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Livros e piolhos

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

No Brasil de então, livro era coisa mais rara do que índio de gravata ou índia de sutiã

Não é que os portugueses fossem medrosos, mas encarar Napoleão não era brincadeira, o homem vinha arrasando tudo que encontrava pela frente. Assim, mui sabiamente, a família real se mandou para o Brasil, criando a situação, única na História, de um império cujo governo estava na colônia e não na metrópole. Até aí, nada que a gente não tenha aprendido no colégio, contanto que não tenha matado a aula nesse dia.

No Brasil de então, livro era coisa mais rara do que índio de gravata ou índia de sutiã

Não é que os portugueses fossem medrosos, mas encarar Napoleão não era brincadeira, o homem vinha arrasando tudo que encontrava pela frente. Assim, mui sabiamente, a família real se mandou para o Brasil, criando a situação, única na História, de um império cujo governo estava na colônia e não na metrópole. Até aí, nada que a gente não tenha aprendido no colégio, contanto que não tenha matado a aula nesse dia.

Mas às vezes a gente não pensa em algumas consequências prosaicas desse acontecimento histórico. Por exemplo: com a chegada de tantos visitantes, todos eles acostumados a uma boa e farta mesa, o frango tornou-se para o povão do Rio de Janeiro uma saudade, uma vaga lembrança, um cacarejo longínquo, pois da cabeça aos pés todos os galináceos voaram para os pratos da elite esfomeada que se instalou na cidade. Também as melhores residências foram tomadas para acomodar a comitiva real, que andava aí por perto de 15.000 almas lusitanas. Nas portas das casas a serem desocupadas, foram pintadas as letras PR, que pretendiam significar Príncipe Regente. No entanto os cariocas, já na época capazes de rir da própria desgraça, traduziam o PR pelo que ele mais verdadeiramente significava: Ponha-se na Rua.

Os navios chegaram cheios de novidades, dentre as quais uma boa população de piolhos. Tantos eram os bichinhos a bordo que as mulheres amarravam panos na cabeça, na vã tentativa de matá-los por sufocamento. E foi assim enfeitadas que aqui desembarcaram. As cariocas, vendo as visitantes com aqueles turbantes improvisados, julgaram que aquilo era a mais fina flor da elegância europeia e, tivessem ou não piolhos passeando pelo cocoruto, passaram a também usar os cabelos ocultos sob panos coloridos. Por aí se vê que vem de longe essa nossa mania de imitar tudo que é estrangeiro, na suposição de que, se é estrangeiro, é melhor.

Mas a maioria das consequências foi positiva e os historiadores concordam que só a partir de 1808 é que o Brasil começou a tomar cara de nação minimamente civilizada. Um dos grandes benefícios, dos maiores talvez, foi terem vindo no embrulho os milhares de livros da Real Biblioteca Portuguesa. No Brasil de então, livro era coisa mais rara do que índio de gravata ou índia de sutiã. Ora, o que mais do que o livro pode mudar um homem ou um povo? Como de maneira tão feliz sentenciou o escritor argentino Jorge Luís Borges: “De todos os instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro”. E ele explica por quê. “Tudo o mais é extensão do corpo: o arado é extensão da braço:  o microscópio, dos olhos; o telefone, da voz”. Mas o livro, esse é “Extensão da memória e da imaginação”.

De vez em quando se diz que o livro vai morrer ou sobreviver apenas na forma digital. Mas o livro, desde a Bíblia de Guttenberg, é um objeto mágico, que recolhe, guarda, amplia e distribui tudo que a inteligência e a sensibilidade humanas podem criar. E, nos seus variados formatos, é prático, disponível, revisitável a qualquer hora e em qualquer lugar, sem depender de outra bateria que não seja a vontade do leitor. Sempre de braços abertos, ou melhor, de páginas abertas para quem busca sua companhia.

Se os portugueses não nos tiverem feito outro bem, ao menos esse não se lhes pode negar: trouxeram-nos os primeiros livros. E como disse o padre Antônio Vieira, “O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive”. Ou, lembrando Monteiro Lobato: “Um país se faz com homens e livros”.

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A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.

Casos de desaparecimento

quarta-feira, 01 de dezembro de 2021

Quando o rio fica em situação de excesso ou miséria hídrica, pra que serve?

Quando o rio fica em situação de excesso ou miséria hídrica, pra que serve?

Um dos órgãos encarregados de fiscalizar o governo teve a gentileza de nos informar que milhares de obras no Brasil estão desaparecidas. Pois é, não se trata de estarem inacabadas, como tantas de suas irmãs pelo país afora. Simplesmente desapareceram. Não sei como ser mais claro do que isso. “Desapareceram”, ou seja, “sumiram”, “ninguém sabe onde estão”. Estima-se que só de hospitais são mais de mil. Essa notícia, que tanta surpresa e até indignação causou entre muitos dos que dela tomaram conhecimento é, no entanto, perfeitamente explicável.

Porque, veja bem, o governo manda construir uma ponte. O que é uma ponte? Ensina o Michaellis que é “Obra construída (...) suspensa sobre um curso d´água”. A palavra ponte pode significar muitas outras coisas, desde pulo do goleiro de futebol até prótese dentária, todas elas sujeitas a desastres. A ponte do goleiro pode terminar com a cara na trave e a bola nas redes, a prótese dentária pode escapulir da boca e cair no colo da senhora sentada na primeira fila da plateia, justamente na hora em que o orador toma a palavra Aliás, isso me lembra... mas eu já contei essa história antes!

Bom, vou contar de novo, quem não leu que leia (ou não), quem leu que releia (ou não). O caso é que, quando criança, tive um vizinho que fumava muito e fumava especialmente sentado no vaso sanitário, enquanto fazia aquilo a que se destinam todos os vasos sanitários, seja no barraco da favela, seja no Palácio de Buckingham. Um dia, estava ele ali, soltando fumaça pelo nariz feito dragão de desenho animado, quando teve um ataque de tosse daqueles de estourar os pulmões do tabagista e os ouvidos da vizinhança.

Na ânsia de puxar algum arzinho para os pulmões, o homem deixou que a prótese voasse para dentro do vaso e lá ficasse nadando na pior companhia possível. Quando recuperado da tosse, viu-se o nosso anti-herói no dilema de pescar ou não seus belos dentes artificiais e voltar a usá-los, ou dar-lhes adeus para sempre. Enquanto pensava, deu a descarga, à qual a prótese sobreviveu valentemente. Bem diz a antiga marchinha de Carnaval: “A água lava, lava, lava tudo. A água só não lava a língua dessa gente...” Assim pensando, e pensando no tempo e no dinheiro necessários para recriar aquela valiosa peça, prudentemente pescou a prótese que, recuperada, lavada e escovada, voltou a iluminar o sorriso do seu dono.

Mas voltemos às obras desaparecidas. Não há o que estranhar. No caso da ponte... Bem sabemos como são inconfiáveis os rios brasileiros: vão e voltam, enchem e esvaziam, dependendo dos sol, das chuvas e da irresponsabilidade humana. Às vezes são tão férteis que até lembram a passagem bíblica em que Jesus ordena “Lançai de novo as redes”, e as redes voltaram rebentando de tão cheias, outras vezes viram lama, ou terra esturricada. Pois quando o rio fica em situação de excesso ou miséria hídrica, pra que serve? E pra que serveria uma ponte sobre ele? Aí a ponte desaparece, sem a menor consideração pelo dinheirão gasto para que ela fosse construída. Como são milhares os inconstantes rios nacionais, muitas são as pontes que com eles secam, ou por eles são levadas na enxurrada. Ou seja: desaparecem.

O que acontece com os rios nacionais com outras obras nacionais acontece. Estradas, por exemplo. As estradas são danadas pra desaparecer. O governo diz que abriu uma delas, asfaltou e inaugurou. O caminhoneiro chega lá, cadê a estrada? você viu? Nem ele, que só encontrou lama e buraco. Contudo, o que muito nos consola é que o citado órgão fiscalizatório explicou que não é bem assim. As obras existem, o que sumiu, perdidos nos desvãos da burocracia, foram os papeis que as tornariam visíveis para a fiscalização, pois no Brasil mais vale o papel do que a realidade.

Tomemos por exemplo o caso ocorrido numa cidade mineira. Um vereador morreu em plena sessão e na sessão seguinte o suplente se apresentou para tomar posse. Foi impedido pelo presidente da casa com o argumento de que ainda não tinha recebido o atestado de óbito.

— Mas o homem morreu na sua frente, Senhor Presidente!

— Não interessa. Sem o devido papel, nada feito. Volte Vossa Excelência na próxima semana e tomará posse. Se o atestado já tiver chegado!

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Maneiras de dizer

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Foi ali um instantinho e já volta

Pode contar que vai demorar. No Brasil, quando o sujeito diz que vai sair para tomar um cafezinho, sabe-se lá aonde esse cara vai e quando vai voltar, se é que vai voltar. Pior ainda se o paletó ficar abraçado ao encosto da cadeira. Há pessoas que parecem pensar que o paletó as representa muito bem e está capacitado a atender a qualquer um que tenha o mau gosto de procurá-las.

Foi ali um instantinho e já volta

Pode contar que vai demorar. No Brasil, quando o sujeito diz que vai sair para tomar um cafezinho, sabe-se lá aonde esse cara vai e quando vai voltar, se é que vai voltar. Pior ainda se o paletó ficar abraçado ao encosto da cadeira. Há pessoas que parecem pensar que o paletó as representa muito bem e está capacitado a atender a qualquer um que tenha o mau gosto de procurá-las.

Sei de um caso em que essa história de “foi ali um instantinho e já volta” levou anos para ser concluída. O sujeito saiu para comprar cigarro. O barzinho ficava só a cinco minutos do apartamento. Meia hora depois, a mulher se deu conta de que o marido estava demorando. Uma hora, começou a ficar preocupada. Duas horas, foi ela própria até o bar. O resto do dia gastou em telefonemas para conhecidos, hospitais e polícia. Nada de nada, nunca mais.  Três ou quatro anos depois, um vizinho está em São Paulo e vai assistir a um jogo no Pacaembu. Estádio lotado, não havia espaço nem para tirar a mão do bolso. Alguém ao lado lhe pede para acender o cigarro e …

Nem preciso contar o resto. O leitor e a leitora, inteligentes do jeito que são, já entenderam tudo. Era aquele cidadão que tinha saído de casa um instantinho e nunca mais voltara. “Se eu falasse que ia embora, ela fazia um escândalo. Aí, resolvi sair de fininho…”

Ela é bonitinha

Até ser gentil está ficando difícil. Outro dia conheci uma senhorita, da terra do Boi Garantido e do Boi Caprichoso, e lhe disse que ela parecia mesmo maranhense, tendo ela me perguntado o que isso significava. “Moreninha, bonitinha…”, foi o que respondi, achando que estava sendo muito galante.  A moça não entendeu assim e retrucou que “Bonitinha é quase feia”. Não satisfeito de ter dito a primeira besteira, acrescentei a segunda: “Já me disseram que bonitinha é uma feia bem vestida”, do que — louvado seja o bom humor feminino! — a jovem achou graça.

 Portanto, para dirimir qualquer dúvida, passada, presente ou futura, deixo consignado em ata que, quando atribuo a alguém o título de “bonitinha”, estou querendo dizer que: a) essa pessoa pode não ser uma dessas belezas arrebatadoras que enfeitam capas de revistas e telas de televisão; b) também não chega a ser nenhum Corcunda de Notre Dame; c) enfim, está naquele meio termo em que a pessoa pode ser chamada, sem ofensa, de… digamos assim… bonitinha.

Não é que eu queira fazer fofoca, não, mas…

Haja ouvidos e paciência, porque esse prólogo invariavelmente dá início a uma sessão completa de mexericos. Há quem garanta que o disse-me-disse é essencial à sanidade mental das pessoas. Segundo essa teoria, falar mal de alguém, fazer uma intriga, levantar uma suspeita, ao menos de leve e de vez em quando, é sinal de equilíbrio e bom humor. E a prova disso é que nos hospícios os internos não andam inventando enredos para complicar a vida dos outros. Ao contrário, falam quase exclusivamente de si mesmos: um é Neymar Jr., o outro é William Bonner, e mais aquele que consegue ser, em dias alternados, Ayrton Senna e a Princesa Isabel. Já o pessoal tido como mentalmente são, como gosta de uma fofocaria!

É de Machado de Assis o conto no qual um falastrão afirma saber que certa jovem está prometida em casamento a um amigo seu. Infelizmente para ele, o pai da moça estava presente e exige do fofoqueiro o nome do autor daquela mentira. A seguir, saem os dois à procura do primeiro acusado, que diz ter ouvido a história de um terceiro. E este aponta outro, que nomeia mais outro. A busca parece infindável! Os dois percorrem vários bairros do Rio, vão a Niterói e voltam, até que chegam ao suposto autor da história. Diante da enfurecida bengala paterna, o último acusado esclarece: “Mas foi o senhor mesmo que me contou isso!”

Daí se conclui que fazer fofoca pode ser saudável, mas é também uma arma que frequentemente se volta contra quem a dispara.

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Médicos, receitas e remédios

terça-feira, 02 de novembro de 2021

Apenas entrego a receita ao balconista que, de pronto, chama a farmacêutica, que, de pronto, convoca o mais antigo funcionário da casa

Apenas entrego a receita ao balconista que, de pronto, chama a farmacêutica, que, de pronto, convoca o mais antigo funcionário da casa

Não sou eu que vou falar mal dos médicos. Primeiro, porque os tenho em alta conta, especialmente os que tratam da minha pouca saúde. Não digo pouca porque ela me falte, mas porque saúde, como felicidade, nunca é demais. Alguns dirão que dinheiro também entra nessa conta, e mesmo o ingênuo Sancho Pança, fiel escudeiro do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, chegou a dizer que “Com bom cimento se pode fazer um bom edifício, e o melhor cimento do mundo é o dinheiro”. Pode ser, porém creio que mais vale possuir um centavo de saúde e outro de felicidade do que, sem elas, ser Bill Gates, Jeff Bezos e Elon Musk juntos, pra falar só dos que estão no topo da lista dos maiores ricaços do mundo. Por outro lado, o próprio Sancho vai dizer, mais adiante, que “Aos médicos sábios, prudentes, discretos, esses meto-os no coração e honro-os como pessoas divinas”.

Também não falo mal dos médicos porque é uma gente da qual se pode precisar a qualquer momento, em qualquer esquina da vida. Você vai andando lépido e fagueiro e de repente tem um piripaque e o mundo desaparece da sua frente. O que você mais quer ver nesse momento da vida (ou da morte) do que um bom e atencioso médico? Então é muito sensato estarmos sempre de bem com eles, para que, se nos reconhecerem antes do atendimento, eles não tenham que repetir mil vezes o juramento de Hipócrates. “Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Hígia e Panaceas...” e por aí vai, sem esquecer aquele pedacinho que diz: “A ninguém darei por comprazer remédio mortal nem um conselho que o induza a perda”. Se não for bem assim, espero que, tendo em vista que a citação é bem intencionada, ainda que imperfeita, nenhuma sociedade médica me processe,

Estando fartamente provado que não estou aqui para falar mal dos médicos, digo que gostaria de entender por que, em pleno século XXI, tantos deles continuam a escrever com letra analfabética, horrorosa, ilegível e pior de tudo, perigosamente mortal. Tenho pensado nisso desde que uma senhora, supondo que por eu ser professor de português hei de entender de hieróglifos e coisas semelhantes, mandou me pedir para decifrar o que estava rabiscado numa receita que o médico lhe entregou. Olho a folha assustado, viro-a de cabeça para baixo, tento a leitura vertical e a transversal e o mistério não se revela para mim.

Reúno alguns amigos, e todos se confessam incompetentes diante de tamanho desafio. Claro, todos têm um palpite. “Acho que é Toral”, diz um. Mas outro observa que, “na minha opinião”, não tem nem T nem R nessa palavra. “Deve ser damil”, opina o terceiro, “Só se for Dramin”, que esse existe, garante um mais entendido no assunto. E por aí vai: “Latam” (“Mas isso é nome de companhia aérea”), “Neurol” (“Acho que a pessoa não tem problema nervoso, não”), Brodemediol (“Mas na receita só tem cinco letras!”). Até que um engraçadinho aconselha: “Vai na farmácia e pergunta se tem Babacol. Se tiver, é esse mesmo”.

Bem, lá vou eu na farmácia e não pergunto por Babacol, apenas entrego a receita ao balconista que, de pronto, chama a farmacêutica, que, de pronto, convoca o mais antigo funcionário da casa. Debruçados sobre o balcão, também eles aproximam e afastam a receita dos olhos, viram e reviram a folha em diversas posições. Somente sobre uma coisa todos têm certeza: os riscos que antecedem à palavra (se é que aquilo é uma palavra) não é mais do que uns rabiscos desses que a gente faz quando a esferográfica custa a escrever. Sem chegar a nenhuma conclusão e com receio de matar a cliente com o remédio errado, recomendam que se procure o médico, peça para ele ditar o nome da droga e anotar o que ele disser (não deixe que ele escreva!). Feito isso, finalmente se chegou ao nome do medicamento, algo assim como Niuron.

Ah, os riscos acima citado significavam “duas caixas”.

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De peito aberto

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

 

Nem vou lembrar agora a palavra pudor, que já é quase um arcaísmo

 

 

Nem vou lembrar agora a palavra pudor, que já é quase um arcaísmo

 

O nordestino não é mais o mesmo e, pelo visto, as nordestinas menos ainda.    Eis a conclusão a que cheguei depois de ter sabido pela imprensa que em Natal algumas beldades locais desfilaram pelas ruas em carro aberto, despidas da cintura para cima. Na verdade, da cintura para baixo também era grande a escassez de tecido, não havendo mais do que uns modestos pedaços de pano, tão estreitos que só mesmo olhando com muita atenção (o que eu evitei fazer) se poderia dizer de que cor eles eram. A princípio pensei que a causa da nudez pública fosse o calor potiguar, e que as moças estivessem apenas querendo pegar um arzinho para refrescar.

Mas, indo um pouco além do lide, verifiquei que o i(nu)sitado desfile teve como objetivo defender o direito de as mulheres andarem de peito aberto, o que, alegam elas, os homens fazem há milênios sem que ninguém veja nada demais nisso.  Sem querer falar dos aspectos morais, sociológicos, políticos ou quaisquer outros que o tema possa suscitar, limito-me a olhar o assunto pelo lado estético. Nem vou lembrar agora a palavra pudor, que já é quase um arcaísmo, sobrevivendo a duras penas num canto esquecido dos dicionários. Diferenças de volume, formato e finalidade explicam por que, se Juliana Paes e o marido saíssem pela praia de Ipanema des-vestidos como recomendam as moças natalenses, ele poderia estar não apenas pelado, mas também carregando nas costas um tubarão recém-pescado que ninguém notaria sua presença.

 Mas creio que quem mais irá combater esse movimento são as próprias mulheres porque, convenhamos, não são todas que possuem encantos suficientes para assim se exibirem. Vinícius de Moraes diria que, para aderir à nova moda, beleza é fundamental. Imagine então como sofreriam as que, por não possuírem os requisitos exigidos pela novidade, precisassem manter oculto o que as outras orgulhosamente andassem exibindo. Seria o reconhecimento da própria feiura. Ora, de todas as desgraças que neste mundo podem se abater sobre qualquer mulher, sentir-se feia é a mais dolorosa. Se bem que, pensando melhor, talvez nem mesmo as mais belas entrem nessa de sair pelas ruas sem lenço e sem documento. Porque, embora digam que o que é bonito merece ser mostrado, certas belezas tanto mais encantam quanto mais ocultas permanecem.

E foi o comportamento de nossas conterrâneas do Nordeste que me fez lembrar da história de Lady Godiva. Essa senhora, que viveu na Inglaterra séculos antes de Cristo, até hoje é famosa por ter cavalgado nua pelas ruas de sua cidade. Porém não foi para exibir sua beleza que ela fez esse passeio equestre. Na verdade, seu motivo era bem mais nobre do que o das citadas moças brasileiras.

Diz a lenda que seu marido era cobrador de impostos, o que ele fazia com voracidade escandalosa. Se bem que, comparado com seus colegas brasileiros, qualquer cobrador de impostos, por mais voraz que seja, não passa de um principiante. Pois bem, Godiva tinha um coração de ouro e sofria com as privações que o povo passava para pagar tanto imposto. Daí que ela pediu ao marido que diminuísse a cobrança. Ele respondeu — sem pensar na besteira que estava fazendo — que só atenderia o pedido se ela desfilasse pelas ruas vestida apenas por seus belos cabelos. Pra quê?! Não tardou muito e lá estava ela, ao natural, como tinha vindo ao mundo, atravessando a cidade de lado a lado.

Dizem que os moradores fizeram um acordo e prometeram que ninguém olharia para aquela dama encantadora, que os defendia de forma tão generosa. Tenho minhas dúvidas de que todos tenham cumprido a promessa, mas o que importa é que os impostos foram realmente diminuídos. Oh, se a esposa de algum dos nossos governantes se dispusesse a se sacrificar assim pelo povo brasileiro! A gente nem ia exigir que ela fosse bonita. E também jurava que não ia olhar. Talvez não cumprisse, mas como é que os políticos iam exigir isso de nós, se também eles tão raramente cumprem o que prometem?

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A casa de meus avós

quarta-feira, 06 de outubro de 2021

Ao vê-la chorando, o pássaro faz uma curva no ar e volta para dentro da gaiola

Ao vê-la chorando, o pássaro faz uma curva no ar e volta para dentro da gaiola

Meus avós maternos moravam na Vila Nova, nos fundos de um estreito corredor que ia dar no morro do Colégio da Fundação Getúlio Vargas. Eu nasci ali pertinho, em frente ao que era então a estação de cargas da Leopoldina Railway e hoje é o batalhão da PM. Nem o trem me levou, nem a polícia me prendeu. Simplesmente fui ficando, mudei de bairro duas ou três vezes e agora só mudo de onde estou para dar cumprimento ao que escrevi num modesto poeminha que começava assim: Quando eu morrer/ quero ficar/ se a morte tem algum nexo, / ali atrás da prefeitura, / na altura.

Pois foi no pequeno espaço do quintal da casa de vovô e vovó (na verdade, “casa da vovó”, que desde cedo a gente aprende quem é que de fato manda no pedaço) que eu vivi aqueles anos que Casimiro de Abreu chamou da “aurora da minha vida”. Se ali não havia as bananeiras e os laranjais de que fala o poeta, havia para compensar uma horta e alguns pés de café. Na época própria, os grãos eram esparramados no chão de terra batida e ficavam à disposição do sol, para que este, quando fosse servido, os secasse. E, claro, havia um pilão e o cheiro de café que subia pelo ar e continua subindo pelas paredes da memória, como diria Belchior.

Mas o principal era o barranco. Sim, havia um barranco, um altíssimo barranco, pelo qual se subia através de meia dúzia de degraus cavados na terra. Grande era a emoção de percorrer aquela densa Amazônia de esquálidos arbustos, um pé de goiaba e outro de pitanga. Santas e boas horas passamos ali, eu e meu irmão, tentando pegar passarinhos que nunca nos deram confiança, tentando entender o milagre da física que permitia às formigas carregarem uma folha com o dobro do tamanho e do peso delas. E pensando muito seriamente no futuro: quando o bolo de fubá ficaria pronto, quando vovô nos daria a bala que havia prometido, quando... quando... quando...

E foi na casa dos meus avós que pela primeira vez percebi o quanto pode a beleza feminina, o poder da beleza feminina. Antes de contar esse caso, conto outro, que me ocorreu agora. Eu estudei um ano de espanhol. Claramente havia um buraco no horário e para fechá-lo o colégio lançou mão do primeiro professor que achou disponível, que era de espanhol, como podia ser de mandarim ou de física quântica. Nada e menos ainda foi o que me ficou dessas aulas, mas sei que certa vez lemos um soneto, do qual ainda me lembro o assunto e o verso final. No poema, um pássaro está preso e sua dona, que o adora, fica com pena dele e abre a porta da gaiola. Mas, ao sentir que perdia o bichinho amado, põe-se a chorar. Ao vê-la chorando, o pássaro faz uma curva no ar e volta para dentro da gaiola. E o poeta exclama no último verso: “O quanto pode uma mulher que chora!”

Mas deixemos o Colégio Cêfel e voltemos à casa dos meus avós. Meu irmão sofreu um acidente e precisava de atendimento médico domiciliar, o qual nunca lhe faltou, porque ele contava com a sorte de ter uma tia bonita. Por causa dela, diariamente o médico ia visitar seu paciente predileto e aproveitava para uma demorada conversa com a tia do doentinho. Não quero cometer o pecado de achar que ele alimentava segundas ou terceiras intenções. Mas, se alguma coisa valem as impressões de uma criança, é certo que ele vivia encantado com aquela moça bonita, que tão cordialmente o recebia e que transformava um quarto de sofrimentos num jardim florido e perfumado.

... Quando o futuro chegou, obrigou-nos a sair da casa de meus avós e, primeiro ele, depois ela, também os dois saíram daquela casa e foram morar com os anjos, prêmio que eles tinham conquistado por antecedência, ainda aqui na Terra, aturando os netos com santa paciência. Também meu irmão já se libertou das grades deste mundo e voou para o céu, onde com certeza a toda hora agradece a Deus por ter lhe dado uma tia bonita e um médico que sabia apreciar a beleza feminina.

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Cabeças cortadas

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Nunca mais namorou, nem às segundas nem em qualquer dos outros miseráveis dias da semana

É muito chato esse negócio de dar más notícias. Não é à toa que os gregos cortavam a cabeça do soldado que retornasse da batalha falando em derrota. No mundo moderno, nem sempre as cabeças são literalmente cortadas, mas é difícil não antipatizar com o primeiro sujeito que vem nos dizer que estamos ficando careca, como se fosse ele o causador universal da queda de cabelos.

Nunca mais namorou, nem às segundas nem em qualquer dos outros miseráveis dias da semana

É muito chato esse negócio de dar más notícias. Não é à toa que os gregos cortavam a cabeça do soldado que retornasse da batalha falando em derrota. No mundo moderno, nem sempre as cabeças são literalmente cortadas, mas é difícil não antipatizar com o primeiro sujeito que vem nos dizer que estamos ficando careca, como se fosse ele o causador universal da queda de cabelos.

E há maneiras simbólicas de decapitar o intrometido que vem nos esclarecer sobre coisas que preferíamos deixar na penumbra, quando não na completa escuridão. É o que prova o caso de uma senhora que há muitos anos se sentiu na obrigação de dar certa má notícia à sua melhor amiga. Vamos chamá-las de Marta e Maria, que têm a vantagem de ser dois nomes bíblicos e por serem tão universais não se aplicam a ninguém em particular.

Uma das amigas, digamos que Maria, arrumou um namoro, o que não seria nada demais não estivesse ela na idade em que a gente, para ser gentil com uma dama, diz que ela “não é mais criança”. E esse namoro tinha uma particularidade: só se consumava e consumia às segundas-feiras. O cavalheiro alegava que, nos demais dias da semana, trabalhava no Rio de Janeiro. Quem acreditaria nisso? Maria acreditava. Ou pelo menos enganava a si mesma tão bem que ela mesma acreditava que acreditava. E assim prosseguia o namoro, toda segunda: jantares, cinema, passeios de carro, curvas e mais curvas por onde inquietas mãos passeavam. Daí que Maria voltava para casa sonhando com o casamento que poria fim àquelas segundas-feiras corridas e incompletas. Maria sonhava com um amor de sete dias por semana, sem intervalos. E nessa ilusão passava os dias na esperança de um só dia.

Aí é que Marta entra na história. Certa de que sua amiga estava sendo enganada, pôs-se a investigar. E tanto que acabou chegando à descoberta nada espantosa de que o D. Juan era casado no Rio de Janeiro e vinha à nossa cidade nas segundas-feiras para prestar assessoria a empresas. Talvez viajasse para outros cantos nos restantes dias da semana e onde quer que prestasse assessoria técnica, prestasse também assessoria amorosa a alguma Maria local.

Marta, amiga tão amiga, acabou contando. Contou à Maria que o galã das segundas-feiras era também um galã de segunda e jamais a transformaria em primeira-dama. Maria mudou de cor, chorou e rangeu os dentes. Depois acusou a amiga de fofoqueira e invejosa. Quando lhe faltaram acusações medianamente civilizadas, fez um discurso que não pode ser apresentado neste horário, em respeito às crianças presentes.

Verdade que Maria terminou o namoro. Nunca mais namorou, nem às segundas nem em qualquer dos outros miseráveis dias da semana. Mas é verdade também que nunca mais falou com Marta. Perdeu o namorado e resolveu completar a desgraça perdendo a amiga. Assim foi, porque assim somos. Preferimos as mentiras doces às verdades amargas. Se sonhamos com rosas e aparece qualquer Marta para nos dizer que os espinhos existem, ficamos revoltados. Cortamos a cabeça dessa Marta imprudente, que é para ela não vir nos enfiar a realidade pelos olhos, quando os tínhamos fechados justamente para enxergar apenas a ilusão que cultivávamos por trás das nossas pálpebras cansadas.

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Conversa pedagógica

terça-feira, 07 de setembro de 2021

— Alô! Alô! É o professor Macário?

— Ele mesmo. A senhora podia falar um pouquinho mais alto?

— O senhor é o professor Macário, que os alunos chamam de professor Macabro?

— Essa eu ainda não conhecia. O próprio. Em que posso ajudar? Por favor, fale mais alto.

— Não posso, professor. É confidencial.

— Não seria melhor então a senhora vir ao colégio, falar pessoalmente?

— Professor Macabro... Desculpe... Macário. Tem alguém mais ouvindo nossa conversa?

— Não, ninguém. Qual o nome da senhora, por favor?

— Alô! Alô! É o professor Macário?

— Ele mesmo. A senhora podia falar um pouquinho mais alto?

— O senhor é o professor Macário, que os alunos chamam de professor Macabro?

— Essa eu ainda não conhecia. O próprio. Em que posso ajudar? Por favor, fale mais alto.

— Não posso, professor. É confidencial.

— Não seria melhor então a senhora vir ao colégio, falar pessoalmente?

— Professor Macabro... Desculpe... Macário. Tem alguém mais ouvindo nossa conversa?

— Não, ninguém. Qual o nome da senhora, por favor?

— A telefonista é de confiança? Sei lá, ela tem cara de fofoqueira. Fica ali dentro daquela gaiola, ouvindo tudo quanto é ligação...

— Dona Marly é de total confiança. Mais de dez anos na cabine telefônica.  Olha, eu estou esperando um pessoal do sindicato. A senhora podia falar do que se trata?

— É confidencial, professor. É sobre um aluno do colégio. Mas, pelo amor de Deus, não fala pra ele que eu liguei, não. Tem certeza que D. Marly não tá escutando?

— Por favor, qual o nome da senhora, quem é o aluno e de que se trata? Acho melhor a senhora vir falar comigo.

— Já tou falando, professor. Professor Mancada... desculpe... Macabro... desculpe ... Macário. É o seguinte... Sincomoda de ir ver se a D. Marly não tá de orelha em pé, ouvindo a gente?

— Minha senhora, desculpe, mas estou esperando o pessoal do sindicato...

— Vou falar. Já que é pra falar, falo logo. É a professora de português, professor. Sem brincadeira, ela é macabra.

— Qual professora de português? O que tem ela?

— A professora do Luizinho... Sabe quem é Luizinho, não sabe? Ou vai me dizer que não conhece os alunos do seu colégio!

— O colégio tem mil e duzentos alunos, minha senhora. Olha, o pessoal do sindicato já está lá fora... Qual é problema do Luizinho?

— Do Luizinho, não! Contra o Luizinho, isso sim!

— E qual o problema... vá lá!, contra o Luizinho?

— A redação, professor. Merecia pelo menos nove e meio.

— E quanto ele tirou?

— Só sete e meio ...Uma injustiça. Deus no céu tá vendo que é uma injustiça.

— E o que tem de errado na correção da professora, minha senhora? Aliás, qual é mesmo o seu nome?

— Eu sei lá o que tem de errado, Seu Macabro! Eu ainda não vi a redação. Ela não devolve porque sabe que a nota é injusta.

— Mas se a senhora ainda não viu a redação...

— E precisa ver? O Luizinho, se quiser, vai ser escritor. Mas o que ele quer mesmo é ser motorista de caminhão.

— Eu posso falar com a professora. Qual a série do Luizinho?

— Eu lá vou denunciar meu filho, professor!

— Mas sem saber quem é, vou fazer o quê?

— Já vi que o senhor também quer ferrar o Luizinho! Pela mãe do guarda! Não é à toa que chamam o senhor de Macabro. Pode deixar, eu mesma vou aí falar com a professora. E fala com a fofoqueira da Dona Marly pra parar de abelhar a conversa dos outros.

— Alô! Alô! Minha senhora... Desligou... Eu é que devia ter sido motorista de caminhão!

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Coisas do coração

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O pai quase morreu do coração ao receber a notícia

O pai quase morreu do coração ao receber a notícia

Já lhe disseram alguma vez que você não tem coração? Talvez tenham tido razão, mas não se preocupe muito, só mesmo em sentido figurado é que alguém pode andar por aí desprovido desse músculo tão pequeno e, no entanto, tão absolutamente vital. Mas é um fato lamentável que, ao menos como metáfora, o que não falta no mundo é gente sem coração. Por outro lado, há quem faça das tripas coração para agradar a pessoa amada, quem ouça a voz do coração na hora de tomar uma decisão, e o Novo Testamento nos ensina que Maria guardava tudo no coração. Às vezes levamos um susto e o coração quase nos sai pela boca. Mas também somos poupados de muitos sustos e de muitas tristezas porque o que os olhos não veem o coração não sente. Tem até quem goste tanto de futebol que leve o nome do seu time gravado no coração. Alguns carregam um pesado coração de pedra, outros, um breve coração de passarinho. Enfim, tem coração para todos os gostos.

O que talvez nunca lhe tenham dito, por ser improvável, é que você seja um caso de dextrocardia. Se lhe atirarem isso na cara, antes de reagir com outro palavrão, lembre-se um pouco de sua 9ª série. Foi lá que a professora de português lhe ensinou que destro significa direito, por oposição a sinistro, que significa esquerdo. Claro, você não é um cara sinistro, você é gente boa. Mas destro você deve ser, pois assim é a maior parte da humanidade. Também deve ter aprendido naquela ocasião que cárdio tem a ver com coração, e aí estão as palavras cardíaco, cardiologista, cardiograma e outras para comprovar. Depois desse retorno ao passado, já mais tranquilo, você começa a achar que dextrocardia talvez não seja nenhuma ofensa. Mas, então, que coisa é essa, designada por palavra tão esquisita? Antes de mais nada, repito que é muito improvável que este seja o seu caso. Improvável, mas não impossível.

São raríssimos os casos de dextrocardia no mundo. Até bem pouco tempo, eu só tinha visto isso no cinema. Os mais velhos hão de se lembrar do filme “007 contra o satânico dr. No”. Pois esse satânico personagem levou um tiro no peito e não demorou muito a entrar em cena novamente, só para atormentar a vida de James Bond, então interpretado pelo ator Sean Connery. Pois o dr. No escapou de morrer com aquele tiro justamente porque era o que a medicina chama de dextrocardíaco.

Enfim, a dextrocardia existe, e tanto que nos Estados Unidos recentemente uma jovem de dezenove anos foi diagnosticada com esse problema. Aliás, os médicos garantem que não é problema, quando muito é uma curiosidade, o que tornou a moça merecedora de figurar na imprensa e nas redes sociais. Diz ela que o pai quase morreu do coração ao receber a notícia, mas a mãe, mais pé no chão, apenas riu e comentou: “E você levou dezenove anos para perceber isso, Coração?!” Pois não é que a jovem tinha ido ao médico apenas por causa de uma tosse esquisita e sem razão conhecida?

Tendo alongado tanto a história, talvez já seja hora de dizer, afinal, que bicho de sete cabeças é esse. Pois bem, dextrocardíaco é a pessoa que tem o coração do lado direito do peito, como você (suponho) e eu (com certeza), e não do lado esquerdo. No mais, recomendo que da próxima vez que você for ao cardiologista, peça a ele para auscultar à esquerda e à direita. Porque, pode ser, quem sabe? Enfim, não custa nada tirar a dúvida.

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Foot-ball

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Atualmente, os pais se enchem de esperança se o herdeiro faz algum sucesso ainda nas escolinhas

Atualmente, os pais se enchem de esperança se o herdeiro faz algum sucesso ainda nas escolinhas

“No íntimo achava que o neto caminhava para a desgraça. Deixar um emprego como o da estiva, para se meter na vadiação de jogo de bola”. Assim a velha Filipa lamenta que Joca, seu neto, saia de Araruama para jogar futebol no Rio, o que, para ela, era “deixar um emprego de homem para se meter com moleques”. E olha que o rapaz era uma revelação, um excelente center-forward, como se dizia na época. Um craque. E mais: ele ia direto para o Fluminense e de saída recebeu quinhentos mil réis, só para pagar a viagem até a capital. Já no primeiro jogo arrasou com tudo quanto foi center-half, back e goal-keeper que encontrou pela frente. Mas não era apenas a avó que sofria com a escolha de Joca, também a mãe, tanto que “Sinhá Antônia chorou muito” no dia em que viu a foto do filho na capa de uma revista esportiva.

Essa história está nas páginas de Água-Mãe, romance de 1941, em que o flamenguista José Lins do Rego deixa seus personagens anteriores descansando lá no Nordeste e coloca outros em ação no litoral do Estado do Rio, principalmente em Araruama e Cabo Frio. Joca, cuja família vivia da pesca, da sobriedade e do anonimato, devia cumprir o mesmo destino, mas, atuando pelo Tamoios cabo-friense, revelou um surpreendente talento para o foot-ball. Surpreendente porque era fora da curva, fora da história de sua gente, que desde sempre se ocupava das águas e dos barcos, longe dos gramados e da bola.

A leitura de Água-Mãe nos faz entender que nem sempre esse esporte teve o prestígio de que desfruta atualmente. Pelo visto, as mães choravam mais do que riam quando um filho descambava para esse campo malvisto, malquisto: os campos de futebol. Que jogassem pelada nas ruas e nas areias para se distrair com outro meninos, vá lá. Mas fazer disso profissão... era um desgosto irremediável. Bem diferente de agora, quando os pais se enchem de esperança se o herdeiro faz algum sucesso ainda nas escolinhas. Basta que o molequinho meta dois gols numa partida para que se comece a ver nele um novo Pelé, no mínimo um Rivelino.

Mas não precisamos voltar a 1941 para ver que nem sempre o mundo da bola foi tão rico e glamoroso. Em Estrela Solitária, biografia de Mané Garrincha, Ruy Castro revela a vida difícil que o craque das pernas tortas levou, mesmo depois de consagrado no Botafogo. Dormia nos vestiários do clube, assinava contratos em branco e jogava mesmo estando machucado. E ai de Garricha se ao seu lado não estivesse o anjo protetor chamado Nilton Santos.

Os jogadores de hoje, pelo menos os maiores, aqueles que chegam às grandes equipes, ao futebol europeu ou às seleções, esses são os nossos ídolos, quase deuses, e não falta quem mais os adore do que adoraria Deus, se nEle cresse como crê em Cristiano Ronaldo ou em Neymar Jr. E basta que um deles torça o dedão do pé para que a nação toda entre em estado de vigília. Faturam muitos milhões jogando bola e outros mais como garotos-propaganda das grandes marcas. Há dias, Cristino Ronaldo fez despencar as ações da Coca-Cola pelo singelo gesto (mas não ingênuo ou impensado) de tirar de sua frente duas garrafas do refrigerante durante uma entrevista. Sem patrocínio, não!

Nada contra o futebol ou seus praticantes, amadores ou profissionais. Se ganham muito dinheiro, ganham fazendo o que sabem e não assaltando a bilheteria, nem criando leis para desfrutarem de altos vencimentos e altas mordomias. Para falar a verdade, eu gosto bem de um joguinho do Flamengo ou da Seleção Brasileira. Não sou dos mais apaixonados, mas também não sou indiferente. Quanto ao que aconteceu a Joca... melhor você ler o livro.

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