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Meninos

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Um menino não há de nascer em vão.

Um menino não há de nascer em vão.

A qualquer hora, podeis constatar: os meninos ainda nascem. As mesmas caras assustadas, o mesmo choro de espanto, o mesmo jeito frágil e indeciso de passarinho que pela primeira vez deixa o lar e vem conhecer a realidade aqui fora. A realidade é às vezes dura, às vezes agradável. Os meninos vão se acostumando a descobrir que existe o beijo e a bofetada, o sol e a lua, o jogo de bola e os deveres escolares. Os casais passam e os meninos olham, vagamente desconfiados de que assim começam todos os meninos. O pai chega do trabalho, a mãe traz um remédio amargo, a televisão sai do ar justo na hora do desenho, o avô vem visitar e entrega chocolate. Um dia chove, os meninos se chateiam, vão inventar moda dentro de casa; no outro dia é um exagero de sol, um imenso ovo amarelo estrelado no céu, piscina, picolé, peraltices pelas ruas.

Sim, os meninos ainda nascem, embora a muitos de nós isso possa parecer insensato e inútil. Mas em cada menino que nasce revivem todas as esperanças e todos os desafios. Todo menino inaugura o mundo novamente. Para ele não importa que os homens se trucidem há tanto tempo sobre a face da terra: o menino veio para a paz. Para ele não pesa que os homens bebam e joguem e matem e se matem: o menino veio para o equilíbrio e a sobriedade. Para ele não conta ser filho do amor ou do descuido da aventura: o menino veio para inventar a pureza e a responsabilidade.

O menino é tão inocente, tão confiante, tão menino, que se atira nos braços dos homens e adormece. Um adulto quer apagar a chama do futuro porque o menino é culpado desde sempre e está condenado a repetir os mesmos pecados. Outro adulto, no entanto, olha para aquela criança, água ainda não turvada, e quer abafar a sombra do passado, porque o menino é bem capaz de descobrir no vento uma cantiga nova, que possa redimir o mundo. Se os meninos ainda nascem é porque há esperança. Cada menino que nasce é outra oportunidade de um mundo melhor. Um menino não há de nascer em vão.

Dormem muito. Às vezes abrem os olhos e contemplam a vida em redor. Talvez desanimem do que veem, talvez ainda se sintam fracos para enfrentar tanta coisa contraditória. Até que um dia criam coragem e resolvem que já é hora de sair do esconderijo. Então descobrem que o trigo vira massa, a massa vira pão, mas as pessoas nem sempre têm o que comer e o pão que o diabo amassou não é apenas uma maneira de falar. Há pássaros e há gaiolas, mas a liberdade é uma fome incurável.

Adolf Hitler é um sujeitinho rígido e antipático; Albert Schweitzer toca piano e aplica injeções. Um homem foi assaltado, espancado e largado na estrada; dois outros passaram por ali e se afastaram, um terceiro, porém, tratou dele e o levou para a hospedaria. Há sempre guerras, porque muitos amam o poder e a glória, mas há também tantas guerras evitadas, porque outros amam a paz. Derrubam-se florestas para plantar cimento, para plantar fumaça, para plantar dinheiro, mas o vento, que ignora tudo isso, vai transportando pólen, feito um cupido ecológico.

Cedo os meninos percebem que assim é o mundo em que terão de viver. Então escolhem o lado em que vão ficar. Alguns crescem, criam barba e se transformam em apenas mais um homem, disparam o revólver, ferem o chão em que pisam, envenenam o próprio ar que respiram. Mas todos trazem em si a esperança, que é nossa, apesar das nossas fraquezas, de um dia em que “O homem confiará no homem / Como um menino confia em outro menino”, tal qual sonhou Tiago de Mello, o poeta.

Eis, pois, o que te digo, a ti que mal abres os olhos e quando o fazes não distingues o médico que te trata do gato que mia na janela: não te iludas, que a vida não é mãe nem madrasta: é sempre e para todo o mundo um pouco de cada coisa. Acredita que a travessia merece ser feita e que deves fazê-la de modo a deixar o caminho mais claro e fácil atrás de ti. Acredita na vida, que não pode ser um mar de rosas, mas é uma rosa que se abre a cada manhã. Acredita nos outros, que são apenas pessoas, mas desejariam ser anjos na terra ou estrelas no céu. E, sobretudo, acredita em ti mesmo e age de tal forma que as pessoas possam dizer, ao te virem passar: “É um bom menino, um bom menino”.

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A culpa é da rainha

quarta-feira, 02 de fevereiro de 2022

A coisa mais feia que você pode fazer em almoço da alta nobreza é pensar em comer

A coisa mais feia que você pode fazer em almoço da alta nobreza é pensar em comer

Você me desculpe, eu juro que ia te convidar. Há meses eu vinha planejando oferecer um almoço de Natal a todos os meus leitores. A mesa lá de casa tem seis lugares, dava bem pra todo mundo. E é claro que você estava na lista, aliás, era dos primeiros nomes. Até comecei a pesquisar os serviços de nossa cidade, mas temendo que alguém me achasse somítico, sondei um buffet de Brasília, o mesmo que serve ao Itamaraty, onde o brasileiro, mão aberta que nem ele só, oferece aos visitantes estrangeiros canapé de caviar, vinho francês e uísque escocês. E disso muito devemos nos orgulhar, porque embora não possamos desfrutar de tais delícias, os nossos governantes podem, em nome do povo, oferecê-las fartamente a quem nos visita, dando assim prova da generosidade da nossa gente e da riqueza da nossa Pátria.

Enfim, meu propósito era oferecer o melhor para vocês. Mas vejam só como todos os acontecimentos cósmicos estão interligados! Bem se diz que quando uma folha de árvore cai na Índia todo o clima da Amazônia se altera. Também se costuma dizer que quando os Estados Unidos se resfriam o Brasil dispara a espirrar. Pior é agora, com a China. Se a China cair de cama num dia, no dia seguinte o Brasil será internado no CTI econômico. Digo isso para deixar bem claro que se a ideia do nosso almoço não foi adiante a culpa não é minha, e sim da rainha da Inglaterra.  Pois foi uma decisão de Sua Majestade que me fez desistir de concretizar meu sincero desejo de reunir em volta da mesa (seis lugares) a legião de leitores que tenho e da qual tanto me orgulho.

Acontece que também a rainha tinha programado um almoço de Natal, que até podia ser mais fino do que o nosso, mas não ia ter caipirinha, cerveja, feijoada e laranja baía de sobremesa. Enfim, o almoço da realeza não me causava inveja, e creio que meus convidados poderiam sair trocando pernas, tomando bênção a sapo e chamando urubu de meu louro, mas com fome é que não sairiam.  E pelo que ouço falar, a coisa mais feia que você pode fazer em almoço da alta nobreza é pensar em comer. Aliás, nem pensar! O certo, o elegante, é se contentar com a rodelinha verde que está no meio do prato, contemplá-la demoradamente e depois, de olhos fechados (possivelmente imaginando uma farta macarronada), mastigá-la lentamente, como se estivesse saboreando um manjar dos céus, ou pelo menos uma churrascada aqui da terra mesmo.

Mas Elisabeth II, vejam bem, resolveu suspender o almoço que daria no Natal à sua parentada. Aliás, ela já havia feito o mesmo em 2020, em ambos os casos alegando a necessidade de evitar aglomeração. Eu, no entanto, estou convencido que o problema da Coroa Inglesa (estou me referindo à monarquia e não à pessoa da veneranda senhora) é de dinheiro. Embora possuindo a razoável quantia de quinhentos milhões de dólares em bens próprios (ou seja, dela, como pessoa física) e sem contar a riqueza que a persegue aonde quer que ela vá, a mais longeva dos ocupantes do trono britânico também há de estar passando por apertos financeiros. Isso porque com a pandemia caiu muito o número de visitantes na Inglaterra. Sendo a rainha, como de fato é, a principal atração turística de todo o Reino Unido, há de ter sentido o baque.

Então, se Sua Majestade cancelou o jantar, eu achei que não ficava bem, seria quase uma afronta ao Império Britânico se eu batesse pé e mantivesse a comemoração que havia planejado. Sei que mundo afora muita gente comeu e bebeu, celebrou tanto que nem deu tempo de o aniversariante do dia comparecer à festa. Eu, no entanto, me senti na obrigação de ser solidário à Rainha. Quanto ao almoço do Natal de 2022, não prometo nada. Vamos esperar para ver o que vovó Beth decide.

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Presente de Natal

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Eu estava num quiosque em Copacabana, tomando uma caipirinha atrás da outra, esperando Juliana e pressentindo que Juliana não viria. Tinha chovido durante o dia, a tarde estava cinzenta, o mar vinha que parecia querer engolir a cidade, mas de repente mudava de ideia e estancava na beira da praia. Eu fazia força para não pensar em nada, mas a Ju também era uma onda que ia e voltava sem cessar.

Eu estava num quiosque em Copacabana, tomando uma caipirinha atrás da outra, esperando Juliana e pressentindo que Juliana não viria. Tinha chovido durante o dia, a tarde estava cinzenta, o mar vinha que parecia querer engolir a cidade, mas de repente mudava de ideia e estancava na beira da praia. Eu fazia força para não pensar em nada, mas a Ju também era uma onda que ia e voltava sem cessar.

Foi aí que dois meninos passaram na frente do quiosque, chutando uma bola já meio gasta de tanto levar pontapé. Fiquei me perguntado onde, naquela tarde feiosa, eles iriam jogar, a areia ainda encharcada não era uma opção. Mal eles saíram do meu campo de visão e eu já tinha me esquecido de como eles eram, se eram brancos ou negros, se vestiam camisa de algum time de futebol ou uniforme escolar. Somente a bola ficou, quicando na minha memória.

... O mais importante era a bola. Na ruazinha obscura em que a gente morava, um menino tinha bicicleta — velha, mas tinha —. E o Gutemberg (a mãe dele brigava se a gente chamava ele de Guto), o Gutemberg até estudava em escola particular. Nada disso me doía. Mas quase todos tinham bola de couro, presente de Natais passados. E a minha era uma porcaria de borracha, a única vez que eu levei ela pra pelada foi a maior vaia, voltei pra casa chorando.

Era dezembro de novo. Eu não pensava em bicicleta, ou em passeio ao Rio de Janeiro. Gutemberg já tinha ido e dizia ser muito maior e mais bonita do que nossa cidade, com prédios que raspavam nas nuvens. Eu queria era uma bola de couro. Uma vez sonhei que estava entrando no campinho de terra, a bola apertada embaixo do braço, brilhando que nem que fosse de ouro.

Mamãe quase não saía mais da cama, vovó tinha vindo de Campos tomar conta da casa e atazanar a minha vida. Mal eu botava o pé na rua, e ela já estava na janela gritando: “Entra pra dentro menino!” Mas foi bom, porque papai não precisava mais pagar empregada. Além disso, eu vi ele falando com mamãe que as coisas estavam melhorando na oficina.

Os dois meninos passaram de volta. Reparei que estavam com camisa do Flamengo. Parece que tinham desistido de bater bola e iam fazer qualquer outra coisa enquanto a noite não chegava. Eu é que não desistia. Naquele Natal, vovó ajudando em casa, a oficina com mais serviço, eu podia enfim pedir uma bola de couro. Na vida toda, foi o único bilhete que escrevi pro meu pai.  Botei num envelope e enfiei no bolso do macacão dele. Não tive resposta, mas tive certeza. No dia 25 ia sair de casa bem cedo, chutando uma bola de couro novinha. A rua inteira ia ficar parada, me admirando dar chutinhos pra lá e pra cá, driblando a mim mesmo.

Vinte e quatro chegou, vovó fez rabanada e doce de abóbora. De noite papai saiu todo contente, todo mundo na casa parecia contente, até mamãe, que veio pra sala e ficou olhando a televisão velha que vovô tinha mandado lá de Campos.

Eu esperei até tarde. Mas depois pensei que era melhor dormir, para aumentar a emoção do presente quando acordasse. Levantei antes de todo mundo, corri para a sala e vi a sacola com meu nome. O coração disparou... A mão tremia enquanto eu rasgava o papel ...

Tomei mais uma caipirinha e fui me arrastando em direção ao apartamento. Juliana não viria mesmo. Há muito tempo eu já devia ter aprendido a não sonhar com coisas que não posso ter.

 

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Livros e piolhos

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

No Brasil de então, livro era coisa mais rara do que índio de gravata ou índia de sutiã

Não é que os portugueses fossem medrosos, mas encarar Napoleão não era brincadeira, o homem vinha arrasando tudo que encontrava pela frente. Assim, mui sabiamente, a família real se mandou para o Brasil, criando a situação, única na História, de um império cujo governo estava na colônia e não na metrópole. Até aí, nada que a gente não tenha aprendido no colégio, contanto que não tenha matado a aula nesse dia.

No Brasil de então, livro era coisa mais rara do que índio de gravata ou índia de sutiã

Não é que os portugueses fossem medrosos, mas encarar Napoleão não era brincadeira, o homem vinha arrasando tudo que encontrava pela frente. Assim, mui sabiamente, a família real se mandou para o Brasil, criando a situação, única na História, de um império cujo governo estava na colônia e não na metrópole. Até aí, nada que a gente não tenha aprendido no colégio, contanto que não tenha matado a aula nesse dia.

Mas às vezes a gente não pensa em algumas consequências prosaicas desse acontecimento histórico. Por exemplo: com a chegada de tantos visitantes, todos eles acostumados a uma boa e farta mesa, o frango tornou-se para o povão do Rio de Janeiro uma saudade, uma vaga lembrança, um cacarejo longínquo, pois da cabeça aos pés todos os galináceos voaram para os pratos da elite esfomeada que se instalou na cidade. Também as melhores residências foram tomadas para acomodar a comitiva real, que andava aí por perto de 15.000 almas lusitanas. Nas portas das casas a serem desocupadas, foram pintadas as letras PR, que pretendiam significar Príncipe Regente. No entanto os cariocas, já na época capazes de rir da própria desgraça, traduziam o PR pelo que ele mais verdadeiramente significava: Ponha-se na Rua.

Os navios chegaram cheios de novidades, dentre as quais uma boa população de piolhos. Tantos eram os bichinhos a bordo que as mulheres amarravam panos na cabeça, na vã tentativa de matá-los por sufocamento. E foi assim enfeitadas que aqui desembarcaram. As cariocas, vendo as visitantes com aqueles turbantes improvisados, julgaram que aquilo era a mais fina flor da elegância europeia e, tivessem ou não piolhos passeando pelo cocoruto, passaram a também usar os cabelos ocultos sob panos coloridos. Por aí se vê que vem de longe essa nossa mania de imitar tudo que é estrangeiro, na suposição de que, se é estrangeiro, é melhor.

Mas a maioria das consequências foi positiva e os historiadores concordam que só a partir de 1808 é que o Brasil começou a tomar cara de nação minimamente civilizada. Um dos grandes benefícios, dos maiores talvez, foi terem vindo no embrulho os milhares de livros da Real Biblioteca Portuguesa. No Brasil de então, livro era coisa mais rara do que índio de gravata ou índia de sutiã. Ora, o que mais do que o livro pode mudar um homem ou um povo? Como de maneira tão feliz sentenciou o escritor argentino Jorge Luís Borges: “De todos os instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro”. E ele explica por quê. “Tudo o mais é extensão do corpo: o arado é extensão da braço:  o microscópio, dos olhos; o telefone, da voz”. Mas o livro, esse é “Extensão da memória e da imaginação”.

De vez em quando se diz que o livro vai morrer ou sobreviver apenas na forma digital. Mas o livro, desde a Bíblia de Guttenberg, é um objeto mágico, que recolhe, guarda, amplia e distribui tudo que a inteligência e a sensibilidade humanas podem criar. E, nos seus variados formatos, é prático, disponível, revisitável a qualquer hora e em qualquer lugar, sem depender de outra bateria que não seja a vontade do leitor. Sempre de braços abertos, ou melhor, de páginas abertas para quem busca sua companhia.

Se os portugueses não nos tiverem feito outro bem, ao menos esse não se lhes pode negar: trouxeram-nos os primeiros livros. E como disse o padre Antônio Vieira, “O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive”. Ou, lembrando Monteiro Lobato: “Um país se faz com homens e livros”.

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Casos de desaparecimento

quarta-feira, 01 de dezembro de 2021

Quando o rio fica em situação de excesso ou miséria hídrica, pra que serve?

Quando o rio fica em situação de excesso ou miséria hídrica, pra que serve?

Um dos órgãos encarregados de fiscalizar o governo teve a gentileza de nos informar que milhares de obras no Brasil estão desaparecidas. Pois é, não se trata de estarem inacabadas, como tantas de suas irmãs pelo país afora. Simplesmente desapareceram. Não sei como ser mais claro do que isso. “Desapareceram”, ou seja, “sumiram”, “ninguém sabe onde estão”. Estima-se que só de hospitais são mais de mil. Essa notícia, que tanta surpresa e até indignação causou entre muitos dos que dela tomaram conhecimento é, no entanto, perfeitamente explicável.

Porque, veja bem, o governo manda construir uma ponte. O que é uma ponte? Ensina o Michaellis que é “Obra construída (...) suspensa sobre um curso d´água”. A palavra ponte pode significar muitas outras coisas, desde pulo do goleiro de futebol até prótese dentária, todas elas sujeitas a desastres. A ponte do goleiro pode terminar com a cara na trave e a bola nas redes, a prótese dentária pode escapulir da boca e cair no colo da senhora sentada na primeira fila da plateia, justamente na hora em que o orador toma a palavra Aliás, isso me lembra... mas eu já contei essa história antes!

Bom, vou contar de novo, quem não leu que leia (ou não), quem leu que releia (ou não). O caso é que, quando criança, tive um vizinho que fumava muito e fumava especialmente sentado no vaso sanitário, enquanto fazia aquilo a que se destinam todos os vasos sanitários, seja no barraco da favela, seja no Palácio de Buckingham. Um dia, estava ele ali, soltando fumaça pelo nariz feito dragão de desenho animado, quando teve um ataque de tosse daqueles de estourar os pulmões do tabagista e os ouvidos da vizinhança.

Na ânsia de puxar algum arzinho para os pulmões, o homem deixou que a prótese voasse para dentro do vaso e lá ficasse nadando na pior companhia possível. Quando recuperado da tosse, viu-se o nosso anti-herói no dilema de pescar ou não seus belos dentes artificiais e voltar a usá-los, ou dar-lhes adeus para sempre. Enquanto pensava, deu a descarga, à qual a prótese sobreviveu valentemente. Bem diz a antiga marchinha de Carnaval: “A água lava, lava, lava tudo. A água só não lava a língua dessa gente...” Assim pensando, e pensando no tempo e no dinheiro necessários para recriar aquela valiosa peça, prudentemente pescou a prótese que, recuperada, lavada e escovada, voltou a iluminar o sorriso do seu dono.

Mas voltemos às obras desaparecidas. Não há o que estranhar. No caso da ponte... Bem sabemos como são inconfiáveis os rios brasileiros: vão e voltam, enchem e esvaziam, dependendo dos sol, das chuvas e da irresponsabilidade humana. Às vezes são tão férteis que até lembram a passagem bíblica em que Jesus ordena “Lançai de novo as redes”, e as redes voltaram rebentando de tão cheias, outras vezes viram lama, ou terra esturricada. Pois quando o rio fica em situação de excesso ou miséria hídrica, pra que serve? E pra que serveria uma ponte sobre ele? Aí a ponte desaparece, sem a menor consideração pelo dinheirão gasto para que ela fosse construída. Como são milhares os inconstantes rios nacionais, muitas são as pontes que com eles secam, ou por eles são levadas na enxurrada. Ou seja: desaparecem.

O que acontece com os rios nacionais com outras obras nacionais acontece. Estradas, por exemplo. As estradas são danadas pra desaparecer. O governo diz que abriu uma delas, asfaltou e inaugurou. O caminhoneiro chega lá, cadê a estrada? você viu? Nem ele, que só encontrou lama e buraco. Contudo, o que muito nos consola é que o citado órgão fiscalizatório explicou que não é bem assim. As obras existem, o que sumiu, perdidos nos desvãos da burocracia, foram os papeis que as tornariam visíveis para a fiscalização, pois no Brasil mais vale o papel do que a realidade.

Tomemos por exemplo o caso ocorrido numa cidade mineira. Um vereador morreu em plena sessão e na sessão seguinte o suplente se apresentou para tomar posse. Foi impedido pelo presidente da casa com o argumento de que ainda não tinha recebido o atestado de óbito.

— Mas o homem morreu na sua frente, Senhor Presidente!

— Não interessa. Sem o devido papel, nada feito. Volte Vossa Excelência na próxima semana e tomará posse. Se o atestado já tiver chegado!

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Maneiras de dizer

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Foi ali um instantinho e já volta

Pode contar que vai demorar. No Brasil, quando o sujeito diz que vai sair para tomar um cafezinho, sabe-se lá aonde esse cara vai e quando vai voltar, se é que vai voltar. Pior ainda se o paletó ficar abraçado ao encosto da cadeira. Há pessoas que parecem pensar que o paletó as representa muito bem e está capacitado a atender a qualquer um que tenha o mau gosto de procurá-las.

Foi ali um instantinho e já volta

Pode contar que vai demorar. No Brasil, quando o sujeito diz que vai sair para tomar um cafezinho, sabe-se lá aonde esse cara vai e quando vai voltar, se é que vai voltar. Pior ainda se o paletó ficar abraçado ao encosto da cadeira. Há pessoas que parecem pensar que o paletó as representa muito bem e está capacitado a atender a qualquer um que tenha o mau gosto de procurá-las.

Sei de um caso em que essa história de “foi ali um instantinho e já volta” levou anos para ser concluída. O sujeito saiu para comprar cigarro. O barzinho ficava só a cinco minutos do apartamento. Meia hora depois, a mulher se deu conta de que o marido estava demorando. Uma hora, começou a ficar preocupada. Duas horas, foi ela própria até o bar. O resto do dia gastou em telefonemas para conhecidos, hospitais e polícia. Nada de nada, nunca mais.  Três ou quatro anos depois, um vizinho está em São Paulo e vai assistir a um jogo no Pacaembu. Estádio lotado, não havia espaço nem para tirar a mão do bolso. Alguém ao lado lhe pede para acender o cigarro e …

Nem preciso contar o resto. O leitor e a leitora, inteligentes do jeito que são, já entenderam tudo. Era aquele cidadão que tinha saído de casa um instantinho e nunca mais voltara. “Se eu falasse que ia embora, ela fazia um escândalo. Aí, resolvi sair de fininho…”

Ela é bonitinha

Até ser gentil está ficando difícil. Outro dia conheci uma senhorita, da terra do Boi Garantido e do Boi Caprichoso, e lhe disse que ela parecia mesmo maranhense, tendo ela me perguntado o que isso significava. “Moreninha, bonitinha…”, foi o que respondi, achando que estava sendo muito galante.  A moça não entendeu assim e retrucou que “Bonitinha é quase feia”. Não satisfeito de ter dito a primeira besteira, acrescentei a segunda: “Já me disseram que bonitinha é uma feia bem vestida”, do que — louvado seja o bom humor feminino! — a jovem achou graça.

 Portanto, para dirimir qualquer dúvida, passada, presente ou futura, deixo consignado em ata que, quando atribuo a alguém o título de “bonitinha”, estou querendo dizer que: a) essa pessoa pode não ser uma dessas belezas arrebatadoras que enfeitam capas de revistas e telas de televisão; b) também não chega a ser nenhum Corcunda de Notre Dame; c) enfim, está naquele meio termo em que a pessoa pode ser chamada, sem ofensa, de… digamos assim… bonitinha.

Não é que eu queira fazer fofoca, não, mas…

Haja ouvidos e paciência, porque esse prólogo invariavelmente dá início a uma sessão completa de mexericos. Há quem garanta que o disse-me-disse é essencial à sanidade mental das pessoas. Segundo essa teoria, falar mal de alguém, fazer uma intriga, levantar uma suspeita, ao menos de leve e de vez em quando, é sinal de equilíbrio e bom humor. E a prova disso é que nos hospícios os internos não andam inventando enredos para complicar a vida dos outros. Ao contrário, falam quase exclusivamente de si mesmos: um é Neymar Jr., o outro é William Bonner, e mais aquele que consegue ser, em dias alternados, Ayrton Senna e a Princesa Isabel. Já o pessoal tido como mentalmente são, como gosta de uma fofocaria!

É de Machado de Assis o conto no qual um falastrão afirma saber que certa jovem está prometida em casamento a um amigo seu. Infelizmente para ele, o pai da moça estava presente e exige do fofoqueiro o nome do autor daquela mentira. A seguir, saem os dois à procura do primeiro acusado, que diz ter ouvido a história de um terceiro. E este aponta outro, que nomeia mais outro. A busca parece infindável! Os dois percorrem vários bairros do Rio, vão a Niterói e voltam, até que chegam ao suposto autor da história. Diante da enfurecida bengala paterna, o último acusado esclarece: “Mas foi o senhor mesmo que me contou isso!”

Daí se conclui que fazer fofoca pode ser saudável, mas é também uma arma que frequentemente se volta contra quem a dispara.

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Médicos, receitas e remédios

terça-feira, 02 de novembro de 2021

Apenas entrego a receita ao balconista que, de pronto, chama a farmacêutica, que, de pronto, convoca o mais antigo funcionário da casa

Apenas entrego a receita ao balconista que, de pronto, chama a farmacêutica, que, de pronto, convoca o mais antigo funcionário da casa

Não sou eu que vou falar mal dos médicos. Primeiro, porque os tenho em alta conta, especialmente os que tratam da minha pouca saúde. Não digo pouca porque ela me falte, mas porque saúde, como felicidade, nunca é demais. Alguns dirão que dinheiro também entra nessa conta, e mesmo o ingênuo Sancho Pança, fiel escudeiro do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, chegou a dizer que “Com bom cimento se pode fazer um bom edifício, e o melhor cimento do mundo é o dinheiro”. Pode ser, porém creio que mais vale possuir um centavo de saúde e outro de felicidade do que, sem elas, ser Bill Gates, Jeff Bezos e Elon Musk juntos, pra falar só dos que estão no topo da lista dos maiores ricaços do mundo. Por outro lado, o próprio Sancho vai dizer, mais adiante, que “Aos médicos sábios, prudentes, discretos, esses meto-os no coração e honro-os como pessoas divinas”.

Também não falo mal dos médicos porque é uma gente da qual se pode precisar a qualquer momento, em qualquer esquina da vida. Você vai andando lépido e fagueiro e de repente tem um piripaque e o mundo desaparece da sua frente. O que você mais quer ver nesse momento da vida (ou da morte) do que um bom e atencioso médico? Então é muito sensato estarmos sempre de bem com eles, para que, se nos reconhecerem antes do atendimento, eles não tenham que repetir mil vezes o juramento de Hipócrates. “Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Hígia e Panaceas...” e por aí vai, sem esquecer aquele pedacinho que diz: “A ninguém darei por comprazer remédio mortal nem um conselho que o induza a perda”. Se não for bem assim, espero que, tendo em vista que a citação é bem intencionada, ainda que imperfeita, nenhuma sociedade médica me processe,

Estando fartamente provado que não estou aqui para falar mal dos médicos, digo que gostaria de entender por que, em pleno século XXI, tantos deles continuam a escrever com letra analfabética, horrorosa, ilegível e pior de tudo, perigosamente mortal. Tenho pensado nisso desde que uma senhora, supondo que por eu ser professor de português hei de entender de hieróglifos e coisas semelhantes, mandou me pedir para decifrar o que estava rabiscado numa receita que o médico lhe entregou. Olho a folha assustado, viro-a de cabeça para baixo, tento a leitura vertical e a transversal e o mistério não se revela para mim.

Reúno alguns amigos, e todos se confessam incompetentes diante de tamanho desafio. Claro, todos têm um palpite. “Acho que é Toral”, diz um. Mas outro observa que, “na minha opinião”, não tem nem T nem R nessa palavra. “Deve ser damil”, opina o terceiro, “Só se for Dramin”, que esse existe, garante um mais entendido no assunto. E por aí vai: “Latam” (“Mas isso é nome de companhia aérea”), “Neurol” (“Acho que a pessoa não tem problema nervoso, não”), Brodemediol (“Mas na receita só tem cinco letras!”). Até que um engraçadinho aconselha: “Vai na farmácia e pergunta se tem Babacol. Se tiver, é esse mesmo”.

Bem, lá vou eu na farmácia e não pergunto por Babacol, apenas entrego a receita ao balconista que, de pronto, chama a farmacêutica, que, de pronto, convoca o mais antigo funcionário da casa. Debruçados sobre o balcão, também eles aproximam e afastam a receita dos olhos, viram e reviram a folha em diversas posições. Somente sobre uma coisa todos têm certeza: os riscos que antecedem à palavra (se é que aquilo é uma palavra) não é mais do que uns rabiscos desses que a gente faz quando a esferográfica custa a escrever. Sem chegar a nenhuma conclusão e com receio de matar a cliente com o remédio errado, recomendam que se procure o médico, peça para ele ditar o nome da droga e anotar o que ele disser (não deixe que ele escreva!). Feito isso, finalmente se chegou ao nome do medicamento, algo assim como Niuron.

Ah, os riscos acima citado significavam “duas caixas”.

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De peito aberto

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

 

Nem vou lembrar agora a palavra pudor, que já é quase um arcaísmo

 

 

Nem vou lembrar agora a palavra pudor, que já é quase um arcaísmo

 

O nordestino não é mais o mesmo e, pelo visto, as nordestinas menos ainda.    Eis a conclusão a que cheguei depois de ter sabido pela imprensa que em Natal algumas beldades locais desfilaram pelas ruas em carro aberto, despidas da cintura para cima. Na verdade, da cintura para baixo também era grande a escassez de tecido, não havendo mais do que uns modestos pedaços de pano, tão estreitos que só mesmo olhando com muita atenção (o que eu evitei fazer) se poderia dizer de que cor eles eram. A princípio pensei que a causa da nudez pública fosse o calor potiguar, e que as moças estivessem apenas querendo pegar um arzinho para refrescar.

Mas, indo um pouco além do lide, verifiquei que o i(nu)sitado desfile teve como objetivo defender o direito de as mulheres andarem de peito aberto, o que, alegam elas, os homens fazem há milênios sem que ninguém veja nada demais nisso.  Sem querer falar dos aspectos morais, sociológicos, políticos ou quaisquer outros que o tema possa suscitar, limito-me a olhar o assunto pelo lado estético. Nem vou lembrar agora a palavra pudor, que já é quase um arcaísmo, sobrevivendo a duras penas num canto esquecido dos dicionários. Diferenças de volume, formato e finalidade explicam por que, se Juliana Paes e o marido saíssem pela praia de Ipanema des-vestidos como recomendam as moças natalenses, ele poderia estar não apenas pelado, mas também carregando nas costas um tubarão recém-pescado que ninguém notaria sua presença.

 Mas creio que quem mais irá combater esse movimento são as próprias mulheres porque, convenhamos, não são todas que possuem encantos suficientes para assim se exibirem. Vinícius de Moraes diria que, para aderir à nova moda, beleza é fundamental. Imagine então como sofreriam as que, por não possuírem os requisitos exigidos pela novidade, precisassem manter oculto o que as outras orgulhosamente andassem exibindo. Seria o reconhecimento da própria feiura. Ora, de todas as desgraças que neste mundo podem se abater sobre qualquer mulher, sentir-se feia é a mais dolorosa. Se bem que, pensando melhor, talvez nem mesmo as mais belas entrem nessa de sair pelas ruas sem lenço e sem documento. Porque, embora digam que o que é bonito merece ser mostrado, certas belezas tanto mais encantam quanto mais ocultas permanecem.

E foi o comportamento de nossas conterrâneas do Nordeste que me fez lembrar da história de Lady Godiva. Essa senhora, que viveu na Inglaterra séculos antes de Cristo, até hoje é famosa por ter cavalgado nua pelas ruas de sua cidade. Porém não foi para exibir sua beleza que ela fez esse passeio equestre. Na verdade, seu motivo era bem mais nobre do que o das citadas moças brasileiras.

Diz a lenda que seu marido era cobrador de impostos, o que ele fazia com voracidade escandalosa. Se bem que, comparado com seus colegas brasileiros, qualquer cobrador de impostos, por mais voraz que seja, não passa de um principiante. Pois bem, Godiva tinha um coração de ouro e sofria com as privações que o povo passava para pagar tanto imposto. Daí que ela pediu ao marido que diminuísse a cobrança. Ele respondeu — sem pensar na besteira que estava fazendo — que só atenderia o pedido se ela desfilasse pelas ruas vestida apenas por seus belos cabelos. Pra quê?! Não tardou muito e lá estava ela, ao natural, como tinha vindo ao mundo, atravessando a cidade de lado a lado.

Dizem que os moradores fizeram um acordo e prometeram que ninguém olharia para aquela dama encantadora, que os defendia de forma tão generosa. Tenho minhas dúvidas de que todos tenham cumprido a promessa, mas o que importa é que os impostos foram realmente diminuídos. Oh, se a esposa de algum dos nossos governantes se dispusesse a se sacrificar assim pelo povo brasileiro! A gente nem ia exigir que ela fosse bonita. E também jurava que não ia olhar. Talvez não cumprisse, mas como é que os políticos iam exigir isso de nós, se também eles tão raramente cumprem o que prometem?

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A casa de meus avós

quarta-feira, 06 de outubro de 2021

Ao vê-la chorando, o pássaro faz uma curva no ar e volta para dentro da gaiola

Ao vê-la chorando, o pássaro faz uma curva no ar e volta para dentro da gaiola

Meus avós maternos moravam na Vila Nova, nos fundos de um estreito corredor que ia dar no morro do Colégio da Fundação Getúlio Vargas. Eu nasci ali pertinho, em frente ao que era então a estação de cargas da Leopoldina Railway e hoje é o batalhão da PM. Nem o trem me levou, nem a polícia me prendeu. Simplesmente fui ficando, mudei de bairro duas ou três vezes e agora só mudo de onde estou para dar cumprimento ao que escrevi num modesto poeminha que começava assim: Quando eu morrer/ quero ficar/ se a morte tem algum nexo, / ali atrás da prefeitura, / na altura.

Pois foi no pequeno espaço do quintal da casa de vovô e vovó (na verdade, “casa da vovó”, que desde cedo a gente aprende quem é que de fato manda no pedaço) que eu vivi aqueles anos que Casimiro de Abreu chamou da “aurora da minha vida”. Se ali não havia as bananeiras e os laranjais de que fala o poeta, havia para compensar uma horta e alguns pés de café. Na época própria, os grãos eram esparramados no chão de terra batida e ficavam à disposição do sol, para que este, quando fosse servido, os secasse. E, claro, havia um pilão e o cheiro de café que subia pelo ar e continua subindo pelas paredes da memória, como diria Belchior.

Mas o principal era o barranco. Sim, havia um barranco, um altíssimo barranco, pelo qual se subia através de meia dúzia de degraus cavados na terra. Grande era a emoção de percorrer aquela densa Amazônia de esquálidos arbustos, um pé de goiaba e outro de pitanga. Santas e boas horas passamos ali, eu e meu irmão, tentando pegar passarinhos que nunca nos deram confiança, tentando entender o milagre da física que permitia às formigas carregarem uma folha com o dobro do tamanho e do peso delas. E pensando muito seriamente no futuro: quando o bolo de fubá ficaria pronto, quando vovô nos daria a bala que havia prometido, quando... quando... quando...

E foi na casa dos meus avós que pela primeira vez percebi o quanto pode a beleza feminina, o poder da beleza feminina. Antes de contar esse caso, conto outro, que me ocorreu agora. Eu estudei um ano de espanhol. Claramente havia um buraco no horário e para fechá-lo o colégio lançou mão do primeiro professor que achou disponível, que era de espanhol, como podia ser de mandarim ou de física quântica. Nada e menos ainda foi o que me ficou dessas aulas, mas sei que certa vez lemos um soneto, do qual ainda me lembro o assunto e o verso final. No poema, um pássaro está preso e sua dona, que o adora, fica com pena dele e abre a porta da gaiola. Mas, ao sentir que perdia o bichinho amado, põe-se a chorar. Ao vê-la chorando, o pássaro faz uma curva no ar e volta para dentro da gaiola. E o poeta exclama no último verso: “O quanto pode uma mulher que chora!”

Mas deixemos o Colégio Cêfel e voltemos à casa dos meus avós. Meu irmão sofreu um acidente e precisava de atendimento médico domiciliar, o qual nunca lhe faltou, porque ele contava com a sorte de ter uma tia bonita. Por causa dela, diariamente o médico ia visitar seu paciente predileto e aproveitava para uma demorada conversa com a tia do doentinho. Não quero cometer o pecado de achar que ele alimentava segundas ou terceiras intenções. Mas, se alguma coisa valem as impressões de uma criança, é certo que ele vivia encantado com aquela moça bonita, que tão cordialmente o recebia e que transformava um quarto de sofrimentos num jardim florido e perfumado.

... Quando o futuro chegou, obrigou-nos a sair da casa de meus avós e, primeiro ele, depois ela, também os dois saíram daquela casa e foram morar com os anjos, prêmio que eles tinham conquistado por antecedência, ainda aqui na Terra, aturando os netos com santa paciência. Também meu irmão já se libertou das grades deste mundo e voou para o céu, onde com certeza a toda hora agradece a Deus por ter lhe dado uma tia bonita e um médico que sabia apreciar a beleza feminina.

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Cabeças cortadas

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Nunca mais namorou, nem às segundas nem em qualquer dos outros miseráveis dias da semana

É muito chato esse negócio de dar más notícias. Não é à toa que os gregos cortavam a cabeça do soldado que retornasse da batalha falando em derrota. No mundo moderno, nem sempre as cabeças são literalmente cortadas, mas é difícil não antipatizar com o primeiro sujeito que vem nos dizer que estamos ficando careca, como se fosse ele o causador universal da queda de cabelos.

Nunca mais namorou, nem às segundas nem em qualquer dos outros miseráveis dias da semana

É muito chato esse negócio de dar más notícias. Não é à toa que os gregos cortavam a cabeça do soldado que retornasse da batalha falando em derrota. No mundo moderno, nem sempre as cabeças são literalmente cortadas, mas é difícil não antipatizar com o primeiro sujeito que vem nos dizer que estamos ficando careca, como se fosse ele o causador universal da queda de cabelos.

E há maneiras simbólicas de decapitar o intrometido que vem nos esclarecer sobre coisas que preferíamos deixar na penumbra, quando não na completa escuridão. É o que prova o caso de uma senhora que há muitos anos se sentiu na obrigação de dar certa má notícia à sua melhor amiga. Vamos chamá-las de Marta e Maria, que têm a vantagem de ser dois nomes bíblicos e por serem tão universais não se aplicam a ninguém em particular.

Uma das amigas, digamos que Maria, arrumou um namoro, o que não seria nada demais não estivesse ela na idade em que a gente, para ser gentil com uma dama, diz que ela “não é mais criança”. E esse namoro tinha uma particularidade: só se consumava e consumia às segundas-feiras. O cavalheiro alegava que, nos demais dias da semana, trabalhava no Rio de Janeiro. Quem acreditaria nisso? Maria acreditava. Ou pelo menos enganava a si mesma tão bem que ela mesma acreditava que acreditava. E assim prosseguia o namoro, toda segunda: jantares, cinema, passeios de carro, curvas e mais curvas por onde inquietas mãos passeavam. Daí que Maria voltava para casa sonhando com o casamento que poria fim àquelas segundas-feiras corridas e incompletas. Maria sonhava com um amor de sete dias por semana, sem intervalos. E nessa ilusão passava os dias na esperança de um só dia.

Aí é que Marta entra na história. Certa de que sua amiga estava sendo enganada, pôs-se a investigar. E tanto que acabou chegando à descoberta nada espantosa de que o D. Juan era casado no Rio de Janeiro e vinha à nossa cidade nas segundas-feiras para prestar assessoria a empresas. Talvez viajasse para outros cantos nos restantes dias da semana e onde quer que prestasse assessoria técnica, prestasse também assessoria amorosa a alguma Maria local.

Marta, amiga tão amiga, acabou contando. Contou à Maria que o galã das segundas-feiras era também um galã de segunda e jamais a transformaria em primeira-dama. Maria mudou de cor, chorou e rangeu os dentes. Depois acusou a amiga de fofoqueira e invejosa. Quando lhe faltaram acusações medianamente civilizadas, fez um discurso que não pode ser apresentado neste horário, em respeito às crianças presentes.

Verdade que Maria terminou o namoro. Nunca mais namorou, nem às segundas nem em qualquer dos outros miseráveis dias da semana. Mas é verdade também que nunca mais falou com Marta. Perdeu o namorado e resolveu completar a desgraça perdendo a amiga. Assim foi, porque assim somos. Preferimos as mentiras doces às verdades amargas. Se sonhamos com rosas e aparece qualquer Marta para nos dizer que os espinhos existem, ficamos revoltados. Cortamos a cabeça dessa Marta imprudente, que é para ela não vir nos enfiar a realidade pelos olhos, quando os tínhamos fechados justamente para enxergar apenas a ilusão que cultivávamos por trás das nossas pálpebras cansadas.

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