Blog de roberiocanto_18846

A felicidade no mundo

quarta-feira, 07 de setembro de 2022

Somos um povo que ri quando devia chorar

Somos um povo que ri quando devia chorar

A ONU publicou recentemente seu relatório anual sobre o nível de felicidade em cada país do mundo. O Japão, por exemplo, está em 55º lugar, o que não é grande coisa para um povo tão rico e estável. Talvez não seja mais feliz por falta de espaço e excesso de trabalho. Recentemente um japonês apertou os olhos um pouquinho mais e inventou o que ele aponta como um eficiente paliativo para os dois problemas. Como todo brasileiro sabe e abomina, lá os empregados chegam a trabalhar até oitenta horas extras por mês, geralmente sem receber um iene por isso. Não é sem razão, pois, que com frequência se trancam no banheiro, não para fazer no banheiro o que no banheiro se faz no resto do mundo, e sim para tirar um cochilo.

Foi possivelmente durante uma dessas sonecas que, enquanto o imperador também cochilava, seu engenhoso súdito sonhou construir um jeito de descansar que, não sendo tão bom quanto a cama, fosse melhor do que o vaso sanitário. Bolou uma caixa semelhante a um caixão que, colocada verticalmente num canto qualquer do local de trabalho, pudesse acomodar os sonolentos. A engenhoca possui apoio para a cabeça, as costas e os pés, de modo que, garante o inventor, mesmo sem estar deitado, nela se pode dormir com bastante conforto.

Na pesquisa da ONU, os países mais felizes são os de sempre, que estão ali se revezando anos a fio, sobem um pouquinho, descem um pouquinho, mas não largam a taça: Finlândia, Dinamarca e Suíça foram novamente os primeiros a subir ao pódio. Não faltam, no entanto, surpresas.  Por exemplo: Israel ocupar a nona posição, apesar de se dar tão mal com os vizinhos palestinos. Estes, tão próximos e tão distantes dos israelenses, despencam diretamente para o 122º. lugar. E os Estados Unidos, que para muitos brasileiros parecem ser o céu ao alcance da mão, ficam num modesto 16º lugar. Basta, no entanto, dar um passo abaixo na fronteira para cair no México, e a situação piorar subitamente: 46º colocado.

Não dá para esquecer a Ucrânia e a Rússia. Nenhuma das duas jamais figurou entre os nossos principais sonhos de viagem e de fato estão, respectivamente, na 96ª e 80ª colocação. Agora, então, que viraram pesadelo é provável que apareçam ainda mais mal colocadas na próxima pesquisa. No fim da fila, na lanterna do campeonato, estão os três lugares onde as pessoas têm menos motivos para achar que a vida vale a pena: Zimbábue, Líbano e por fim o Afeganistão, habitat do povo mais infeliz do planeta.

E o Brasil? Bem, somos o número 38 do ranking. Entre os sul-americanos, perdemos para o Uruguai, que está oito pontos à nossa frente. Enfim, não gargalhamos tanto quanto na Suécia (7º), mas somos bem mais risonhos do que nossos vizinhos argentinos (57º), ou mesmo do que Portugal (56º). Entre duas e três mil pessoas foram ouvidas em cada um dos 146 países pesquisados. Os analistas ressaltaram que, em todos eles, dois fatores contribuem para tornar o povo mais ou menos de bem com a vida: o apoio que contam conseguir da sociedade em caso de necessidade, e a visão que têm da honestidade de seus governantes.

Os brasileiros talvez nem precisem de motivos para se sentirem felizes; porque, segundo dizia o antigo radialista Alziro Zarur, somos um povo que ri quando devia chorar. Rimos de nossas próprias desgraças e fazemos piadas de nossas próprias tristezas, que é o nosso jeito de ir sobrevivendo, ou pelo menos de nos irmos enganando.

Mas parece que, nos dois pontos destacados pelos pesquisadores, mal nos aguentamos em cima das pernas. São desumanas entre nós as diferenças econômicas e sociais; pessoas que ocupam o mesmo espaço urbano são estranhas, às vezes inimigas. E a constatação de que, quanto mais altos os escalões do poder, maiores são os recursos destinados às mordomias, luxos, vantagens e benefícios de quem já os possui em excesso, enquanto outra parte da população é tratada como um povo estrangeiro, com o qual nada se tem a ver e ao qual nada se deve.

Que esperar dos resultados da pesquisa que sairá em 2023? Não vamos sonhar em chegar perto dos líderes do campeonato mundial de felicidade, mas talvez nos afastemos um pouco mais do grupo da lanterna. Como dizem os árabes, “in shaa Allah”, oxalá, se Deus quiser!

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Papo de fila

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

─ Essa é a fila do auxílio emergencial?

─ Não, essa aqui é da vacina.  A do emergencial foi ontem.

─ Tá bom. Vou ficar assim mesmo. Vacina é besteira, mas eu tava passando, vou aproveitar a fila. Será que demora muito?

─ Sei lá! Chegou agora e já tá querendo ser atendido! Deve ter umas duzentas pessoas na frente.

─ É, esse povo adora uma agulhada.

─ Essa é a fila do auxílio emergencial?

─ Não, essa aqui é da vacina.  A do emergencial foi ontem.

─ Tá bom. Vou ficar assim mesmo. Vacina é besteira, mas eu tava passando, vou aproveitar a fila. Será que demora muito?

─ Sei lá! Chegou agora e já tá querendo ser atendido! Deve ter umas duzentas pessoas na frente.

─ É, esse povo adora uma agulhada.

─ Gosta mesmo é de fila. Eu por mim acho melhor uma boa fila do que ficar em casa sem nada pra fazer. Pra falar a verdade, não tem nem comida pra fazer. Na fila a gente cansa, mas pelo menos tem com quem conversar.

─ Se é! Outro dia entrei numa fila, fiquei hora e meia, quando cheguei lá, só tinha um muro na frente.

─ Ninguém te avisou, não?

─ Tava cada um na sua, esperando ganhar qualquer coisa, nem que fosse um pedaço de osso pra sopa. Pobre é assim mesmo, acredita na sorte.

─ Que sorte, mas sorte! Pobre nasceu pra ter azar na vida. E quando pobre tá de azar, já sabe, urubu de baixo defeca no de cima, com licença do palavrão.

─ A senhora tá aqui há muito tempo?

─ Cheguei às cinco. Me disseram que ontem à noite já tinha gente esperando. Acredita que teve um que dormiu abraçado na grade do portão?!

─ Pra tomar vacina?

─ Nada! A gente entra na fila, depois vê pra que que é... Hoje é vacina...

─ Contra quê?

─ Sabe que eu não sei. Deve ser a tal da astrogênica. Uns falam bem, outros falam mal. Vou experimentar. Se eu virar jacaré não vai fazer muita diferença. Quem sabe vou até caçar na lagoa. Só assim vou comer carne.

─ Eu, modéstia à parte, ontem mesmo comi carne.

─ Deixa de contar vantagem homem de Deus! Pela tua cara, tu não vê carne tem muito tempo!

─ Alto lá! Não é por tá pele e osso que tou passando fome!

─ E onde foi que tu comeu carne?

─ Pra falar a verdade, não foi bem carne. Senti um cheirinho de churrasco, fiquei do lado de fora chupando aquele ar. Aí, o pessoal encheu a cara, começaram a jogar osso pelo muro. Mas tinha uns fiapinhos de carne. Uma delícia!

─ Se até duas horas não chegar minha vez, vou-me embora. Amanhã eu volto. As crianças ficaram sozinhas em casa. Quer dizer, tem a Crenilda que toma conta.

─ Ainda bem que a senhora tem uma pessoa pra ajudar...

─ Pessoa coisa nenhuma.  Crenilda é a cachorra vira-lata lá de casa.

─ Bem, acho que eu já vou indo...

─ Mas já? Não vai esperar? Daqui a pouquinho chega a nossa vez!

─ Tem uma fila lá no outro lado da cidade.

─ Fila de quê?

─ Não sei, não. Mas dizem que é uma fila das boas...

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Nome feio

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Algumas dessas localidades batizadas de maneira incomum, às vezes beirando o pornográfico

Tem gente que acha esquisito o nome de certas cidades brasileiras. De fato, Varre-Sai, Não-Me-Toque e outras tantas são...  não digamos que sejam esquisitas, mas originais, e talvez assim os varre-saienses e os não-me-toquenses não se aborreçam conosco se por acaso um dia (nunca se sabe) vierem a pôr os olhos nestas mal traçadas linhas.

Algumas dessas localidades batizadas de maneira incomum, às vezes beirando o pornográfico

Tem gente que acha esquisito o nome de certas cidades brasileiras. De fato, Varre-Sai, Não-Me-Toque e outras tantas são...  não digamos que sejam esquisitas, mas originais, e talvez assim os varre-saienses e os não-me-toquenses não se aborreçam conosco se por acaso um dia (nunca se sabe) vierem a pôr os olhos nestas mal traçadas linhas.

Antes de continuar, convém explicar aos leitores mais jovens o significado da expressão “mal traçadas linhas”. Em priscas eras (outra expressão que precisaria ser explicada, mas fica para outro dia, ou talvez nunca), pois bem, em priscas eras as cartas eram escritas ─ acreditem! ─ à mão e, mais incrível ainda, levadas na mão a uma agência dos Correios, a partir de onde, de mão em mão, acabavam nas mãos do carteiro que as entregava nas mãos do destinatário.

Tem até aquela música que diz assim: “Quando o carteiro chegou/ E o meu nome gritou com a carta na mão/ Ante surpresa tão rude/ nem sei como pude/ chegar ao portão”, e por aí vai. Caso alguém ache esses versos ridículos, lembre-se de Fernando Pessoa: “Todas as cartas de amor são ridículas/Não seriam de amor se não fossem ridículas/ Também escrevi, no meu tempo,/ cartas de amor, como as outras, ridículas”.

Pelo número de vezes que escrevi a palavra mão no segundo parágrafo, dá para perceber como a coisa era complicada e demorada. O sujeito podia mandar uma carta pedindo a mão (outra vez!) de uma jovem em casamento e, quando recebia a resposta, já estava casado ─ com outra, naturalmente. E sempre, por modéstia ou por ser de fato dono de um verdadeiro garrancho, o emitente começava pedindo desculpas pelas “mal traçadas linhas” formadas por sua letra.

Mas voltemos a falar das cidades com nomes esquisitos. Andei, por falta do que fazer, ou mais precisamente por falta de vontade de fazer o que precisava ser feito, dando uma olhada na internet para me divertir com algumas dessas localidades batizadas de maneira incomum, às vezes beirando o pornográfico. É o caso de Pintópolis (MG), ou seja, cidade do pinto, palavra que no Brasil designa várias coisas, entre elas... o pinto.

No Rio Grande do Sul encontramos Entrepelado. Para se dar bem lá, é só o visitante não levar ao pé da letra a placa que o saúda na entrada do município, do contrário, poderá ser preso por atentado ao pudor. Continuando a viagem pelo RS, encontramos a cidade de Sério, onde todo mundo pode se divertir, mas sem perder a compostura. É um lugar onde o bom cidadão, ao botar a cara na janela, evita ficar mostrando os dentes pro vizinho. Quando alguém telefona de lá e o ouvinte duvida, o sujeito garante: “Estou em Sério, sério!” Nem vou falar em Anta Gorda, para os gaúchos não me acusarem de estar de implicância com eles.

Não faltam outros exemplos eloquentes. Por exemplo: Jijoca de Jericoacoara (CE), onde as crianças passam seis meses na escola aprendendo a falar o nome do lugar em que vivem; Virginópolis, onde as mulheres só podem morar até se casarem: depois da lua de mel, têm que ir viver em outro lugar, para não desmerecer o nome da cidade; Barro Duro (PI) ­─ não deve ser mole morar num lugar desses! Tem Rolândia (PR) e Dormentes (PE), entre outras preciosidades. E, como se tudo isso fosse pouco, ainda tem Presidente Kennedy, grande pecado do Espírito Santo!

Mas não é só o Brasil que tem dessas coisas. Nos States, só para ficar no país que os brasileiros tanto admiram (a ponto de batizar uma cidade com o nome de um presidente deles), tem a Misery Bay (Baía da Miséria), a Grumpy Dog Road (Rodovia do Cachorro Mal-humorado), Melancholy Waterhole, (Buraco da Água Melancólica), The End of the World (O Fim do Mundo), Mistake Island (Ilha do Erro) e, para encerrar uma lista que poderia encher mais uma página, Defeated (Fracassado). Mas não tem nenhuma chamada Presidente Kubitscheck.

Enfim, há nomes para todos os gostos e desgostos. Feliz de quem pode dizer que nasceu em Nova Friburgo e não precisa passar pelo constrangimento que deve se abater sobre quem é obrigado a se declarar kennediense!

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É uma fria!

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Já comemorou cinquenta vezes o aniversário de falecimento

Não sei se você sabe o que é criogenia, ou mesmo se está interessado no assunto. Pode ser até que você já tenha feito uma encomenda ou, melhor dizendo, que você já tenha “se encomendado”. Em qualquer dos casos, vou passar algumas informações a respeito que poderão ser úteis, se não a você, talvez a algum outro leitor que sonhe com a imortalidade, não da alma e na eternidade, mas do próprio corpo e aqui na Terra mesmo.

Já comemorou cinquenta vezes o aniversário de falecimento

Não sei se você sabe o que é criogenia, ou mesmo se está interessado no assunto. Pode ser até que você já tenha feito uma encomenda ou, melhor dizendo, que você já tenha “se encomendado”. Em qualquer dos casos, vou passar algumas informações a respeito que poderão ser úteis, se não a você, talvez a algum outro leitor que sonhe com a imortalidade, não da alma e na eternidade, mas do próprio corpo e aqui na Terra mesmo.

A criogenia é, se assim se pode dizer, uma ciência, mas há quem ache que não passa de charlatanice ou, na melhor das hipóteses, de uma ilusão. Porque bem espantoso é o objetivo dessa pseudociência: conservar corpos humanos a uma temperatura tão baixa (- 1960. C) que ele não se desfaça com o tempo. Naturalmente, é necessário que o indivíduo, antes de mergulhar nessa friagem, esteja devidamente morto e que tenha manifestado em vida seu desejo de virar picolé.

Também é necessário que disponha de uma boa reserva de dólares, porque ficar dormindo num dos laboratórios que prestam esse serviço custa, nos Estados Unidos, duzentos mil dólares, para o corpo inteiro, e oitenta mil dólares somente para a cabeça ─ caso o freguês considere que já não vale mais a pena investir no corpo e queira preservar somente sua parte pensante, com tudo o que nela acumulou enquanto vivia. Na Rússia o serviço completo pode ser feito por modestos oitenta mil dólares, mas, como diria algum ucraniano, vá lá confiar na Rússia. Com um pequeno acréscimo é possível levar junto seu cão ou gato de estimação. Ninguém ainda manifestou o desejo de que venham a renascer também o patrão, o cunhado ou a sogra.

Se alguém acha que isso é uma loucura, fique sabendo que já existem 350 corpos congelados, à espera do dia feliz em que a medicina tenha encontrado um jeito de ressuscitar a matéria e trazer seu dono novamente à vida. Um desses terráqueos esperançosos já descansa agasalhado no gelo há cinco décadas. Ou seja, já comemorou cinquenta vezes o aniversário de falecimento.

As dúvidas ainda existentes não são apenas quanto ao retorno do corpo para o mundo dos vivos, mas também como será esse camarada que vier a ocupar novamente um lugar no planeta, depois de ter estado sabe-se lá onde, dormindo à espera da palavra mágica que o traga de volta. Será que ele reconheceria o mundo e as pessoas ou, mais grave ainda, será que ele reconheceria a si mesmo? Por outro lado, já imaginou se um dia for possível dar outra chance a um bilhão e duzentos milhões de chineses e a outro tanto de indianos? Vai faltar espaço para a entrada de gente nova.

         Quanto a mim, prefiro deixar a questão da morte nas mãos de Deus que, ao contrário dos criogenistas, sabe o que faz. E depois, é como escreveu o poeta Paulo Leminski:

“Vida e morte/ amor e dúvida/ dor e sorte/ quem for louco/ que volte.

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Grande alma

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Ir aonde ninguém queria ir, servir a quem ninguém queria servir

Quando eu era criança ainda se ouvia uma anedota sobre o desconhecimento que às vezes pesa sobre pessoas supostamente muito conhecidas. Era um diálogo entre professor e aluno:

─ Menino, quem foi Getúlio Vargas?

─ Sei não, professor.

─ Como não sabe?  Getúlio é um brasileiro muito importante.

─ Só se ele é do time reserva, professor, porque o titular eu sei todinho.

Ir aonde ninguém queria ir, servir a quem ninguém queria servir

Quando eu era criança ainda se ouvia uma anedota sobre o desconhecimento que às vezes pesa sobre pessoas supostamente muito conhecidas. Era um diálogo entre professor e aluno:

─ Menino, quem foi Getúlio Vargas?

─ Sei não, professor.

─ Como não sabe?  Getúlio é um brasileiro muito importante.

─ Só se ele é do time reserva, professor, porque o titular eu sei todinho.

Me lembrei dessa história quando numa conversa informal mencionei Albert Schweitzer e pelas caras circundantes vi que ninguém sabia de quem eu estava falando. No entanto, trata-se de alguém que joga brilhantemente no primeiro time dos maiores humanistas de que se tem notícia. Um sujeito que se fosse mais conhecido talvez nos animasse a sermos, não igual a ele, não sonhemos tão alto, mas ao menos um pouco melhores do que somos.

Não que eu seja conhecedor de sua vida ou de sua obra, mas comecei a admirá-lo desde que há muitos anos li um de seus famosos pensamentos: “A gentileza é a suprema manifestação do espírito humano”, o qual encontrei recentemente com outra roupagem: “Assim como o sol derrete o gelo, a gentileza evapora mal-entendidos, desconfianças e hostilidades”.

Num tempo em que pessoas grosseiras, vulgares, violentas e sem ética despertam paixões e enchem de entusiasmo pseudopatriótico verdadeiras multidões, a figura gentil desse alemão falecido em 1965, aos 90 anos, é uma lição que merece ser conhecida e meditada.

Aos trinta anos Schweitzer já era músico, filósofo e teólogo consagrado na Europa e então resolveu estudar medicina para tornar-se missionário na África. Formado, internou-se no Gabão, então sob domínio francês, e construiu um hospital. Acompanhado da esposa, que era enfermeira, passou a tratar os nativos vítimas de doenças tropicais e da lepra e a pregar o Evangelho. Sua dedicação à causa que abraçara não impediu que, durante a Primeira Grande Guerra, por ser alemão, fosse preso pelos franceses.

Finalmente libertado, retomou sua obra e só voltava à Europa para fazer conferências, lançar livros e apresentar-se em concertos, sendo Bach seu íntimo conhecido. Todos os recursos obtidos por essa intensa atividade artística e religiosa foram aplicados no sonho de sua vida: ir aonde ninguém queria ir, servir a quem ninguém queria servir. Em 1951, recebeu com todo merecimento o Prêmio Nobel da Paz, tendo acumulado vários outros prêmios e honrarias, que em nada abalaram a sua modéstia e a sua entrega ao trabalho que havia posto como missão de sua vida. O hospital que ele construiu, a partir de um galinheiro, e que ele ampliou e para o qual foi levando médicos e equipamentos, ainda está lá, e naquele chão repousou o coração desse homem que bem merece ser chamado, como Ghandi, de “Mahatma: grande alma”.

Sem dúvida, a melhor maneira de fechar esta crônica é acrescentar a ela outro pensamento de Schweitzer: “Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seus semelhantes”.

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Havia uma senhora que previa o futuro

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Aposto que Eva achou que Deus não ia ficar sabendo

Havia uma senhora que previa o futuro. Esse negócio de prever o futuro, vocês sabem, é profissão de alto risco, porque o futuro costuma desdenhar de nossas previsões. Saímos de manhã e não levamos guarda-chuva porque o céu azul garantia bom tempo para o dia inteiro, e voltamos para casa embaixo do maior temporal. Tudo indica que no dia seguinte vai chover, e amanhece um dia amarelado de sol. Amores que eram eternos não duraram mais que um ano; encontros casuais transformaram-se em amores definitivos.

Aposto que Eva achou que Deus não ia ficar sabendo

Havia uma senhora que previa o futuro. Esse negócio de prever o futuro, vocês sabem, é profissão de alto risco, porque o futuro costuma desdenhar de nossas previsões. Saímos de manhã e não levamos guarda-chuva porque o céu azul garantia bom tempo para o dia inteiro, e voltamos para casa embaixo do maior temporal. Tudo indica que no dia seguinte vai chover, e amanhece um dia amarelado de sol. Amores que eram eternos não duraram mais que um ano; encontros casuais transformaram-se em amores definitivos.

O dono da gravadora a que os Beatles foram oferecer suas composições dispensou-os porque, na sua avaliação, músicas com guitarra não tinham mais futuro. Em 1936 o New York Times afirmou que era impossível para um foguete ultrapassar a atmosfera terrestre. Sobre o telefone, algum sabido declarou que o aparelho carecia de valor, pois não tinha como tornar-se um eficiente meio de comunicação. Aposto que Eva achou que Deus não ia ficar sabendo, e até hoje estamos aguentando as consequências da besteira que ela fez.

Diz o ditado que o futuro a Deus pertence, e não há provas de que Deus ande fornecendo a programação para o dia seguinte, como fazem as emissoras de televisão.  Apesar disso, desde que o mundo é mundo, tem gente dando palpites sobre os tempos vindouros. Até acredito que existam pessoas com sensibilidade acima da média e que por isso podem ouvir e sentir coisas que escapam às menos providas desse dom. Gente que nos encontra e vai logo falando “Estou te achando abatido. Você está doente?” Juramos que não, aliás, há muito tempo não nos sentíamos tão bem, em perfeita saúde. Poucas horas depois, estamos com um resfriado que nos atormenta por três dias. Mas daí a achar que são adivinhos, penso que vai uma boa distância.

Pois a tal senhora dada a adivinhações teve a oportunidade de fazer uma previsão bem assustadora a meu respeito. Uma pessoa da minha família foi consultá-la e ouviu dela perguntas sobre a possível existência de parente com tais e tais características. Era eu, não tinha dúvida. “Essa pessoa está sujeita a um grave acidente de trânsito entre os dias X e Y deste mês”. Pra quê! Lá foi a parenta me recomendar que ao menos por alguns dias ficasse em casa e não entrasse em nenhum veículo motorizado.

Obrigado a trabalhar e cético com relação a essas premonições, toquei a vida em frente. Fiz uma viagem de ônibus no período, mas não me lembrei da advertência. Até o dia em que fui a um evento no que tinha sido o Colégio da Fundação Getúlio Vargas. O prédio ainda hoje lá está, no alto do alto morro. Tendo decidido descer antes do fim da programação do dia, acabei pegando carona num caminhão estropiado que tinha ido lá fazer não sei o quê.

Aí, sem mais nem menos, me lembrei de que aquele era o último dia da previsão fatídica. E o velho caminhão zanzava de um lado para outro da estradinha estreita, rangia, resmungava e se inclinava para o precipício. Num dado momento, o bicho deu um solavanco que assustou até o motorista, que o conhecia de longo tempo. Temi que a profecia fosse se cumprir. E como não sou herói nem ateu, desci rezando para que chegássemos sãos e salvos ao pé do morro. Afinal, como diz o ditado espanhol, “Eu não creio em bruxas, mas que existem, existem”.

Bem, não morri, como os leitores já concluíram. Pelo menos até o dia em que escrevo esta crônica, sinto-me razoavelmente vivo. No dia em que vocês a estiverem lendo... sabe Deus. Termino desejando que todos vocês tenham uma vida longa e feliz, a cada dia cheia das melhores previsões para o futuro (e que todas elas se concretizem).

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Milagre policial

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Para a polícia, esse silêncio em si mesmo já era uma confissão de culpa

Para a polícia, esse silêncio em si mesmo já era uma confissão de culpa

Não podemos deixar de admirar a eficiência da nossa polícia e, se dos muitos crimes cometidos apenas uns poucos chegam a ser resolvidos, isso se deve à falta de colaboração dos criminosos, que têm o mau hábito de não deixar provas ou ao menos indícios que facilitem os trabalhos de investigação. Além do mais, quando questionados, negam com a cara mais limpa: “Que isso, doutor, nesse dia eu tava pescando em alto mar, o Zé do Anzol e minha mãe são testemunhas”. Enfim, ninguém tem a gentileza de deixar um recibo quando, por exemplo, saca dinheiro numa agência bancária com a apresentação não de um cheque, mas de um fuzil ou de outros artefatos semelhantes, que estes sim estão em grande evidência na vida e na morte do cidadão brasileiro.

  Além do mais, os bandidos têm uma atividade muito diversificada, atuando não só no sistema bancário, mas também nos transportes de mercadorias, nos golpes financeiros, no confisco de celulares, no contrabando de cigarros, na falsificação de remédios e até modestamente fazendo saques no caixa de lojas e restaurante. Mesmo aqueles bandidos contra os quais existe um amontoado de evidências não se pode fazer muita coisa, porque nunca lhes faltam álibis, sem falar que há também aspectos políticos, econômicos, sociais e outras relevantes razões que impedem uma boa e isenta investigação policial.

Mas recentemente tivemos uma mostra de como a polícia às vezes consegue agir com rapidez e eficiência. Se bem que, no presente caso, os homens da lei tenham contado com a ajuda de populares. Explico: enquanto as autoridades não chegavam, a população tratou de ir dando uns chutes, empurrões e sopapos no suspeito, que, aliás, apanhou em silêncio. Sim, suspeito de ter roubado o celular de uma dessas pessoas que andam pelas calçadas distraídas, mais preocupadas em ouvir, falar e digitar do que em olhar em volta para ver se alguém está se aproximando com intenções duvidosas. Com a chegada da polícia, o homem foi entregue à Justiça, ou à justiça, e levado para a delegacia.

Num instante, lá estavam parentes, vizinhos, amigos e curiosos a chorar e a gritar que o rapaz era inocente. A mãe, em prantos, jurou que o filho era incapaz de fazer mal a uma humilde mosca, de pisar numa barata tonta ou tirar o doce que uma formiga estivesse laboriosamente carregando. O acusado tinha, diziam todos, um coração infantil, até porque, era dotado de acentuado nível de limitação intelectual. Ou seja, não era mais do que uma cabeça de criança num corpo de adulto.

O delegado, no entanto, matou a conversa apresentando o relato do interrogatório, segundo o qual o acusado se recusara a dar esclarecimentos e apenas se manifestara para alegar seu direito constitucional de ficar calado. É o exemplo que nos dão os poderosos da República quando apanhados enfiando no próprio bolso alguns trocados do dinheiro público. Sendo a justiça brasileira igual para todos, embora nem todos sejam igualmente iguais, também o suspeito de roubar um celular pôde valer-se do direito constitucional de ficar calado. Para a polícia, esse silêncio em si mesmo já era uma confissão de culpa.

O que prejudicou um pouco a credibilidade do documento assinado e apresentado pela egrégia autoridade foi a comprovação posterior de que o suposto autor do roubo, além de não ter a cabeça boa, era surdo-mudo. Nessa condição, convenhamos, teria um pouco de dificuldade para se expressar e de invocar seu direito constitucional de permanecer calado, até porque desde que nascera não tinha feito outra coisa na vida senão ficar em silêncio.

Que o roubo tenha acontecido está ainda por ser provado. Mas não há dúvida de que o surdo-mudo ouviu e falou. Não duvidemos, pois milagres ainda mais extraordinários têm acontecido em muitas delegacias brasileiras.

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Conversa de beiral

quarta-feira, 01 de junho de 2022

— Moça, dá licença. Não se assusta não. Dá licença pra eu sentar aí do seu lado.

— Que maluquice é essa, cara! Tá brincando comigo? Olha que eu pulo agora mesmo. Tou brincando não.

— Eu sei... Claro que não! Foi por isso que eu me resolvi também.

— Não se aproxima não. Nem vem com lero-lero, igual naqueles filmes que o policial vem chegando cheio de conversa e, de repente... Ninguém vai me fazer desistir não. Fica aí, se não eu pulo agora mesmo. Tou avisando.

— Vim te fazer desistir nada, menina. Eu vou é pular também.

— Moça, dá licença. Não se assusta não. Dá licença pra eu sentar aí do seu lado.

— Que maluquice é essa, cara! Tá brincando comigo? Olha que eu pulo agora mesmo. Tou brincando não.

— Eu sei... Claro que não! Foi por isso que eu me resolvi também.

— Não se aproxima não. Nem vem com lero-lero, igual naqueles filmes que o policial vem chegando cheio de conversa e, de repente... Ninguém vai me fazer desistir não. Fica aí, se não eu pulo agora mesmo. Tou avisando.

— Vim te fazer desistir nada, menina. Eu vou é pular também.

— O quê? Quem vai pular sou eu. Não se meta, se me faz o favor.

— Dá licença. A gente sentado conversa melhor. Dá licença. Ui, que altura!

— Fica longe. A laje é muito grande. Fica aí mesmo.

—Tá certo. Eu tava lá embaixo, no meio da multidão, ouvindo a conversa do povo. Tem gente querendo que você salte logo, tem uns até reclamando da demora. Um já tá nervoso, precisa ir embora e você não se decide.

— Decidida eu tou. E muito. Só tou aqui passando uns pensamentos a limpo.

— Pra que passar pensamento a limpo, se você vai morrer?  Besteira. Mas tem gente chorando, uma freira tá rezando um terço. Uma velhinha prometeu àquela Nossa Senhora lá da Polônia... como se chama? Acho que é Mediugorje. Se você não pular, ela vai pagar uma viagem à Disneylândia pro sobrinho que faz 12 anos hoje.

— Pois esse moleque vai ficar sem conhecer o Pato Donald, sinto muito.  E não é Polônia, é Iugoslávia.

— Já reparou como tem desocupado nessa cidade? Ninguém trabalha mais não? Há mais de uma hora lá na rua, olhando aqui pra cima.  E de lá nem dá pra te enxergar direito.

— Agora juntou mais gente, depois que você chegou.

— Uns dizem que você tem câncer, outros que teu marido te deixou.  O que mais tá correndo é que você roubou a loja onde trabalha, o patrão descobriu. 

— Se no Brasil alguém se matasse por ter roubado, lá em Brasília não tinha 8o andar que chegasse. Mas larga de conversa fiada: você quer mesmo se suicidar?

— Pois é. Eu vi você e pensei: ela vai se matar por essas mixarias, muito mais motivo tenho eu. Vamos de mãos dadas?

— Você acha câncer mixaria?

— Você tem câncer???

— Deixa de ser besta, cara!  Vira essa boca pra lá!  Meu problema é outro.  E o teu, qual é?

— Mulher ...

—Te traiu?

— Minha namorada há dois anos, veja só! Grávida!

— Mas isso é motivo pra alguém se matar? Francamente, cara. Um rapaz bonito igual você. Ah, vai embora. Me deixa morrer sossegada. Aliás, como você entrou aqui, se os bombeiros tentaram até arrombar a porta?

— Eu sou chaveiro. Quer dizer, fui. Abro qualquer porta. Será que aquele helicóptero é por nossa causa? Tamos ficando famosos.

— Vamos aparecer na televisão... Suicídio duplo não é todo dia que tem.  E eu tão mal vestida. Também, que diferença vai fazer depois? Mas essa de se matar porque a namorada tá esperando um filho teu... deixa de ser frouxo, homem.

—Nada disso. Eu nunca transei com ela. “Só depois do casamento”, “Sou virgem”, “Minha religião não permite”, e eu acreditando! Grávida! De outro, é claro!

— Não me faça rir. Que zinha que você arrumou, hem? Em todo caso, melhor agora do que depois do casamento. 

— E você? Vai ver que teu motivo é pior do que o meu. 

— É uma história muito comprida. Precisava de tempo pra contar. 

— Me conta, agora fiquei curioso.  Faz o seguinte: a gente desce para tomar um chope e você me conta a história.

— Mas depois a gente volta, que eu não vim aqui pra dar esse espetáculo todo à toa.

— Depois a gente vê. Primeiro a gente toma um chope. Depois a gente vê o que faz.

 

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A moça que gostava de estudar

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Nunca se sabe o que esperar de uma pessoa que gosta de ler e de estudar

Nunca se sabe o que esperar de uma pessoa que gosta de ler e de estudar

No bairro onde passei alguns anos de minha infância, estudar não era coisa a que se desse grande valor. Para a maioria das famílias, se o filho aprendesse o suficiente para conseguir emprego numa fábrica ou numa loja, já estava muito bom. Passar disso era ambicionar demais, já era estar querendo se meter a filho de doutor. Minha mãe, no entanto, era uma exceção, não sem motivo ela se chamava Conceição (no oficial); Ceção (para as coisas do dia a dia) e uma de suas ideias fixas era arrumar colégio para nós. De modo que eu e meus irmãos tínhamos grande dificuldade de escapar dos estudos. Apesar disso, eu comungava da crença geral entre a garotada local de que estudar contrariava a natureza humana. Não podia ser normal a gente ter que renunciar a jogar pelada ou apostar corrida pelas ruas para se enfurnar entre quatro paredes, contemplando a professora diante de um quadro negro, fazendo umas contas malucas que ninguém entendia.

 Mas havia nesse bairro certa mocinha que gostava de estudar. Aquilo rompia com a harmonia do universo. Lá ia ela carregando livros e cadernos e, ao contrário de nós outros, com a cara mais feliz do mundo. Sim, ela não apenas ia ao colégio, mas ia contente. Verdade que, sendo alguns anos mais velha do que nós, frequentava uma escola no Centro e ainda se dava ao luxo de ir e vir de bicicleta, enquanto nós marchávamos a pé para o grupo escolar da vizinhança. O mais assombroso era que havia quem garantisse que ela gostava também de ler, isto é, não se limitava aos que os professores mandavam, mas por conta própria enfiava os olhos e a cara em livros que ela mesma procurava.

 Diante de tamanha estranheza, também os adultos tinham a suspeita de que a moça era, como então se dizia, meio gira. Ou seja, meio pancada, meio abestada. Para falar francamente, meio maluca. A família, no entanto, tratava-a com naturalidade e até mesmo com orgulho. A mãe dela chegava a olhar a gente de cima, como se dissesse que a filha não era da nossa laia, muito pelo contrário, era alguém que gostava de estudar. Alguém que podia até vir a ser datilógrafa em algum escritório ou secretária em alguma fábrica, por que não?

Nós, meninos, nunca tivemos dúvida sobre a pouca sanidade mental da moça. Alguns, mais benevolentes, a consideravam esquisita; os demais a tinham na conta de doida varrida. Quando ela passava pedalando, pontas de cadernos e livros olhando para fora da pasta abarrotada, a gente parava para contemplar com curiosidade e um pouco de medo ─ nunca se sabe o que esperar de uma pessoa que gosta de ler e de estudar. Mas o fato é que a moça nunca nos fez outro mal, a não ser o mau exemplo que dava e que alguns pais logo começaram a querer que os filhos imitassem. Isso não me afetou muito porque, como já disse, mesmo que eu não quisesse, Ceção me mandava para as aulas. Quanto aos livros, muito cedo também eu viria a contrair a incurável doença de gostar deles.

Aquela misteriosa moça só deixou de ser para nós um mistério quando tomou um tombo de bicicleta. Aconteceu que certo dia ela não conseguiu equilibrar em cima de duas rodas o corpo e a sabedoria e ambos vieram ao chão. A pobrezinha ficou esparramada no meio da rua, numa deselegância que ninguém podia imaginar numa pessoa tão estudiosa. Um cidadão chegou para socorrê-la antes que ela pudesse arrumar a saia, tendo ele, no entanto, a infeliz gentileza de acalmá-la dizendo: “Não adianta esconder que eu já vi tudo!” Mas levantou-a com cuidado, enquanto os moleques juntavam pertences dela e cheios de cerimônia os entregavam.

A partir daquele dia deixamos de ver aquela jovem como um ser estranho, quase do outro mundo. Foi com certeza o momento em que de uma vez por todas compreendemos que os intelectuais são apenas seres humanos e que, como todos os mortais, estão sujeitos a quedas e fracassos.

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A operária do crime

quarta-feira, 04 de maio de 2022

Bem tranquilos estavam todos da casa, quando a polícia bateu à porta

Bem tranquilos estavam todos da casa, quando a polícia bateu à porta

O jornal garante que a velhinha tem 89 anos, é bisavó, e está em plena forma. Condenada a 32 anos de prisão, não se deu por achada, não deixou que a polícia a achasse e por muitos anos continuou trabalhando no que melhor sabia fazer: roubos e furtos, que são sua especialidade desde jovem. Não que ela fuja de tarefas mais pesadas, se a situação assim o exigir. Aos 80 anos namorava um ex-PM, mas tendo o bravo militar cometido a imprudência de juntar algum dinheiro, ela resolveu se ressarcir do tempo perdido com aquele romance e rompeu o relacionamento da forma mais radical possível: matou o desafortunado companheiro (desafortunado nos dois sentidos: ficou sem a fortuna e sem a vida). Nessa empreitada, no entanto, precisou recorrer à ajuda do filho. Este, menos competente do que a mãe, foi parar na cadeia, enquanto ela saiu por aí batendo asas e carteiras, para grande desassossego da população.

Mas quem desconfia de uma velhinha que se chama Socorro, tem os cabelos brancos e aquele doce olhar que é a maior doçura de toda vovozinha, até mesmo a de Chapeuzinho Vermelho? De nada desconfiou a família que a empregou como cuidadora, nada menos do que cuidadora! Bem tranquilos estavam todos da casa, quando a polícia bateu à porta, não por causa daquela veneranda senhora, que, apesar da idade, ainda se esfalfava amparando quem mais do que ela precisava de ajuda para ir vivendo. É que, por acaso, mero acaso, os roubos na região de repente haviam aumentado exponencialmente.

O azar da ilustre dama foi, portanto, ter arrumado um trabalho honesto, ainda que com desonestas intenções. Tinha naquele lar um pouso certo e seguro, uma base de operações a partir da qual podia exercer sua atividade laboral nos prédios circunvizinhos, sem as amolações e contratempos comuns a outros trabalhadores que moram em bairros pobres, desses que a polícia visita com regularidade. Só foi descoberta porque os investigadores, ao entrarem no apartamento para as perguntas de praxe, levaram o maior susto: “A senhora por aqui!”. Estava esclarecida a onda de roubos que obrigara a polícia a elaborar as mais variadas explicações, quando a explicação era tão simples e ao mesmo tempo tão inacreditável. A família empregadora não desconfiava de nada e estava bem satisfeita com o seu trabalho. Mas, por via das dúvidas, foi conferir as joias da casa. Não faltava um só botão. A empregada cumprira fielmente o que prometera ao ser contratada: não mexer em nada que não lhe pertencesse.

Ainda agora o STF está analisando a tal “revisão da vida toda”. Trata-se de saber se a aposentadoria do trabalhador brasileiro deve ser calculada pelo que ele recebia a partir de 1994, ano do Plano Real, ou se desde que ele começou a contribuir para o INSS, caso tenha sido antes daquela data. Na avançada idade em que se encontra, e estando em atividade a tanto tempo, sem nunca ter tirado férias, a dedicada operária do crime certamente tem direito a um salário a altura de sua longa dedicação à profissão que abraçou. Alguém dirá que ela não contribuía com a Previdência, muito pelo contrário. É verdade, mas não será a única dentre os nossos compatriotas a viver às custas da nação sem ter contribuído para a sua riqueza.

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