Blog de roberiocanto_18846

Ressaca amorosa

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Levou um ano ensaiando a decisão, mas finalmente dera o Grito do Ipiranga: Separação ou Morte!

Levou um ano ensaiando a decisão, mas finalmente dera o Grito do Ipiranga: Separação ou Morte!

Assim que entrou no bar, os amigos começaram a cantar “Até que enfim, até que enfim...” Um deles, mais poético, logo acrescentou uma rima embargada de cerveja: “Aquela baranga largou de mim...”  Tinha sido frequentador diário, mas nos últimos anos raramente aparecia, e quando aparecia tomava um único chope, numa única golada. Não desatava a gravata nem a cara de quem tivesse acabado de espancar uma velhinha indefesa ou estivesse indo tirar o pai da forca. Mas agora retornava e retornava triunfante. Os velhos companheiros já tinham recebido a notícia e, de copos erguidos, o esperavam para comemorar.

Lembravam dos bons tempos, quando ele era o primeiro a chegar ─ às seis e quinze, o tempo necessário para sair do escritório e atravessar a rua. Repetia a saideira oito, nove, dez vezes. E não era só no bar. Nos bailes, nas festas, no futebol de salão, lá estava ele, amigo entre amigos, sempre animado, sempre de bom humor. E sempre tranquilão. Se havia um desentendimento, era o primeiro a chegar com o famoso “deixa disso, vamos na paz, irmão!”

Aí aconteceu Lucinda. Nem o fato de Lucinda ser dentista, ter-lhe arrancado alguns dentes e cobrado uma fortuna para botar outros no lugar impediu que ele se apaixonasse por ela. Enfim, casou. Casou e desapareceu. Se encontrava alguém da antiga turma, cumprimentava-o solenemente como se estivesse beijando a mão do Papa. Se alguém conseguia arrastá-lo até o bar, era aquela pressa, aquela sobriedade. E a todos ele dizia que finalmente estava feliz, que era outro homem, que Lucinda era tudo e muito mais, que nunca mais voltaria à vida antiga.

Porém... Porém... Começaram a correr boatos de que nem tudo eram flores. Que Lucinda o trazia no maior cabresto, que era a rotina casa-trabalho, trabalho-casa, visita à sogra aos sábados, aniversário de sobrinho todo mês, uma latinha de cerveja no almoço de domingo. Enfim, casou e cansou. Levou um ano ensaiando a decisão, mas finalmente dera o Grito do Ipiranga: Separação ou Morte!

Agora, homem livre, reaparecia no bar de antigamente. Um Nelson Goncalves desafinado entoou: “Boemia, aqui me tens de regresso...”, e mais não cantou porque o alarido foi geral. Saudavam o amigo como quem saúda um soldado que volta da guerra, mutilado, mas vivo. Quando o deixaram falar, ele exaltou o valor da liberdade, a alegria do convívio com os amigos, o triunfo da vontade sobre as amarras do matrimônio. Já passava das três da manhã e do enésimo copo quando finalmente admitiu que a separação fora decisão de Lucinda, que ele até tinha pedido para dar mais um tempo, que chegara à humilhação de mandar para ela um buquê de rosas vermelhas. Mas, tudo bem, finalmente estava livre. Livre!

Já de manhãzinha pegou um taxi e foi para a casa dos pais, com quem voltara a morar. Entrou apoiando-se nos móveis, trancou a porta e jogou-se na cama. Só a mãe, já preparando o chá de boldo, ouviu o filho suspirar, a voz saindo espremida pela porta do quarto: “Lucinda, meu amor!”

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Pessoas

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Desde criança estava predestinado a inventar outros eus

Fernando Pessoa foi um poeta extraordinário e a palavra extraordinário não tem aqui nenhum sentido hiperbólico. Ao contrário, é a maneira mais contida que se pode falar de seu gênio tão ... extraordinário. Um talento realmente fora do ordinário, fora do comum, ou, como agora se diz – fora da curva. Mas muito, muito para além dos limites da curva. Um homem cuja efervescência poética era tão intensa que não cabia numa só cabeça, numa só pessoa. Aí ele se viu obrigado a criar heterônimos.

Desde criança estava predestinado a inventar outros eus

Fernando Pessoa foi um poeta extraordinário e a palavra extraordinário não tem aqui nenhum sentido hiperbólico. Ao contrário, é a maneira mais contida que se pode falar de seu gênio tão ... extraordinário. Um talento realmente fora do ordinário, fora do comum, ou, como agora se diz – fora da curva. Mas muito, muito para além dos limites da curva. Um homem cuja efervescência poética era tão intensa que não cabia numa só cabeça, numa só pessoa. Aí ele se viu obrigado a criar heterônimos.

Heterônimo não é pseudônimo. Este consiste apenas em escrever por si mesmo e colocar outro nome. Velho recurso de que se valeram desde Nelson Rodrigues (Suzana Flag), até, vejam vocês, um conspícuo general integrante da Junta militar que governou o país em 1969 e publicava versos sob o pseudônimo pouco militar de Adelita. Não era nenhum Drummond, não era nenhum Bandeira, não era Cecília Meireles, mas nem por isso deixou de entrar para a Academia Brasileira de Letras.

Heterônimo é outro ser, saído das entranhas do seu criador, mas diferente dele e até mesmo oposto a ele. Pessoa não conseguia ser só ele mesmo e deu vida a muitos outros poetas, cada um com história, personalidade, estilo literário, vivências e preocupações não só diferentes, mas às vezes antagônicas entre si e em relação ao próprio autor. Os heterônimos mais conhecidos são Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Mas, já aos seis, ao ganhar da mãe um livro de presente, assinou-o com o nome de Chevalier de Pas. Desde criança estava predestinado a inventar outros eus.

Caieiro “nasceu” em Lisboa, em 16 de abril de1889. De pouca instrução e sem profissão definida, viveu no campo e morreu de tuberculose, em 1915. Sua poesia é marcada pelo bucólico, o simples e sensível diante das coisas do mundo: “Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras .../  Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do mundo”

Ricardo Reis, “nasceu” no Porto, em 19 de setembro de 1887, (quase um ano antes do seu “pai”!) e faleceu em 1936, tendo vivido no Brasil desde 1919. Ao contrário de Caieiro, ‘sua poesia não trata de coisas simples, antes fala da efemeridade da vida e do estoicismo necessário para enfrentá-la. “Para ser grande, sê inteiro: nada/ teu exagera ou exclui. Põe/ quanto és no mínimo que fazes./ Assim em cada lago e lua toda/ brilha porque alta vive”.

O modernista, o futurista, Álvaro de Campos “nasceu”, em Tavira, em 1890. Estudou na Universidade de Glasgow, na Escócia. Era o homem da velocidade, da eletricidade, da vida urbana. Para enfrentar a realidade que o desencantava, tinha uma solução: "E eu vou buscar ao ópio que consola: “Não sou nada./ Nunca serei nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do  mundo” (...) O mundo é para quem o nasce para conquistar/E não para quem sonha que pode conquista-lo, ainda que tenha razão”.

Mas o principal de Fernando Pessoa é ele mesmo, Fernando Antônio Nogueira Pessoa, que abriu os olhos para este mundo em 13 de junho de 1888 e para este mundo os fechou em 30 de dezembro de 1935.  Esse homem, que não cabia em si mesmo e transbordava em tantos outros (criou pelo menos 70 heterônimos), em apenas 47 anos compôs muitos dos mais belos poemas da língua portuguesa (e outros tantos em inglês, língua que dominava perfeitamente, desde sua infância na África do Sul).

E foram escritas em inglês as últimas palavras desse poeta cuja obra elevou a língua portuguesa a uma altura raramente igualada: “I not kow what to-morrow (sic) will bring!” E quem sabe? Mas de uma coisa temos certeza; enquanto houver inteligência e sensibilidade neste mundo, o amanhã sempre trará de volta, e com brilho preservado, a poesia de Fernando Pessoa e dos muitos fernandos pessoas que ele criou: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/ quantos filhos em vão rezaram!/ Quantas noivas  ficaram por casar/ Para que fosses nosso, ó mar!/ Valeu a pena?/ Tudo vale a pena/ se a alma não é pequena”.

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História de um filho amoroso

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Quem não se comove ouvindo esse drama do filho amoroso, mãe doente e hospital distante?

Me para na calçada e por um momento esquece os próprios sofrimentos, para perguntar pela minha família, minha saúde e meus negócios. Mas ele mesmo conclui que estou bem, que basta me olhar para saber que tanto de corpo quanto de mente sou um sujeito saudável e bem de vida. Considero a avaliação assaz generosa, para não dizer exagerada, mas nem por isso deixo de agradecer sinceramente. 

Quem não se comove ouvindo esse drama do filho amoroso, mãe doente e hospital distante?

Me para na calçada e por um momento esquece os próprios sofrimentos, para perguntar pela minha família, minha saúde e meus negócios. Mas ele mesmo conclui que estou bem, que basta me olhar para saber que tanto de corpo quanto de mente sou um sujeito saudável e bem de vida. Considero a avaliação assaz generosa, para não dizer exagerada, mas nem por isso deixo de agradecer sinceramente. 

A história que a seguir ele me conta é sem dúvida das mais comoventes. A mãe, com 91 anos, está no Rio para submeter-se à quinta cirurgia. Apesar da idade e do sofrimento, não se deixa abater. Está lúcida e só demonstra tristeza quando pergunta pelo filho, a quem não vê desde o início dessa nova internação, meses atrás. Ele, por sua vez, conserva a esperança de em breve trazê-la para casa e oferecer-lhe algum conforto, pouco, pois é homem pobre, mas também muito amor, sentimento que nunca deixou de pulsar em seu coração de filho único.

Quem não se comove ouvindo esse drama do filho amoroso, mãe doente e hospital distante? Eu teria me comovido, não fosse o fato de que ele já ter me parado na calçada há menos de um mês e contado a mesmíssima novela, palavra por palavra, gesto por gesto, suspiro por suspiro. Lamento que sua pouca memória o tenha levado a julgar-me um novo freguês, quando na verdade me abordou faz tão pouco tempo. Também é lamentável a falta de variação no seu repertório. Bem que ele poderia, por exemplo, ter me falado da necessidade de comprar remédios para o filho entrevado. Enfim, o homem me passa a imagem de um profissional pouco atento (não me reconhece) e pouco criativo (conta a mesma história). Apesar disso, não deixo de admirar nele certa capacidade de expressão facial, a voz que embarga e retorna de acordo com o andamento da narrativa. Não é nenhum Tony Ramos, mas dá bem para um papel secundário em novela das seis.

E gosto especialmente da sutileza com que ele introduz na fala o que realmente lhe interessa. Confessa então o seu desejo de ir ver a mãe, “Quem sabe pela última vez!”, o que até agora não pôde fazer porque ainda não conseguiu dinheiro suficiente para as passagens. E, num arranco de coragem, me pergunta se eu não poderia lhe emprestar déiz mirrés. Vê-se que não é um ganancioso: contenta-se com os mesmos déiz mirrés da vez anterior, apesar da inflação e do aumento das passagens!

Andasse eu com essa fortuna no bolso, talvez o tivesse socorrido. O problema é que com esse negócio de cartão de crédito, pix, caixas eletrônicos e outras modernidades, quem ainda anda com dinheiro no bolso? Eu não carrego nem déiz mirrés, nem dez contos, nem dez reais. Dez dólares, então, só em sonho!

Desse modo, pela segunda vez despeço o homem de mãos vazias, não sem algum remorso, sobretudo ao lembrar sua preocupação com minha família, minha saúde e meus negócios. E vou embora, desejando que desta vez ele tenha prestado um pouco mais de atenção na minha insignificante pessoa e não me aborde novamente, ou que ao menos varie e aperfeiçoe suas histórias, porque seria muito chato ser parado na rua pela terceira vez para ver o mesmo filme. Se ao menos fosse com Tony Ramos!

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Aos filhos, no Dia dos Pais

terça-feira, 08 de agosto de 2023

Finalmente conseguira superar os obstáculos que por tanto tempo haviam impedido aquele abraço tão longamente planejado. 

Finalmente conseguira superar os obstáculos que por tanto tempo haviam impedido aquele abraço tão longamente planejado. 

Começo confessando que a narrativa original não é minha. Ouso reproduzi-la porque acho que pode ser uma leitura interessante, sobretudo para os filhos no Dia dos Pais, e porque tenho certeza de que seu autor nunca virá a saber da apropriação indébita que fiz do que ele escreveu e que, se por milagre viesse a saber, não me processaria. Afinal, há tantos filmes, livros e músicas sobre Jesus e não há notícia de que ele tenha condenado alguém por assim se aproveitar de sua história. Além do mais, eu li isso há tanto tempo que nem me lembro onde. Vou contar como melhor puder, esperando não distorcer demais o texto original.

Um homem importante, vamos chamá-lo João, ainda jovem se afastara do pai, a quem chamaremos Antônio. Há muitos anos eles não se viam. Um dia, Antônio escreveu ao filho, manifestando o desejo de vê-lo e de reatar a convivência perdida. Convidava-o a visitá-lo, e sugeria que ele levasse a família consigo. João achou boa a ideia e combinou com a esposa que dentro de um mês iriam à cidade onde morava aquele homem tão próximo na genealogia, mas agora distante no espaço e sobretudo no tempo. Na data prevista, contudo, o time da escola onde a filha estudava tinha um jogo importante, e ela era líder de torcida. Não houve jeito senão adiar a viagem.

Nova visita foi planejada, para dois meses depois. Nesse meio tempo, João enviou algum dinheiro para Antônio, que retribuiu mandando pequenos presentes para os netos. Dessa vez a visita estava certa, tudo cuidadosamente previsto. Mas eis que, quando se aproximava o dia da partida, o patrão precisou ausentar-se do trabalho por algum tempo, e João assumiu temporariamente o lugar do chefe na direção da firma.  Assim, pela segunda vez, a viagem não pôde ser realizada.

Também a mulher queria que a visita se concretizasse e escreveu ao sogro, confirmando o reencontro, agora com menos de um mês de espera e enviando-lhe um delicado presente. Ansioso e emocionado, Antônio ficou aguardando a família. Mas antes que ela aparecesse, um ataque cardíaco o atingiu. Informado pelo hospital, João falou por telefone com o pai. "Eu estou bem, filho. Não se apresse". E João não se apressou.

Chegou o Natal, João novamente enviou dinheiro para “o Velho", e recebeu em troca presentes para todos da família. A nora ganhou uma joia que havia pertencido à falecida sogra. Novamente pai e filho se falaram por telefone, e combinaram se reunir em breve. Mas sempre algum acontecimento inesperado e importante para João e sua família impedia que o encontro se realizasse: uma cirurgia da esposa, a celebração do Dia das Mães, o frio excessivo.

Os meses foram passando e sempre os imprevistos acontecendo. Até que um dia João realizou a viagem, embora sozinho e às pressas. Finalmente conseguira superar os obstáculos que por tanto tempo haviam impedido aquele abraço tão longamente planejado. 

E verdadeiramente tanto se apressou que chegou ainda a tempo de assistir ao sepultamento do pai.

"Por que eu não vim antes?", se perguntava chorando. Mas ele, melhor do que ninguém, sabia a resposta.

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Qual a sua graça?

terça-feira, 25 de julho de 2023

Em 1984, o Instituto Félix Pacheco registrava a existência de quatro Placidina Maria de Jesus e duas Minervina de Silva Lima

Em 1984, o Instituto Félix Pacheco registrava a existência de quatro Placidina Maria de Jesus e duas Minervina de Silva Lima

Eu leio tudo que me cai nas mãos, até bula de remédio, que é uma das coisas mais perigosas que um ser humano pode ler (desconfio que bula de remédio mata “mais que bala de revórver,” como diria Adoniran Barbosa). Tenho, um predecessor ilustre: Dom Quixote de La Mancha, que, às tantas de sua sábia loucura, declarou: “Eu sou amigo de ler até os papéis esfarrapados da rua”. Foi levado por esse antigo vício que li “A graça de cada um - nomes e sobrenomes do mundo inteiro”, de Alberto Stoeckicht, editado em 1984. Não que esse tenha literalmente caído em minhas mãos, ou que eu o tenha encontrado esfarrapado na rua. Na verdade, apanhei-o numa dessas bancas em que pessoas deixam livros para serem levados por quem se interessar.  Antigamente, quando se queria saber o nome de alguém, perguntava-se: “Qual a sua graça?” A pergunta saiu de moda, mas a graça do trocadilho do título despertou meu interesse.

Então, é com base no livro de Stoeckicht que vou levar essa conversa adiante. Ele explica, por exemplo, que originariamente cada pessoa tinha só um nome, se tanto. João era João e estava resolvido, ninguém o confundia com outra pessoa. À medida que a sociedade foi ficando mais complexa, maiores os agrupamentos humanos, começou a existir mais de um João no mesmo local. Surgiu a necessidade de distinguir um João do outro. E aí vieram os sobrenomes, geralmente pelo acréscimo do nome do pai, ou de uma partícula que significasse “filho de”. É o caso de SON inglês (Dickson, Jackson), de EZ espanhol (Perez, Ramirez) e do ES português (Fernandes, Rodrigues).

Mas isso ainda não resolvia completamente a questão. Nos Estados Unidos, por exemplo, é dobrar uma esquina e dar de cara com Smith, Williams, Johnson, Taylor ou Miller. Para distinguir um John Taylor de outro, surgiu o nome do meio. João Luís Oliveira é um, João Antônio Oliveira é outro. Mas a homonímia persiste. Segundo Stoeckicht, mesmo nomes excêntricos às vezes se repetem. Em 1984, o Instituto Félix Pacheco registrava a existência de quatro Placidina Maria de Jesus e duas Minervina de Silva Lima. O então ministro Hélio Beltrão fez um levantamento e concluiu que, entre os dez nomes mais comuns entre nós, nove terminavam em Silva, o que o levou a concluir que nosso país deveria chamar-se Brasil da Silva.

E a homonímia continuou causando problemas. Tem até casos de pessoas enterradas por engano, como aconteceu com dois Carlos Alberto Ferreira, que deram entrada no IML do Rio em dias seguidos. Um era branco e outro, preto; um morto por afogamento; outro, por choque elétrico; um tinha 19 anos e o outro, 13. O branco já tinha sido reconhecido pela mãe (que depois se justificou: “Me disseram que uma pessoa que morre carbonizada fica preta”). Nada disso impediu que um fosse levado no lugar do outro.

O livro fala da origem e significação de nomes em diversas línguas, de nomes que se originam de profissões (Ferreira), de animais (Coelho), de pontos geográficos (Lombardo), de pessoas famosas do passado (Washington), de referências religiosas (dos Anjos). Não faltam excentricidades, como o do pai que insistiu em batizar o filho como Caule, explicando que essa tinha sido a melhor opção entre os outros nomes que lhe haviam ocorrido, ou seja: Jungo, Prisma e U Surian. Também não faltam coisas que são quase um xingamento (Abrilina Caçapava), ou são puramente escatológicos: (Constipation, Merdine, Urine). Sem falar nas invencionices brasileiras (Outhydes, Onovercina).

E mais não direi, porque o livro tem 125 páginas, eu pouco mais de uma lauda. Por outro lado, não convém abusar da paciência do leitor, que talvez para conseguir chegar até aqui tenha sido obrigado a xingar todos os nomes feios que conhece. Aí não tem mais graça!

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Histórias dos outros

terça-feira, 11 de julho de 2023

“Pior do que isso eu não sei fazer!”

“Pior do que isso eu não sei fazer!”

Uma é a do escritor Otto Lara Rezende. Estava ele datilografando sua matéria para o jornal, quando um contínuo entrou na sala. Ao ver que Otto não estava copiando, mas tirando as palavras da própria cabeça, o rapaz exclamou admirado: “O senhor tem redação própria?!” Tanto Otto era capaz de redação própria que entre seus admiradores estava Nélson Rodrigues, que até o transformava em título ou personagem de suas obras, como em “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária”. Às vezes Otto ficava tão chateado com as “homenagens” que confessou ter vacilado entre o homicídio e a indiferença.  “Mas como o homicídio é punido pelo código penal, optei pela indiferença”, declarou. Apesar desses desentendimentos, foram amigos e mútuos admiradores até o fim da vida.

A outra é contada por Álvaro Ottoni de Menezes, autor de sucessos da literatura infantojuvenil, como “A árvore que fugiu do quintal”. Álvaro era o redator em algum órgão do governo, no qual trabalhava também Vicente, flamenguista doente e semianalfabeto por nascimento e formação, para quem, falar “a gente somos” era o fino do português. Pela cara com que Vicente chegava na repartição, era possível saber o resultado do jogo do Flamengo no dia anterior.

Após um domingo em que o rubro-negro goleou o adversário, assim que Vicente chegou com a bandeja de café, Álvaro, querendo fazer humor às custas do colega, perguntou: “E aí, Vicente, o pessoal gostaram do jogo?” Vicente fez a maior cara de espanto e retrucou: “Me admiro o senhor, um homem de estudo, que tem redação própria, que escreve documentos, falar o “o pessoal gostaram, professor!” Álvaro quase caiu da cadeira, ao ver a desastrosa consequência de sua brincadeira. Muito envergonhado, já ia pedir desculpas, quando Vicente acrescentou: “O pessoal não gostaram, professor. O pessoal adoraram!”

O terceiro caso atribui-se a Antônio Maria, cronista e compositor, autor entre outras belezas de “Manhã de Carnaval”. Encarregado de escrever uma notícia para o jornal, entregou seu texto, que foi recusado sobre o argumento de que era muito sofisticado para o leitor comum. Pediram-lhe que simplificasse a redação. Antônio Maria fez uma segunda tentativa, mais uma vez considerada muito difícil. Ele então voltou com uma terceira versão, jogou-a sobre a mesa e declarou: “Pior do que isso eu não sei fazer!”

Ter redação própria, eis uma raridade, porque não se trata apenas de não copiar, mas de evitar escrever o que já tenha sido escrito milhões de vezes, ainda que por outras palavras. Li certa vez a diferença entre texto com autor e sem leitor e, ao contrário, texto com leitor e sem autor.

O primeiro é aquele que, por sua originalidade, novidade e às vezes complexidade, exige do leitor algum esforço de compreensão e aí, preguiçosos que somos, preferimos não ler. Ou seja: saiu de uma cabeça pensante, mas pouca gente se dispõe a pensar para entendê-lo. O segundo, ao contrário, não passa de um apanhado de ideias que estão soltas no ar, que de alguma forma todo mundo já leu ou ouviu, e que o escritor alinhava sem gastar muita massa cinzenta, e que por isso mesmo pouco ou nenhum esforço mental exige para ser assimilado. Assim se explica o porquê de muitas obras de grande valor serem evitadas, e o sucesso de tanto romance medíocre, de tanta poesia de má qualidade, de tanta música vulgar.

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Sem desperdício

terça-feira, 27 de junho de 2023

Cada cômodo é um brechó enlouquecido

Cada cômodo é um brechó enlouquecido

Outro dia li que a prefeitura do Rio recebe centenas de reclamações contra guardadores. A princípio pensei que fossem contra os chamados guardadores de carros, que não guardam nada, mas são assim chamados e acatados. Começaram conhecidos como flanelinhas, por causa do pedaço de pano que usavam para esfregar os vidros dos carros em troca de uma gorjeta, mais ou menos espontânea. Aos poucos foram se profissionalizando, e hoje melhor seria que os intitulássemos “os donos do pedaço”. Privatizaram as ruas, cada trecho tem seu titular que, com ares de quem comanda o tráfego e a cidade, indica onde o motorista pode passar ou parar. Mostra a guia pintada de amarelo e faz sinal para que o carro seja estacionado ali mesmo, com a explicação mais suscinta e definitiva possível: o polegar levantado, como quem diz: “Deixa comigo, aqui mando eu”.

Mas não era de guardadores de carros que a notícia falava. As reclamações ─ certamente de vizinhos ─ são contra pessoas que guardam em casa tudo quanto podem, todo tipo de velharia, porcaria e inutilidade. Já tem inclusive diaristas especializadas no que denominam “limpeza do bem”, ou coisa parecida. São experts em jogar lixo fora, às vezes enfrentando a cara amarrada, quando não as lágrimas da dona da casa. Parênteses para explicar que digo “donas da casa”, e não “donos”, porque os imóveis a serem desentupidos geralmente são capitaneados por mulheres que, como se sabe, desde Adão e Eva são mais afetivas e mais apegadas às coisas do lar.

Tem de tudo para todos os gostos. Cada cômodo é um brechó enlouquecido. Panelas sem cabo e sem tampa (e eventualmente sem fundo); pé esquerdo de chinelo sem o seu companheiro de andanças; cadeiras sem assento; livros com acentos usados em 1940; vidros de remédios vazios, uma boneca sem cabeça e outra tão suja que é quase impossível descobrir onde ficam os braços e onde ficam os pés. Sem falar na foto de Carlos Gardel, que ninguém sabe como foi parar ali.

Numa das casas visitadas a “limpadora do bem” encontrou dezenas de caixas de papelão, de todos os tamanhos e formatos. “Eu tive que almoçar no corredor, porque as caixas ocupavam as mesas, cadeiras e sofás. Até para usar o vaso sanitário era preciso antes tirar algumas caixas do caminho”.  A explicação da moradora, mutatis mutandis, foi a mesma de todos (bem, a tal esquesitice não é exclusividade feminina) os guardadores. Acham que em algum momento futuro vão necessitar daquilo que agora é tido como inútil. Uma delas confessou que diversas vezes enfiou tudo em sacos para pôr no lixo, mas depois ficou com medo de precisar de alguma coisa do que ia jogar fora.  Desfez o saco e de novo entulhou armários e gavetas, embaixo da cama e em cima do guarda-roupas, para alegria das baratas e desespero do marido e dos filhos.

A prefeitura carioca garante que oferece, além da remoção do entulho, assistência psicológica aos guardadores, para que, assim orientados, parem de guardar. Ainda se guardassem dinheiro! Mas, mesmo que tivessem dinheiro, onde achariam espaço em casa para guardá-lo?

É um distúrbio psicológico, sem dúvida. Mas também nós, que não guardamos panelas furadas, se não nos cuidarmos, aos poucos vamos estocando velhos ressentimentos, mágoas injustificadas, ideias pregadas na mente e despregadas da realidade, conceitos e preconceitos do tempo do onça, medos que vieram lá da infância e que nunca conseguimos jogar na lixeira do esquecimento. Felizmente existem faxineiras do bem inclusive para esses casos, e pode ser que uma delas esteja bem ao nosso lado. Diz o ditado que cabeça vazia é oficina do diabo. Pior ainda é a cabeça cheia de porcarias: aí mesmo é que o diabo deita e rola.

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Ganhar para não fazer nada

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Morimoto adianta que não faz sexo, não carrega peso, não discute

Estava escrito no mural: “O trabalho enobrece o homem”. Alguém, mais realista, ou mais pessimista, corrigiu por cima: “emagrece”. São duas maneiras de se encarar a questão, cada uma delas deve ter algum fundamento, que pouca coisa neste mundo ─ provavelmente nada neste mundo ─ é absolutamente preto ou branco (basta olhar a cara dos brasileiros!).

Morimoto adianta que não faz sexo, não carrega peso, não discute

Estava escrito no mural: “O trabalho enobrece o homem”. Alguém, mais realista, ou mais pessimista, corrigiu por cima: “emagrece”. São duas maneiras de se encarar a questão, cada uma delas deve ter algum fundamento, que pouca coisa neste mundo ─ provavelmente nada neste mundo ─ é absolutamente preto ou branco (basta olhar a cara dos brasileiros!).

Não sei se o leitor acha que o trabalho enobrece ou emagrece. No geral, ele enriquece alguns poucos e deixa a grande maioria a contar os centavos para pagar as contas no fim do mês. Muitos são os que conseguem apenas (se tanto!) pagar a conta (no singular), porque não é fácil acertar tudo de uma tacada só: numa vez paga-se a luz, na outra paga-se a água, na outra compra-se o gás, e assim vai-se levando a vida, até que chegue a morte ou coisa parecida, como dizia o cantor Belchior.

Há trabalhos que, além de pouco reconhecidos, são pesados e mal pagos. Cansa! Quem não gostaria de encontrar uma moleza, um desses empregos em que, em câmaras e palácios, servidores do povo, de terno e gravata, tribunas e assessores e cafezinhos, definem quando e quanto trabalharão, quando e quanto receberão pelo trabalho que fizerem ou mesmo que não fizerem?

Mas em matéria de ganhar dinheiro sem fazer força, ninguém supera o cidadão japonês Shoji Morimoto. Ele mesmo define sua ocupação profissional como “comer, beber e dar respostas simples”. Qual é a mágica que esse sábio nipônico faz para viver bem, sustentar mulher e filho, sem fazer nada? Segundo a Agência Reuters de Notícias, Morimoto se oferece para acompanhar. E daí? Não tem daí nenhum. Sua função é apenas acompanhar pessoas que se disponham a lhe pagar R$ 367,00 para tê-lo ao lado delas por um dia.

Morimoto adianta que não faz sexo, não carrega peso, não discute. Apenas acompanha. Não é muito, mas não lhe faltam fregueses, e ele costuma fazer ao menos dois acompanhamentos por dia. Pode ser que essa profissão seja uma particularidade de países como o Japão, que, tendo gente demais, acaba fazendo com que muitos vivam na solidão. E aí, achar alguém que aceite andar conosco, sem perguntar aonde vamos ou o que vamos fazer, sem dar opinião contra ou a favor de qualquer coisa, é uma bênção dos céus. Quer você chore, quer você dance, quer simplesmente você sente num banco de praça e fique jogando milho aos pombos, o acompanhante está ao seu lado, solidário e inútil.

Como sabe o douto leitor, trabalho vem do latim tripalium, e designava um instrumento de três pontas usado para imobilizar animais a serem ferrados. Como os escravos eram considerados pouco mais ou pouco menos do que os animais, para castigá-los ou fazê-los trabalhar, passou-se a usar o tripalium. Daí que tripalium e trabalho logo tornaram-se sinônimos. É mais ou menos isso, talvez eu tenha distorcido um pouco, não me levem a mal nem me levem a sério.

Um filósofo concluiu que “todo trabalho supõe tendência para um fim e esforço”. Shoji Morimoto descobriu um meio de atingir um fim sem fazer esforço. Realmente, temos que reconhecer a superior inteligência nipônica, que até sem fazer nada consegue ganhar dinheiro.

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Delícias da culinária internacional

terça-feira, 30 de maio de 2023

No Laos, o mais apreciado é o rato à milanesa

No Laos, o mais apreciado é o rato à milanesa

Tem gosto pra tudo neste mundo, inclusive em se tratando de alimentação. Sem irmos muito longe, aqui mesmo no Brasil tem uns pratos que devem revirar o estômago dos estrangeiros, só de ouvir o nome. Imagine o rei da Inglaterra indo almoçar no Itamaraty e ser informado de que o prato do dia é a nossa famosa buchada, que se constitui das seguintes delícias: rins, fígado e vísceras, tudo cozido em uma bolsa feita com o estômago de bode, que, aliás, é o fornecedor involuntário de todos os ingredientes. É de fazer Sua Majestade renunciar ao trono e, no entanto, no Nordeste do Brasil é considerado um manjar digno dos reis e dos deuses.

Imaginemos agora que o chef de alguns dos restaurantes de nossa cidade esteja querendo oferecer aos seus clientes algumas novidades culinárias. A fim de poupar-lhe o esforço de viajar a terras longínquas para conhecer as delícias locais, descrevo aqui algumas das iguarias mais apreciadas fora do Brasil, segundo a internet.

Comecemos com um prato muito popular na Escócia. Lá eles cozinham uma bolota feita com o pulmão, o estômago, o fígado e o coração de uma inocente ovelhinha. Servem com nabo e purê de batata. O que salva é que o caldo é obtido com a adição de uísque. Os escoceses lambem os beiços. Já a Itália, para quem pensa que lá como cá tudo acaba em pizza, tem um delicioso queijo cujo processo de fabricação é, para dizer o mínimo, originalíssimo. O dito queijo é recheado com larvas, as quais serenamente se hospedam nos buracos deixados no produto justamente para que elas ali se acomodem. Então, quando as moscas nascem, o queijo está no ponto para ser consumido. Uma delícia! (Ou um nojo, as opiniões variam).

Se o nosso chef quiser copiar uma receita do Camboja, poderá fazer um prato que certamente encherá seu estabelecimento de fregueses e triplicará a venda de cerveja. Trata-se um petisco feito com a saborosa carne de aranha, dividindo-se a preferência dos gourmets entre as tarântulas e as caranguejeiras. Por prudência, retiram-se os pelos das bichinhas, que é onde o veneno se concentra. No mais, é só acrescentar sal, açúcar, pimenta e alho. Umas cachacinhas antes e outras depois devem ir muito bem.

Para quem aprecia uma boa carne, o Camboja oferece também o churrasco de crocodilo. Só que lá não tem esse negócio de perder tempo com grelha e carvão. A posta é colocada na mesa ainda crua, e o comensal é que vai passando-a numa chapa quente até atingir o ponto que lhe agrade. Talvez seja uma forma que eles acharam de se vingar da falta de cerimônia com que os crocodilos também devoram carne humana.

No Laos, o mais apreciado é o rato à milanesa. Se der bobeira, nem Mickey Mouse escapa. Carne muito versátil, pode ser servida cozida ou assada, e o bicho pode vir inteiro ou em pedaços. Para que nem o rabo se perca, usam-se palitinhos para pescar as fatias. E pensar que em Nova York o prefeito nomeou uma comissária, com salário de 64 mil dólares anuais, para comandar uma equipe de caça às ratazanas (um desperdício de dinheiro e de comida!). Milhões delas habitam os subterrâneos da cidade, mas frequentemente sobem à superfície para ver como andam as coisas nas casas, restaurantes, hospitais, lugares onde, aliás, costumam ser muito mal recebidas.  

Especialmente apreciado nas Filipinas é o ovo de pato. Ora, dirá você, isso até eu como. A diferença é que lá come-se o ovo fecundado, ou seja, com o embrião do patinho ainda lá dentro. É uma maneira de consumir carne, clara e gema de uma só garfada. Também não faltam lugares onde os insetos constituem umas das refeições prediletas. Fritos, assados, bem temperadinhos, não há quem resista a um bom prato de besouro, abelha, gafanhoto (João Batista era fã), cupins, moscas, cigarras e – para os paladares mais refinados – baratas!

Creio que já dei bastantes sugestões. Caso sua esposa pretenda arriscar uma dessas delícias para o almoço do próximo domingo, meu conselho, amigo, é que você vá almoçar no pé sujo mais próximo.

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Teófilo, Maria, Conceição

terça-feira, 16 de maio de 2023

Melhor seria se houvesse uma lei proibindo os filhos de escreverem sobre suas mães

Melhor seria se houvesse uma lei proibindo os filhos de escreverem sobre suas mães

Escrevo em jornais há tantos anos que não sei como não conheci Gutenberg pessoalmente. Deve ter sido por pouco. Nesse tempo todo, nem que seja por acaso ou por descuido, há de ter acontecido que eu tenha escrito alguma coisa que se aproveite. Mas também, por ignorância, desinformação ou incompetência, eu certamente disse muitas palavras, frases, textos inteiros de que os leitores mereciam ter sido poupados (e assim me admirariam não pelo que escrevi, mas pelo que deixei de escrever). Mas também entre escritores ─ mesmo os grandes e famosos ─ houve quem abominasse obras que tinha posto no mundo. Veja o que disseram Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão sobre “Os Mistérios da Estrada de Sintra”, que haviam perpetrado a quatro mãos: “O que pensamos hoje do romance que escrevemos há quatorze anos? ─ louvores a Deus! ─ que ele é execrável, e nenhum de nós, quer como romancista, quer como crítico, deseja ao seu pior inimigo um livro igual”. E assim justificaram a sua publicação: “Consentimo-lo porque entendemos que nenhum trabalhador deve envergonhar-se do seu trabalho”.

Ainda bem que os leitores em geral têm a gentileza de ficar calados quando não gostam, e de se manifestarem quando acontece o contrário.  Assim, de vez em quando recebo uma mensagem, um comentário, às vezes até um elogio. Lembro, por exemplo, de uma senhora que me parou na rua para dizer que tinha se emocionado até as lágrimas com uma de minhas crônicas. Eram lembranças de meu avô e logo ficou claro para mim que o mérito era dele, e não meu. Ela o havia conhecido e estimado e, ao ler sobre ele, reviveu um passado em que, jovem, fora vizinha de Seu Teófilo Chardelli, um senhor trabalhador, sério e educado. Mas eu não deixei de me considerar ao menos um pouco merecedor daquelas lágrimas, pois foram minhas palavras que colocaram meu avô novamente diante dela, tantos anos depois de ele ter ido para o céu, onde também, com toda certeza, conquistou muitos admiradores, que não era sem razão que ele se chamava Teófilo: amigo de Deus.

Falar de meu avô desperta em mim a vontade de falar também de duas mulheres que habitaram minha vida e até hoje habitam minha memória e meu coração. Minha avó, Maria Maturo Chardelli, nascera na Itália, se criara no Brasil e guardava em si o que de melhor podia haver nessa mistura de temperamentos ítalo-brasileiros. Tanto eu quanto meus irmãos e irmãs, quando pequenos, vivíamos mais na casa dela do que na nossa. E mesmo depois de adulto continuei indo lá com frequência, era um dos meus programas habituais das tardes de sábado. Ela me conhecia desde o dia do meu nascimento, portanto, desde antes que eu mesmo me conhecesse. No entanto, ainda que me tivesse visto há poucos dias, me recebia como se há anos não pusesse os olhos em mim.

A outra, Dona Conceição Chardelli Canto. Até evito falar ou escrever sobre ela, porque mesmo que escrevesse outra Bíblia não poderia dar sequer uma ideia da mãe que ela foi, a um só tempo tão humilde e tão dedicada. Era o coração da família. Coração que se sacrificou inteiramente pelos filhos e nunca achou que tinha feito qualquer sacrifício por eles. Não é possível voltar ao passado, a vida não tem segunda via. Mas eu, se pudesse voltar, era só para fazer de novo alguma coisa com que eu a tenha deixado feliz e pedir perdão a ela pelas muitas coisas que fiz ou que deixei de fazer e que a magoaram.

Mas o que eu acho mesmo é que ninguém devia escrever sobre a própria mãe, porque, por melhor que o faça, sempre vai ficar devendo muito, vai ficar sempre muito aquém do que queria e devia dizer. Melhor seria se houvesse uma lei proibindo os filhos de escreverem sobre suas mães, porque, eles, por mais que as elogiem, as reduzem.

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