Blog de roberiocanto_18846

Médicos, receitas e remédios

terça-feira, 02 de novembro de 2021

Apenas entrego a receita ao balconista que, de pronto, chama a farmacêutica, que, de pronto, convoca o mais antigo funcionário da casa

Apenas entrego a receita ao balconista que, de pronto, chama a farmacêutica, que, de pronto, convoca o mais antigo funcionário da casa

Não sou eu que vou falar mal dos médicos. Primeiro, porque os tenho em alta conta, especialmente os que tratam da minha pouca saúde. Não digo pouca porque ela me falte, mas porque saúde, como felicidade, nunca é demais. Alguns dirão que dinheiro também entra nessa conta, e mesmo o ingênuo Sancho Pança, fiel escudeiro do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, chegou a dizer que “Com bom cimento se pode fazer um bom edifício, e o melhor cimento do mundo é o dinheiro”. Pode ser, porém creio que mais vale possuir um centavo de saúde e outro de felicidade do que, sem elas, ser Bill Gates, Jeff Bezos e Elon Musk juntos, pra falar só dos que estão no topo da lista dos maiores ricaços do mundo. Por outro lado, o próprio Sancho vai dizer, mais adiante, que “Aos médicos sábios, prudentes, discretos, esses meto-os no coração e honro-os como pessoas divinas”.

Também não falo mal dos médicos porque é uma gente da qual se pode precisar a qualquer momento, em qualquer esquina da vida. Você vai andando lépido e fagueiro e de repente tem um piripaque e o mundo desaparece da sua frente. O que você mais quer ver nesse momento da vida (ou da morte) do que um bom e atencioso médico? Então é muito sensato estarmos sempre de bem com eles, para que, se nos reconhecerem antes do atendimento, eles não tenham que repetir mil vezes o juramento de Hipócrates. “Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Hígia e Panaceas...” e por aí vai, sem esquecer aquele pedacinho que diz: “A ninguém darei por comprazer remédio mortal nem um conselho que o induza a perda”. Se não for bem assim, espero que, tendo em vista que a citação é bem intencionada, ainda que imperfeita, nenhuma sociedade médica me processe,

Estando fartamente provado que não estou aqui para falar mal dos médicos, digo que gostaria de entender por que, em pleno século XXI, tantos deles continuam a escrever com letra analfabética, horrorosa, ilegível e pior de tudo, perigosamente mortal. Tenho pensado nisso desde que uma senhora, supondo que por eu ser professor de português hei de entender de hieróglifos e coisas semelhantes, mandou me pedir para decifrar o que estava rabiscado numa receita que o médico lhe entregou. Olho a folha assustado, viro-a de cabeça para baixo, tento a leitura vertical e a transversal e o mistério não se revela para mim.

Reúno alguns amigos, e todos se confessam incompetentes diante de tamanho desafio. Claro, todos têm um palpite. “Acho que é Toral”, diz um. Mas outro observa que, “na minha opinião”, não tem nem T nem R nessa palavra. “Deve ser damil”, opina o terceiro, “Só se for Dramin”, que esse existe, garante um mais entendido no assunto. E por aí vai: “Latam” (“Mas isso é nome de companhia aérea”), “Neurol” (“Acho que a pessoa não tem problema nervoso, não”), Brodemediol (“Mas na receita só tem cinco letras!”). Até que um engraçadinho aconselha: “Vai na farmácia e pergunta se tem Babacol. Se tiver, é esse mesmo”.

Bem, lá vou eu na farmácia e não pergunto por Babacol, apenas entrego a receita ao balconista que, de pronto, chama a farmacêutica, que, de pronto, convoca o mais antigo funcionário da casa. Debruçados sobre o balcão, também eles aproximam e afastam a receita dos olhos, viram e reviram a folha em diversas posições. Somente sobre uma coisa todos têm certeza: os riscos que antecedem à palavra (se é que aquilo é uma palavra) não é mais do que uns rabiscos desses que a gente faz quando a esferográfica custa a escrever. Sem chegar a nenhuma conclusão e com receio de matar a cliente com o remédio errado, recomendam que se procure o médico, peça para ele ditar o nome da droga e anotar o que ele disser (não deixe que ele escreva!). Feito isso, finalmente se chegou ao nome do medicamento, algo assim como Niuron.

Ah, os riscos acima citado significavam “duas caixas”.

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De peito aberto

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

 

Nem vou lembrar agora a palavra pudor, que já é quase um arcaísmo

 

 

Nem vou lembrar agora a palavra pudor, que já é quase um arcaísmo

 

O nordestino não é mais o mesmo e, pelo visto, as nordestinas menos ainda.    Eis a conclusão a que cheguei depois de ter sabido pela imprensa que em Natal algumas beldades locais desfilaram pelas ruas em carro aberto, despidas da cintura para cima. Na verdade, da cintura para baixo também era grande a escassez de tecido, não havendo mais do que uns modestos pedaços de pano, tão estreitos que só mesmo olhando com muita atenção (o que eu evitei fazer) se poderia dizer de que cor eles eram. A princípio pensei que a causa da nudez pública fosse o calor potiguar, e que as moças estivessem apenas querendo pegar um arzinho para refrescar.

Mas, indo um pouco além do lide, verifiquei que o i(nu)sitado desfile teve como objetivo defender o direito de as mulheres andarem de peito aberto, o que, alegam elas, os homens fazem há milênios sem que ninguém veja nada demais nisso.  Sem querer falar dos aspectos morais, sociológicos, políticos ou quaisquer outros que o tema possa suscitar, limito-me a olhar o assunto pelo lado estético. Nem vou lembrar agora a palavra pudor, que já é quase um arcaísmo, sobrevivendo a duras penas num canto esquecido dos dicionários. Diferenças de volume, formato e finalidade explicam por que, se Juliana Paes e o marido saíssem pela praia de Ipanema des-vestidos como recomendam as moças natalenses, ele poderia estar não apenas pelado, mas também carregando nas costas um tubarão recém-pescado que ninguém notaria sua presença.

 Mas creio que quem mais irá combater esse movimento são as próprias mulheres porque, convenhamos, não são todas que possuem encantos suficientes para assim se exibirem. Vinícius de Moraes diria que, para aderir à nova moda, beleza é fundamental. Imagine então como sofreriam as que, por não possuírem os requisitos exigidos pela novidade, precisassem manter oculto o que as outras orgulhosamente andassem exibindo. Seria o reconhecimento da própria feiura. Ora, de todas as desgraças que neste mundo podem se abater sobre qualquer mulher, sentir-se feia é a mais dolorosa. Se bem que, pensando melhor, talvez nem mesmo as mais belas entrem nessa de sair pelas ruas sem lenço e sem documento. Porque, embora digam que o que é bonito merece ser mostrado, certas belezas tanto mais encantam quanto mais ocultas permanecem.

E foi o comportamento de nossas conterrâneas do Nordeste que me fez lembrar da história de Lady Godiva. Essa senhora, que viveu na Inglaterra séculos antes de Cristo, até hoje é famosa por ter cavalgado nua pelas ruas de sua cidade. Porém não foi para exibir sua beleza que ela fez esse passeio equestre. Na verdade, seu motivo era bem mais nobre do que o das citadas moças brasileiras.

Diz a lenda que seu marido era cobrador de impostos, o que ele fazia com voracidade escandalosa. Se bem que, comparado com seus colegas brasileiros, qualquer cobrador de impostos, por mais voraz que seja, não passa de um principiante. Pois bem, Godiva tinha um coração de ouro e sofria com as privações que o povo passava para pagar tanto imposto. Daí que ela pediu ao marido que diminuísse a cobrança. Ele respondeu — sem pensar na besteira que estava fazendo — que só atenderia o pedido se ela desfilasse pelas ruas vestida apenas por seus belos cabelos. Pra quê?! Não tardou muito e lá estava ela, ao natural, como tinha vindo ao mundo, atravessando a cidade de lado a lado.

Dizem que os moradores fizeram um acordo e prometeram que ninguém olharia para aquela dama encantadora, que os defendia de forma tão generosa. Tenho minhas dúvidas de que todos tenham cumprido a promessa, mas o que importa é que os impostos foram realmente diminuídos. Oh, se a esposa de algum dos nossos governantes se dispusesse a se sacrificar assim pelo povo brasileiro! A gente nem ia exigir que ela fosse bonita. E também jurava que não ia olhar. Talvez não cumprisse, mas como é que os políticos iam exigir isso de nós, se também eles tão raramente cumprem o que prometem?

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A casa de meus avós

quarta-feira, 06 de outubro de 2021

Ao vê-la chorando, o pássaro faz uma curva no ar e volta para dentro da gaiola

Ao vê-la chorando, o pássaro faz uma curva no ar e volta para dentro da gaiola

Meus avós maternos moravam na Vila Nova, nos fundos de um estreito corredor que ia dar no morro do Colégio da Fundação Getúlio Vargas. Eu nasci ali pertinho, em frente ao que era então a estação de cargas da Leopoldina Railway e hoje é o batalhão da PM. Nem o trem me levou, nem a polícia me prendeu. Simplesmente fui ficando, mudei de bairro duas ou três vezes e agora só mudo de onde estou para dar cumprimento ao que escrevi num modesto poeminha que começava assim: Quando eu morrer/ quero ficar/ se a morte tem algum nexo, / ali atrás da prefeitura, / na altura.

Pois foi no pequeno espaço do quintal da casa de vovô e vovó (na verdade, “casa da vovó”, que desde cedo a gente aprende quem é que de fato manda no pedaço) que eu vivi aqueles anos que Casimiro de Abreu chamou da “aurora da minha vida”. Se ali não havia as bananeiras e os laranjais de que fala o poeta, havia para compensar uma horta e alguns pés de café. Na época própria, os grãos eram esparramados no chão de terra batida e ficavam à disposição do sol, para que este, quando fosse servido, os secasse. E, claro, havia um pilão e o cheiro de café que subia pelo ar e continua subindo pelas paredes da memória, como diria Belchior.

Mas o principal era o barranco. Sim, havia um barranco, um altíssimo barranco, pelo qual se subia através de meia dúzia de degraus cavados na terra. Grande era a emoção de percorrer aquela densa Amazônia de esquálidos arbustos, um pé de goiaba e outro de pitanga. Santas e boas horas passamos ali, eu e meu irmão, tentando pegar passarinhos que nunca nos deram confiança, tentando entender o milagre da física que permitia às formigas carregarem uma folha com o dobro do tamanho e do peso delas. E pensando muito seriamente no futuro: quando o bolo de fubá ficaria pronto, quando vovô nos daria a bala que havia prometido, quando... quando... quando...

E foi na casa dos meus avós que pela primeira vez percebi o quanto pode a beleza feminina, o poder da beleza feminina. Antes de contar esse caso, conto outro, que me ocorreu agora. Eu estudei um ano de espanhol. Claramente havia um buraco no horário e para fechá-lo o colégio lançou mão do primeiro professor que achou disponível, que era de espanhol, como podia ser de mandarim ou de física quântica. Nada e menos ainda foi o que me ficou dessas aulas, mas sei que certa vez lemos um soneto, do qual ainda me lembro o assunto e o verso final. No poema, um pássaro está preso e sua dona, que o adora, fica com pena dele e abre a porta da gaiola. Mas, ao sentir que perdia o bichinho amado, põe-se a chorar. Ao vê-la chorando, o pássaro faz uma curva no ar e volta para dentro da gaiola. E o poeta exclama no último verso: “O quanto pode uma mulher que chora!”

Mas deixemos o Colégio Cêfel e voltemos à casa dos meus avós. Meu irmão sofreu um acidente e precisava de atendimento médico domiciliar, o qual nunca lhe faltou, porque ele contava com a sorte de ter uma tia bonita. Por causa dela, diariamente o médico ia visitar seu paciente predileto e aproveitava para uma demorada conversa com a tia do doentinho. Não quero cometer o pecado de achar que ele alimentava segundas ou terceiras intenções. Mas, se alguma coisa valem as impressões de uma criança, é certo que ele vivia encantado com aquela moça bonita, que tão cordialmente o recebia e que transformava um quarto de sofrimentos num jardim florido e perfumado.

... Quando o futuro chegou, obrigou-nos a sair da casa de meus avós e, primeiro ele, depois ela, também os dois saíram daquela casa e foram morar com os anjos, prêmio que eles tinham conquistado por antecedência, ainda aqui na Terra, aturando os netos com santa paciência. Também meu irmão já se libertou das grades deste mundo e voou para o céu, onde com certeza a toda hora agradece a Deus por ter lhe dado uma tia bonita e um médico que sabia apreciar a beleza feminina.

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Cabeças cortadas

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Nunca mais namorou, nem às segundas nem em qualquer dos outros miseráveis dias da semana

É muito chato esse negócio de dar más notícias. Não é à toa que os gregos cortavam a cabeça do soldado que retornasse da batalha falando em derrota. No mundo moderno, nem sempre as cabeças são literalmente cortadas, mas é difícil não antipatizar com o primeiro sujeito que vem nos dizer que estamos ficando careca, como se fosse ele o causador universal da queda de cabelos.

Nunca mais namorou, nem às segundas nem em qualquer dos outros miseráveis dias da semana

É muito chato esse negócio de dar más notícias. Não é à toa que os gregos cortavam a cabeça do soldado que retornasse da batalha falando em derrota. No mundo moderno, nem sempre as cabeças são literalmente cortadas, mas é difícil não antipatizar com o primeiro sujeito que vem nos dizer que estamos ficando careca, como se fosse ele o causador universal da queda de cabelos.

E há maneiras simbólicas de decapitar o intrometido que vem nos esclarecer sobre coisas que preferíamos deixar na penumbra, quando não na completa escuridão. É o que prova o caso de uma senhora que há muitos anos se sentiu na obrigação de dar certa má notícia à sua melhor amiga. Vamos chamá-las de Marta e Maria, que têm a vantagem de ser dois nomes bíblicos e por serem tão universais não se aplicam a ninguém em particular.

Uma das amigas, digamos que Maria, arrumou um namoro, o que não seria nada demais não estivesse ela na idade em que a gente, para ser gentil com uma dama, diz que ela “não é mais criança”. E esse namoro tinha uma particularidade: só se consumava e consumia às segundas-feiras. O cavalheiro alegava que, nos demais dias da semana, trabalhava no Rio de Janeiro. Quem acreditaria nisso? Maria acreditava. Ou pelo menos enganava a si mesma tão bem que ela mesma acreditava que acreditava. E assim prosseguia o namoro, toda segunda: jantares, cinema, passeios de carro, curvas e mais curvas por onde inquietas mãos passeavam. Daí que Maria voltava para casa sonhando com o casamento que poria fim àquelas segundas-feiras corridas e incompletas. Maria sonhava com um amor de sete dias por semana, sem intervalos. E nessa ilusão passava os dias na esperança de um só dia.

Aí é que Marta entra na história. Certa de que sua amiga estava sendo enganada, pôs-se a investigar. E tanto que acabou chegando à descoberta nada espantosa de que o D. Juan era casado no Rio de Janeiro e vinha à nossa cidade nas segundas-feiras para prestar assessoria a empresas. Talvez viajasse para outros cantos nos restantes dias da semana e onde quer que prestasse assessoria técnica, prestasse também assessoria amorosa a alguma Maria local.

Marta, amiga tão amiga, acabou contando. Contou à Maria que o galã das segundas-feiras era também um galã de segunda e jamais a transformaria em primeira-dama. Maria mudou de cor, chorou e rangeu os dentes. Depois acusou a amiga de fofoqueira e invejosa. Quando lhe faltaram acusações medianamente civilizadas, fez um discurso que não pode ser apresentado neste horário, em respeito às crianças presentes.

Verdade que Maria terminou o namoro. Nunca mais namorou, nem às segundas nem em qualquer dos outros miseráveis dias da semana. Mas é verdade também que nunca mais falou com Marta. Perdeu o namorado e resolveu completar a desgraça perdendo a amiga. Assim foi, porque assim somos. Preferimos as mentiras doces às verdades amargas. Se sonhamos com rosas e aparece qualquer Marta para nos dizer que os espinhos existem, ficamos revoltados. Cortamos a cabeça dessa Marta imprudente, que é para ela não vir nos enfiar a realidade pelos olhos, quando os tínhamos fechados justamente para enxergar apenas a ilusão que cultivávamos por trás das nossas pálpebras cansadas.

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Conversa pedagógica

terça-feira, 07 de setembro de 2021

— Alô! Alô! É o professor Macário?

— Ele mesmo. A senhora podia falar um pouquinho mais alto?

— O senhor é o professor Macário, que os alunos chamam de professor Macabro?

— Essa eu ainda não conhecia. O próprio. Em que posso ajudar? Por favor, fale mais alto.

— Não posso, professor. É confidencial.

— Não seria melhor então a senhora vir ao colégio, falar pessoalmente?

— Professor Macabro... Desculpe... Macário. Tem alguém mais ouvindo nossa conversa?

— Não, ninguém. Qual o nome da senhora, por favor?

— Alô! Alô! É o professor Macário?

— Ele mesmo. A senhora podia falar um pouquinho mais alto?

— O senhor é o professor Macário, que os alunos chamam de professor Macabro?

— Essa eu ainda não conhecia. O próprio. Em que posso ajudar? Por favor, fale mais alto.

— Não posso, professor. É confidencial.

— Não seria melhor então a senhora vir ao colégio, falar pessoalmente?

— Professor Macabro... Desculpe... Macário. Tem alguém mais ouvindo nossa conversa?

— Não, ninguém. Qual o nome da senhora, por favor?

— A telefonista é de confiança? Sei lá, ela tem cara de fofoqueira. Fica ali dentro daquela gaiola, ouvindo tudo quanto é ligação...

— Dona Marly é de total confiança. Mais de dez anos na cabine telefônica.  Olha, eu estou esperando um pessoal do sindicato. A senhora podia falar do que se trata?

— É confidencial, professor. É sobre um aluno do colégio. Mas, pelo amor de Deus, não fala pra ele que eu liguei, não. Tem certeza que D. Marly não tá escutando?

— Por favor, qual o nome da senhora, quem é o aluno e de que se trata? Acho melhor a senhora vir falar comigo.

— Já tou falando, professor. Professor Mancada... desculpe... Macabro... desculpe ... Macário. É o seguinte... Sincomoda de ir ver se a D. Marly não tá de orelha em pé, ouvindo a gente?

— Minha senhora, desculpe, mas estou esperando o pessoal do sindicato...

— Vou falar. Já que é pra falar, falo logo. É a professora de português, professor. Sem brincadeira, ela é macabra.

— Qual professora de português? O que tem ela?

— A professora do Luizinho... Sabe quem é Luizinho, não sabe? Ou vai me dizer que não conhece os alunos do seu colégio!

— O colégio tem mil e duzentos alunos, minha senhora. Olha, o pessoal do sindicato já está lá fora... Qual é problema do Luizinho?

— Do Luizinho, não! Contra o Luizinho, isso sim!

— E qual o problema... vá lá!, contra o Luizinho?

— A redação, professor. Merecia pelo menos nove e meio.

— E quanto ele tirou?

— Só sete e meio ...Uma injustiça. Deus no céu tá vendo que é uma injustiça.

— E o que tem de errado na correção da professora, minha senhora? Aliás, qual é mesmo o seu nome?

— Eu sei lá o que tem de errado, Seu Macabro! Eu ainda não vi a redação. Ela não devolve porque sabe que a nota é injusta.

— Mas se a senhora ainda não viu a redação...

— E precisa ver? O Luizinho, se quiser, vai ser escritor. Mas o que ele quer mesmo é ser motorista de caminhão.

— Eu posso falar com a professora. Qual a série do Luizinho?

— Eu lá vou denunciar meu filho, professor!

— Mas sem saber quem é, vou fazer o quê?

— Já vi que o senhor também quer ferrar o Luizinho! Pela mãe do guarda! Não é à toa que chamam o senhor de Macabro. Pode deixar, eu mesma vou aí falar com a professora. E fala com a fofoqueira da Dona Marly pra parar de abelhar a conversa dos outros.

— Alô! Alô! Minha senhora... Desligou... Eu é que devia ter sido motorista de caminhão!

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Coisas do coração

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O pai quase morreu do coração ao receber a notícia

O pai quase morreu do coração ao receber a notícia

Já lhe disseram alguma vez que você não tem coração? Talvez tenham tido razão, mas não se preocupe muito, só mesmo em sentido figurado é que alguém pode andar por aí desprovido desse músculo tão pequeno e, no entanto, tão absolutamente vital. Mas é um fato lamentável que, ao menos como metáfora, o que não falta no mundo é gente sem coração. Por outro lado, há quem faça das tripas coração para agradar a pessoa amada, quem ouça a voz do coração na hora de tomar uma decisão, e o Novo Testamento nos ensina que Maria guardava tudo no coração. Às vezes levamos um susto e o coração quase nos sai pela boca. Mas também somos poupados de muitos sustos e de muitas tristezas porque o que os olhos não veem o coração não sente. Tem até quem goste tanto de futebol que leve o nome do seu time gravado no coração. Alguns carregam um pesado coração de pedra, outros, um breve coração de passarinho. Enfim, tem coração para todos os gostos.

O que talvez nunca lhe tenham dito, por ser improvável, é que você seja um caso de dextrocardia. Se lhe atirarem isso na cara, antes de reagir com outro palavrão, lembre-se um pouco de sua 9ª série. Foi lá que a professora de português lhe ensinou que destro significa direito, por oposição a sinistro, que significa esquerdo. Claro, você não é um cara sinistro, você é gente boa. Mas destro você deve ser, pois assim é a maior parte da humanidade. Também deve ter aprendido naquela ocasião que cárdio tem a ver com coração, e aí estão as palavras cardíaco, cardiologista, cardiograma e outras para comprovar. Depois desse retorno ao passado, já mais tranquilo, você começa a achar que dextrocardia talvez não seja nenhuma ofensa. Mas, então, que coisa é essa, designada por palavra tão esquisita? Antes de mais nada, repito que é muito improvável que este seja o seu caso. Improvável, mas não impossível.

São raríssimos os casos de dextrocardia no mundo. Até bem pouco tempo, eu só tinha visto isso no cinema. Os mais velhos hão de se lembrar do filme “007 contra o satânico dr. No”. Pois esse satânico personagem levou um tiro no peito e não demorou muito a entrar em cena novamente, só para atormentar a vida de James Bond, então interpretado pelo ator Sean Connery. Pois o dr. No escapou de morrer com aquele tiro justamente porque era o que a medicina chama de dextrocardíaco.

Enfim, a dextrocardia existe, e tanto que nos Estados Unidos recentemente uma jovem de dezenove anos foi diagnosticada com esse problema. Aliás, os médicos garantem que não é problema, quando muito é uma curiosidade, o que tornou a moça merecedora de figurar na imprensa e nas redes sociais. Diz ela que o pai quase morreu do coração ao receber a notícia, mas a mãe, mais pé no chão, apenas riu e comentou: “E você levou dezenove anos para perceber isso, Coração?!” Pois não é que a jovem tinha ido ao médico apenas por causa de uma tosse esquisita e sem razão conhecida?

Tendo alongado tanto a história, talvez já seja hora de dizer, afinal, que bicho de sete cabeças é esse. Pois bem, dextrocardíaco é a pessoa que tem o coração do lado direito do peito, como você (suponho) e eu (com certeza), e não do lado esquerdo. No mais, recomendo que da próxima vez que você for ao cardiologista, peça a ele para auscultar à esquerda e à direita. Porque, pode ser, quem sabe? Enfim, não custa nada tirar a dúvida.

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Foot-ball

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Atualmente, os pais se enchem de esperança se o herdeiro faz algum sucesso ainda nas escolinhas

Atualmente, os pais se enchem de esperança se o herdeiro faz algum sucesso ainda nas escolinhas

“No íntimo achava que o neto caminhava para a desgraça. Deixar um emprego como o da estiva, para se meter na vadiação de jogo de bola”. Assim a velha Filipa lamenta que Joca, seu neto, saia de Araruama para jogar futebol no Rio, o que, para ela, era “deixar um emprego de homem para se meter com moleques”. E olha que o rapaz era uma revelação, um excelente center-forward, como se dizia na época. Um craque. E mais: ele ia direto para o Fluminense e de saída recebeu quinhentos mil réis, só para pagar a viagem até a capital. Já no primeiro jogo arrasou com tudo quanto foi center-half, back e goal-keeper que encontrou pela frente. Mas não era apenas a avó que sofria com a escolha de Joca, também a mãe, tanto que “Sinhá Antônia chorou muito” no dia em que viu a foto do filho na capa de uma revista esportiva.

Essa história está nas páginas de Água-Mãe, romance de 1941, em que o flamenguista José Lins do Rego deixa seus personagens anteriores descansando lá no Nordeste e coloca outros em ação no litoral do Estado do Rio, principalmente em Araruama e Cabo Frio. Joca, cuja família vivia da pesca, da sobriedade e do anonimato, devia cumprir o mesmo destino, mas, atuando pelo Tamoios cabo-friense, revelou um surpreendente talento para o foot-ball. Surpreendente porque era fora da curva, fora da história de sua gente, que desde sempre se ocupava das águas e dos barcos, longe dos gramados e da bola.

A leitura de Água-Mãe nos faz entender que nem sempre esse esporte teve o prestígio de que desfruta atualmente. Pelo visto, as mães choravam mais do que riam quando um filho descambava para esse campo malvisto, malquisto: os campos de futebol. Que jogassem pelada nas ruas e nas areias para se distrair com outro meninos, vá lá. Mas fazer disso profissão... era um desgosto irremediável. Bem diferente de agora, quando os pais se enchem de esperança se o herdeiro faz algum sucesso ainda nas escolinhas. Basta que o molequinho meta dois gols numa partida para que se comece a ver nele um novo Pelé, no mínimo um Rivelino.

Mas não precisamos voltar a 1941 para ver que nem sempre o mundo da bola foi tão rico e glamoroso. Em Estrela Solitária, biografia de Mané Garrincha, Ruy Castro revela a vida difícil que o craque das pernas tortas levou, mesmo depois de consagrado no Botafogo. Dormia nos vestiários do clube, assinava contratos em branco e jogava mesmo estando machucado. E ai de Garricha se ao seu lado não estivesse o anjo protetor chamado Nilton Santos.

Os jogadores de hoje, pelo menos os maiores, aqueles que chegam às grandes equipes, ao futebol europeu ou às seleções, esses são os nossos ídolos, quase deuses, e não falta quem mais os adore do que adoraria Deus, se nEle cresse como crê em Cristiano Ronaldo ou em Neymar Jr. E basta que um deles torça o dedão do pé para que a nação toda entre em estado de vigília. Faturam muitos milhões jogando bola e outros mais como garotos-propaganda das grandes marcas. Há dias, Cristino Ronaldo fez despencar as ações da Coca-Cola pelo singelo gesto (mas não ingênuo ou impensado) de tirar de sua frente duas garrafas do refrigerante durante uma entrevista. Sem patrocínio, não!

Nada contra o futebol ou seus praticantes, amadores ou profissionais. Se ganham muito dinheiro, ganham fazendo o que sabem e não assaltando a bilheteria, nem criando leis para desfrutarem de altos vencimentos e altas mordomias. Para falar a verdade, eu gosto bem de um joguinho do Flamengo ou da Seleção Brasileira. Não sou dos mais apaixonados, mas também não sou indiferente. Quanto ao que aconteceu a Joca... melhor você ler o livro.

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Pesos e contrapesos

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Tem uma história, ainda que seja sempre humilde e quase sempre sofrida

Peço-lhe trezentos gramas de queijo. Ele entendeu, mas necessita de confirmação: “Trezentas gramas?” Longe vão os tempos em que eu torturava os alunos, querendo que pesassem as coisas no masculino e não no feminino. Mas o tempo me ensinou que, bem pesadas as coisas, mais vale um grama de comunicação do que uma tonelada de gramática. E não é que as fatias que ele põe na balança somam exatamente trezentos gramas, nem um tiquinho a mais, nem um tiquinho a menos?

Tem uma história, ainda que seja sempre humilde e quase sempre sofrida

Peço-lhe trezentos gramas de queijo. Ele entendeu, mas necessita de confirmação: “Trezentas gramas?” Longe vão os tempos em que eu torturava os alunos, querendo que pesassem as coisas no masculino e não no feminino. Mas o tempo me ensinou que, bem pesadas as coisas, mais vale um grama de comunicação do que uma tonelada de gramática. E não é que as fatias que ele põe na balança somam exatamente trezentos gramas, nem um tiquinho a mais, nem um tiquinho a menos?

Elogio sua exatidão ao calcular as fatias necessárias, e ele diz que se tivesse a mesma sorte ao escolher os números da loto, estaria rico. Como não há nenhum outro freguês esperando, estico a conversa e lhe pergunto o que ele faria se acertasse os treze pontos. A resposta me surpreende. Esse rapaz, que tão modestamente trabalha atrás do balcão de um supermercado, não sonha com iates, viagens ou joias. Não quer ter um Rolex, nem conhecer Nova York. “Se eu ganhasse muito dinheiro, voltava pra minha terra, Maceió. Ia rever minha família e meus amigos”.

Sim, seu maior desejo, que não realiza porque parcos são os seus ganhos, é simplesmente voltar à terra natal, abraçar mãe, pai, irmãos, primos e conhecidos. Fico admirado ao ver a força desses laços telúricos, o quanto o lugar em que se viveu permanece na memória, o quanto persistem no coração os laços de amor e de sangue. Diferente de tantos que jogam sonhando com altos voos, ele — que não joga — queria apenas pegar um avião e pisar de novo no chão em que se criou, abraçar aqueles que o criaram e os que junto dele se criaram.

Para quem passa os dias atendendo a vozes que vêm do outro lado do balcão, achar um ouvinte disponível é oportunidade para contar um pouco de si, mostrar que também tem uma história, ainda que seja sempre humilde e quase sempre sofrida. Pois veio da capital das Alagoas para o Rio de Janeiro na esperança de melhorar de vida, o que então significava trabalhar com um tio tão distante que ninguém mais na família lembrava que cara ele tinha. Mas sabiam o nome e, mais ou menos, o endereço. Nunca encontrou o tio, mas achou quem lhe desse produtos pra vender na praia: protetor solar, óculos escuros, cangas coloridas e o que mais aparecesse. Também vendeu água nas imediações do Maracanã e flores na entrada do cemitério.

Um companheiro de aventuras e desventuras era de uma cidade próxima e assim também ele veio para cá, onde, graças à experiência de praias, estádios e cemitérios, arrumou trabalho no supermercado. E assim vai entregando duzentas gramas disso, trezentas daquilo, quatrocentas de tudo o mais. Tão bem se deu que mandou vir a namorada, já tem um filho e até pensa em se casar.  Está bem, está feliz. Mas nos momentos de folga, nas noites de sábado ou nas manhãs de domingo, deve ainda sentir o cheiro do mar, escutar o barulho do vento, ouvir a voz da mãe, dando conselhos, e a do pai, dando ordens. De tudo isso deve se lembrar e, fosse menos prático e mais poético, daria ao que sente o nome de saudade.  Como não é poeta, e sim balconista, se conforma em dizer que, se ganhasse na loto, voltava para Maceió, sua terra natal, ia rever a mãe, o pai, os irmãos e os amigos.

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Vencimentos e derrotas

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Grande e generoso é o coração dos legisladores brasileiros

Grande e generoso é o coração dos legisladores brasileiros

Você com certeza reclamaria se quisessem reduzir o seu salário, é ou não é? E com toda razão. A maioria de nós, brasileiros, a cada trinta dias recebe um contracheque que só serve para nos fazer pensar em quantos daqueles seriam necessários para zerar as contas do mês. Como cheque é uma coisa que já caiu quase completamente em desuso, o prefixo da palavra contracheque só pode significar oposição e desprezo por quem recebe aquela insignificância. Nossos vencimentos mensais mais acertadamente se chamariam derrotas mensais.

Não são todos os brasileiros, claro. Certa vez um amigo com talento para o humor negro contou-me a história do operário que teve a ousadia de pedir participação nos lucros, alegando que o patrão era uma ilha de riqueza encravada no oceano nacional de pobreza. O poderoso industrial reconheceu possuir uma fortuna de muitos milhões e saber que sobravam no país trabalhadores vivendo com uma mão na frente e outra atrás, às vezes com as duas atrás, em virtude dos baixos salários que recebiam.

O trabalhador já estava comovido até as lágrimas diante da generosidade do patrão, antevendo o crescimento expressivo que ia pingar na sua conta a partir daquela conversa. Aí o poderoso chefão pegou a calculadora e dividiu sua fortuna pelo número dos brasileiros, que já naquela época beiravam os duzentos milhões. Concluída a conta, sentenciou: “Dá um real para cada brasileiro”. Tirou uma moeda do bolso e arrematou: “Tá aqui a sua parte. Agora passa na contabilidade que o senhor tá despedido!”

Não são todos os brasileiros, claro. Agora mesmo anda pelos noticiários a informação de que um ex-Secretário de Estado do Rio de Janeiro, condenado (mas não preso, que isso de cadeia é coisa de pobre) após ter admitido o recebimento de sete milhões em propinas. Esse nobre servidor do povo fluminense solicitou ao Supremo autorização para voltar a trabalhar (talvez honestamente, quem sabe?), o que lhe foi negado. Aposentado à força, viu-se o infeliz na obrigação de ficar em casa vendo novelas na TV, passear na praia com os cachorros, tomar uns uísques com os amigos, e outras ocupações assim pesadas. Grande e generoso é o coração dos legisladores brasileiros e, para não lhe abater completamente o ânimo, a lei permite que ele continue recebendo os mesmos salários que receberia se estivesse trabalhando, os quais totalizam a bagatela de R$ 37.000,00 por mês. Agora vai ter que se apertar e viver só com isso, que as propinas estão temporariamente suspensas.

  Já o ator Arnold Schwarzenegger deu um grande exemplo de desapego ao dinheiro, aceitou de bom coração reduzir seu próprio salário e foi para o sacrifício. Bem sabemos que os ganhos de um ator de Hollywood fazem o holerite do brasileiro médio parecer um filme de terror. Também é certo que tal redução não ia colocar nosso amigo Arnold na miséria. Nem por isso deixou de ser uma atitude nobre da parte dele abrir mão de toda a grana a que teria direito. Então, para fazer o filme “Os irmãos gêmeos”, ele se contentou em receber apenas 237 milhões. De dólares! Se fosse de reais, já não era pouca coisa. Agora vai ver qual é o câmbio do dia e multiplica 237 milhões por 5 ou 6. Compare com o último pagamento que você recebeu e veja dá uma diferença muito grande.

Sigamos o bom exemplo desse senhor. Nada de ficarmos com essa teimosia de querer ganhar mais e mais, e aliás inutilmente, já que ninguém está a fim de socializar a riqueza, uma vez que a pobreza já está tão bem socializada. E talvez um pouco nos contentemos com esse pensamento do grande Padre António Vieira: “Quem é o verdadeiro rico? Aquele que não quer nada, porque nenhuma coisa lhe falta.”

PS – Na verdade, Schwarzenegger abriu mão de outros pagamentos em troca da participação na venda de ingressos. Como o filme foi um sucesso mundial...

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A lição de Dorian Gray

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Os dias vão-se embora, sem nos pedir desculpas por tamanha indelicadeza

Os dias vão-se embora, sem nos pedir desculpas por tamanha indelicadeza

Infelizmente, não sou dessas pessoas que nunca envelhecem. Pois é o que acontece com certa senhora que conheci tempos atrás, sendo ela então uma trintona e eu um molecote de quinze. Estivemos afastados por mais de uma década e, quando nos reencontramos, eu quase dobrara a idade e ela não passara dos 35, conforme honestamente me confessou, com aquele ar heroico de quem resolve assumir de vez toda a verdade. Outra vem diminuindo os anos com tal velocidade que ela e o filho mais velho já estão quase empatados. Não há o que estranhar nesses fenômenos, pois os cientistas afirmam que espaço e tempo não passam de ilusões criadas pela pequenez da inteligência humana. Tudo é relativo, como diria Einstein.

Portanto, não estará faltando com a verdade quem, tendo 60 anos, sinta-se com 40 e assim os declare. Eu não ouso duvidar de ninguém, mas às vezes sou mal interpretado. Outro dia vi uma aluninha da alfabetização contemplando uma placa fixada na parede do colégio. Perguntei-lhe se ela estava lendo as palavras ali escritas e obtive como resposta um sonoro “rua Monsenhor Miranda”. Talvez achando que eu estivesse cometendo o pecado de duvidar de sua sabedoria, a pequena leitora declarou com ar triunfante: “Eu já leio até de pensamento”. Quer dizer: ela não precisava ficar pronunciando as palavras para que até mesmo um burrão como eu entendesse que ela só podia estar lendo.

No livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, o personagem, à custa de muita safadeza, consegue não envelhecer. Em compensação, mantém escondido um retrato em que vão se acumulando todas as marcas do tempo e das torpezas cometidas pelo seu dono. Não parece boa maneira de permanecer jovem. É só ler o livro para ver que Dorian Gray, que pretendia enganar o tempo, não se deu bem com o truque. Sim, bom seria manter o corpo forte e liso, sem que, no entanto, a alma enrugasse. Mas a lição que o romance nos dá é que isso não é possível. Para não envelhecer, só mesmo morrendo jovem, mas essa solução não agrada a ninguém. Certamente não agradaria àquele ancião que, ao atingir um século de existência, ouviu de um repórter a pergunta sobre como era completar 100 anos. O velho simplesmente respondeu que a outra opção era pior.

Enfim, os dias vão-se embora, sem nos pedir desculpas por tamanha indelicadeza. Tomás Antônio Gonzaga, poeta do Arcadismo brasileiro, dá uma bela cantada na sua idealizada Marília, convidando-a a fazer “de feno um brando leito” e aproveitar “do prazer de sãos amores” porque “sobre nossas cabeças/sem que o possam deter, o tempo escorre;/ e para nós o tempo, que se passa,/ também, Marília, morre”.

É um bom conselho. Talvez melhor ainda seja o que se pode depreender desse pensamento do próprio Wilde: “Ser bom é estar em harmonia consigo mesmo. E não ser é ver-se forçado a estar em harmonia com os outros”. Sim, eis o problema de quem não aceita envelhecer: atormentar-se diante do espelho, vivendo mal consigo mesmo, na vã esperança de parecer bem para os outros.

Para encerrar, outra sentença de Oscar Wilde. Não sei se essa é um bom conselho (no seu tempo ele não era considerado o tipo de quem se podia esperar bons conselhos). Ei-la: “Para recuperarmos a juventude só precisamos repetir as nossas loucuras”.

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