa e nos noventa ainda batem nos filhos, nos netos e no marido, se ele ainda estiver vivo e se meter a besta.

             Até algum tempo, quando alguém fazia cem anos, o governo lhe mandava uma taça de prata maior que uma jarra. Mas de repente disparou a crescer o número de velhinhos que se recusava a morrer antes de completar um século. A continuar assim, nem a poderosa economia nipônica aguentava.  Resultado: atualmente o governo oferece uma tacinha do tamanho de um dedal, e olhe lá!

            Pois bem, bateu a dúvida. Era ancião demais, não havia prata que desse. Os gastos com as ricas pensões era uma enormidade. As autoridades resolveram então investigar a história. Numa das casas visitadas, os fiscais encontraram uma múmia deitadinha, coberta por um lençol. Apertados pela polícia, os herdeiros da múmia, que todo mês embolsavam o dinheiro da pensão, alegaram que não sabiam que o digno parente já havia morrido. “Ele sempre foi assim quietinho”, alegaram com a cara mais sincera e sentida.

            Quanto a mim, considero legítima a preocupação do governo em saber se ainda existo, e tanto que fui lá para ser vivamente fichado e fotografado. Convencido de que ainda não sou uma múmia, o Poder julgou-me ainda merecedor dos trocadinhos que mensalmente deposita em minha conta. Se bem que, com o valor das aposentadorias pagas no Brasil, nem múmia japonesa conseguiria viver, só mesmo ficando quietinha embaixo dos lençóis. Tendo provado que eu era eu e ainda respirava, voltei para a rua me sentindo alegre e orgulhoso. Orgulhoso por ter cumprido o dever cívico, alegre porque ─ conspiração da natureza ─ tudo em volta estava cheio de luz e cor.

            De repente, a chateação de atender a uma chamada burocrática havia se convertido na agradável sensação de estar vivo, em paz com tudo e todos, aí incluindo o governo e seus agentes. Longa é a arte, curta é a vida, já dizia nosso amigo Sêneca. Aliás, esse tal de Sêneca foi professor e conselheiro de Nero, aquele de Roma. Ainda hoje resta dúvida sobre qual a responsabilidade de Sêneca nas malvadezas de seu discípulo. Talvez muita, mas não se pode esquecer que o outro conselheiro de Nero chamava-se Burro ou, por extenso, Sexto Afrânio Burro. Um nome desses explica muita coisa.

            E lá fui eu, não menos burro, porém mais satisfeito, porque, feitas as contas, resulta que viver é uma experiência boa, e a gente às vezes a desperdiça com pequenos rancores, velhos preconceitos, tolas fantasias. Não vale a pena gastar a curta vida com essas miudezas. Alegremo-nos por estar vivos. Porque dia chegará em que o governo mandará perguntar por nós, e ficará sabendo que há muito nos tornamos uma múmia, coberta por um curto lençol de terra.

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A garota e o ipê

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Algumas caveiras já nascem maravilhosamente bem vestidas

Algumas caveiras já nascem maravilhosamente bem vestidas

Não tem jeito. A própria Heloisa Pinheiro, que não envelhece nunca na canção de Vinícius e Tom, completou 81 primaveras, como se dizia antigamente, e mais os verões, invernos e outonos correspondentes. Conservadíssima, está tão feliz com a nova idade que comemorou duas vezes o aniversário: em julho e em agosto. Que o tempo, esse implacável inimigo do corpo humano, lhe permita assim permanecer por longos anos, ela, que permanecerá eternamente jovem, para sempre a Garota de Ipanema, a “coisa mais linda, mais cheia de graça”. O Pe. António Vieira disse que a beleza nada mais é do que uma caveira bem vestida. Mas algumas caveiras já nascem maravilhosamente bem vestidas, e esse é o caso de Helô Pinheiro.

Teve razão o Poetinha quando a viu passar “num doce balanço a caminho do mar” e quando concluiu que a beleza é fundamental. Com certeza, e não só a beleza feminina, desde sempre e em todo lugar exaltada em prosa e verso. Mas também a que tantas vezes está ao nosso redor, sem que nela reparemos. Uma conhecida me disse que havia fotografado um ipê na minha rua. Eu já tinha reparado naquele amarelo exagerado, mas, ao retornar para casa, me detive um instante para contemplar o presente que a natureza colocara à disposição de meus olhos, de graça e sem que eu fizesse nada para merecer.

O sucesso de “Garota de Ipanema” se deve com certeza à qualidade da letra e da melodia, mas se deve também à sua inspiração original: a própria beleza. Em vozes que vão de Pery Ribeiro (primeiro a gravá-la) a Frank Sinatra, “Garota de Ipanema” chegou a ser a música mais executada ao redor no mundo, depois de “Yesterday”. Houve um tempo em que se dizia que ela nunca parava de tocar, porque, quando calava em algum lugar do planeta, já começava a se fazer ouvir em outro. Silenciava no Japão e no mesmo instante começava na Islândia. Em 1965 ganhou o Grammy, superando sucessos como “I want to hold your hand”, dos Beatles, e “Hello, Dolly”, com Louis Armstrong. Aliás, certa vez disseram a Tom Jobim que só os Beatles eram mais tocados do que ele, ao que o “maestro soberano”, como o chamou Chico Buarque, respondeu que “sim, mas eles eram quatro!”

Os dicionários ensinam que a beleza é a característica do que apresenta perfeição de formas; o ser ou a coisa que desperta sentimento de êxtase, admiração ou prazer através dos sentidos. Por isso mesmo ilumina os olhos e alegra o coração. A expressão “está cansando a minha beleza” não tem sentido, porque o belo nunca se cansa e nunca nos cansa. Ao contrário, é preciso que ele nos cerque, para que haja leveza num mundo com as guerras, as injustiças, as pequenas e grandes dores que podem tornar a nossa passagem pela existência uma coisa feia e pesada. Como na definição de Shakespeare/Macbeth: “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum”.

Da garota de Ipanema ao ipê da minha rua, a beleza existe e está aí, ao nosso redor, para nossa contemplação. Quem tem olhos de ver, que veja.

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