A sabedoria do pente e da tesoura

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 02 de outubro de 2024

Estando eu sentado e indefeso, e ele com a navalha na mão, não me convém criticá-lo

Eu tive ótimos professores, mas também aprendi muito com os barbeiros a quem confiei minha cabeça e emprestei meus ouvidos. Ouvidos às vezes sonolentos, admito, mas nem por isso menos interessados na sabedoria que vinha junto com a tesoura e o pente. Um humorista irônico disse que é uma pena que todos os homens capazes de bem governar a nação estejam trabalhando como barbeiro ou taxista. Limito-me a falar dos primeiros, desde já excluindo o atual. A bem da justiça, afirmo que este, diferentemente dos anteriores, contenta-se em me cortar o cabelo, sem querer fazer de mim um sábio, ou mesmo um cidadão bem informado. Também porque, estando eu sentado e indefeso, e ele com a navalha na mão, não me convém criticá-lo.

Por outro lado, dizer “navalha” é um anacronismo. Os barbeiros modernos abandonaram o histórico instrumento da profissão e agora usam uma prosaica lâmina gilete para raspar a cara do freguês. Também é notável a transformação dos salões. Antes austeros, com cara de barbearia, transformaram-se em ambientes multiuso, com cafeteria, balcão e, se duvidar, uísque e queijos importados.  Ainda não vi nenhum com mesa de bilhar, mas não duvido que exista. E não mais usam a vulgar palavra portuguesa que por séculos denominou seus estabelecimentos, agora os batizam de “barber shop”, que lhes parece coisa bem mais refinada.

Um desses profissionais muito me enriqueceu com seus amplos conhecimentos sobre medicina, futebol e administração pública, que eram suas especialidades, embora os assuntos que dominava com igual profundidade fossem muito além disso. Verdade que já me esqueci de quase tudo que ele me ensinou ao longo dos anos em que fui seu freguês, ou cliente, que é uma maneira mais elegante de dizer a mesma coisa. Atualmente, nem as quitandas dos bairros têm mais fregueses, foram todos promovidos a clientes. Mas se esquecimento houve, a culpa é da pouca memória do aluno, não da muita competência do professor.

Na medicina, conhecia e avaliava cada um dos profissionais da nossa cidade. A urologia não tinha segredo para ele, embora usasse termos pouco científicos para falar do assunto, sobretudo quando abordava o temido exame de próstata. Indicou-me vários tratamentos, vaticinando problemas cardíacos que poderiam vir a me atacar, sendo a preocupação que então me atacou o único problema cardíaco que tive até hoje (Deo gratias!). Conhecia muito de ortopedia, cuja etimologia ─ “ciência do pé correto” ─ ensinava com ar professoral. Nessa matéria, tinha conhecimentos empíricos, uma vez que já atuara como técnico de futebol, condição em que socorrera muito craque com a canela ou o dedão atingidos pelo chute ou pisada do adversário.

Lamentava a pouca inteligência dos técnicos brasileiros, explicando como tinha conduzido seus pupilos com severidade e companheirismo, como escalaria os grandes times nacionais, como faria a seleção canarinho voltar aos seus tempos de glória. E, se lhe faltavam títulos, era porque nunca as diretorias lhe davam os atletas de que precisava para armar equipes imbatíveis. “Craque e perna de pau eu conhecia só de olhar o sujeito adentrar o gramado!”

Por fim, resta lamentarmos que ele nunca tenha exercido um cargo público, nem mesmo se candidatado. “Eu nunca quis me envolver com essa gente”, e “essa gente” tinha aí o pior significado possível, cada um que imagine o que ele queria dizer. Mas, fosse ele prefeito, de imediato acabaria com a corrupção (não sei se os corruptos concordariam). Administração austera, ágil, eficiente. Adeus ruas esburacadas, adeus escolas sem merenda, adeus trânsito engarrafado, adeus fila nos hospitais.

Enfim, tendo em vista como andam as coisas no Brasil e no mundo, talvez seja mesmo a hora de entregarmos o poder aos barbeiros e aos motoristas de táxi. Pior do que está, não fica.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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