Blog de roberiocanto_18846

Grande alma

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Ir aonde ninguém queria ir, servir a quem ninguém queria servir

Quando eu era criança ainda se ouvia uma anedota sobre o desconhecimento que às vezes pesa sobre pessoas supostamente muito conhecidas. Era um diálogo entre professor e aluno:

─ Menino, quem foi Getúlio Vargas?

─ Sei não, professor.

─ Como não sabe?  Getúlio é um brasileiro muito importante.

─ Só se ele é do time reserva, professor, porque o titular eu sei todinho.

Ir aonde ninguém queria ir, servir a quem ninguém queria servir

Quando eu era criança ainda se ouvia uma anedota sobre o desconhecimento que às vezes pesa sobre pessoas supostamente muito conhecidas. Era um diálogo entre professor e aluno:

─ Menino, quem foi Getúlio Vargas?

─ Sei não, professor.

─ Como não sabe?  Getúlio é um brasileiro muito importante.

─ Só se ele é do time reserva, professor, porque o titular eu sei todinho.

Me lembrei dessa história quando numa conversa informal mencionei Albert Schweitzer e pelas caras circundantes vi que ninguém sabia de quem eu estava falando. No entanto, trata-se de alguém que joga brilhantemente no primeiro time dos maiores humanistas de que se tem notícia. Um sujeito que se fosse mais conhecido talvez nos animasse a sermos, não igual a ele, não sonhemos tão alto, mas ao menos um pouco melhores do que somos.

Não que eu seja conhecedor de sua vida ou de sua obra, mas comecei a admirá-lo desde que há muitos anos li um de seus famosos pensamentos: “A gentileza é a suprema manifestação do espírito humano”, o qual encontrei recentemente com outra roupagem: “Assim como o sol derrete o gelo, a gentileza evapora mal-entendidos, desconfianças e hostilidades”.

Num tempo em que pessoas grosseiras, vulgares, violentas e sem ética despertam paixões e enchem de entusiasmo pseudopatriótico verdadeiras multidões, a figura gentil desse alemão falecido em 1965, aos 90 anos, é uma lição que merece ser conhecida e meditada.

Aos trinta anos Schweitzer já era músico, filósofo e teólogo consagrado na Europa e então resolveu estudar medicina para tornar-se missionário na África. Formado, internou-se no Gabão, então sob domínio francês, e construiu um hospital. Acompanhado da esposa, que era enfermeira, passou a tratar os nativos vítimas de doenças tropicais e da lepra e a pregar o Evangelho. Sua dedicação à causa que abraçara não impediu que, durante a Primeira Grande Guerra, por ser alemão, fosse preso pelos franceses.

Finalmente libertado, retomou sua obra e só voltava à Europa para fazer conferências, lançar livros e apresentar-se em concertos, sendo Bach seu íntimo conhecido. Todos os recursos obtidos por essa intensa atividade artística e religiosa foram aplicados no sonho de sua vida: ir aonde ninguém queria ir, servir a quem ninguém queria servir. Em 1951, recebeu com todo merecimento o Prêmio Nobel da Paz, tendo acumulado vários outros prêmios e honrarias, que em nada abalaram a sua modéstia e a sua entrega ao trabalho que havia posto como missão de sua vida. O hospital que ele construiu, a partir de um galinheiro, e que ele ampliou e para o qual foi levando médicos e equipamentos, ainda está lá, e naquele chão repousou o coração desse homem que bem merece ser chamado, como Ghandi, de “Mahatma: grande alma”.

Sem dúvida, a melhor maneira de fechar esta crônica é acrescentar a ela outro pensamento de Schweitzer: “Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seus semelhantes”.

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Havia uma senhora que previa o futuro

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Aposto que Eva achou que Deus não ia ficar sabendo

Havia uma senhora que previa o futuro. Esse negócio de prever o futuro, vocês sabem, é profissão de alto risco, porque o futuro costuma desdenhar de nossas previsões. Saímos de manhã e não levamos guarda-chuva porque o céu azul garantia bom tempo para o dia inteiro, e voltamos para casa embaixo do maior temporal. Tudo indica que no dia seguinte vai chover, e amanhece um dia amarelado de sol. Amores que eram eternos não duraram mais que um ano; encontros casuais transformaram-se em amores definitivos.

Aposto que Eva achou que Deus não ia ficar sabendo

Havia uma senhora que previa o futuro. Esse negócio de prever o futuro, vocês sabem, é profissão de alto risco, porque o futuro costuma desdenhar de nossas previsões. Saímos de manhã e não levamos guarda-chuva porque o céu azul garantia bom tempo para o dia inteiro, e voltamos para casa embaixo do maior temporal. Tudo indica que no dia seguinte vai chover, e amanhece um dia amarelado de sol. Amores que eram eternos não duraram mais que um ano; encontros casuais transformaram-se em amores definitivos.

O dono da gravadora a que os Beatles foram oferecer suas composições dispensou-os porque, na sua avaliação, músicas com guitarra não tinham mais futuro. Em 1936 o New York Times afirmou que era impossível para um foguete ultrapassar a atmosfera terrestre. Sobre o telefone, algum sabido declarou que o aparelho carecia de valor, pois não tinha como tornar-se um eficiente meio de comunicação. Aposto que Eva achou que Deus não ia ficar sabendo, e até hoje estamos aguentando as consequências da besteira que ela fez.

Diz o ditado que o futuro a Deus pertence, e não há provas de que Deus ande fornecendo a programação para o dia seguinte, como fazem as emissoras de televisão.  Apesar disso, desde que o mundo é mundo, tem gente dando palpites sobre os tempos vindouros. Até acredito que existam pessoas com sensibilidade acima da média e que por isso podem ouvir e sentir coisas que escapam às menos providas desse dom. Gente que nos encontra e vai logo falando “Estou te achando abatido. Você está doente?” Juramos que não, aliás, há muito tempo não nos sentíamos tão bem, em perfeita saúde. Poucas horas depois, estamos com um resfriado que nos atormenta por três dias. Mas daí a achar que são adivinhos, penso que vai uma boa distância.

Pois a tal senhora dada a adivinhações teve a oportunidade de fazer uma previsão bem assustadora a meu respeito. Uma pessoa da minha família foi consultá-la e ouviu dela perguntas sobre a possível existência de parente com tais e tais características. Era eu, não tinha dúvida. “Essa pessoa está sujeita a um grave acidente de trânsito entre os dias X e Y deste mês”. Pra quê! Lá foi a parenta me recomendar que ao menos por alguns dias ficasse em casa e não entrasse em nenhum veículo motorizado.

Obrigado a trabalhar e cético com relação a essas premonições, toquei a vida em frente. Fiz uma viagem de ônibus no período, mas não me lembrei da advertência. Até o dia em que fui a um evento no que tinha sido o Colégio da Fundação Getúlio Vargas. O prédio ainda hoje lá está, no alto do alto morro. Tendo decidido descer antes do fim da programação do dia, acabei pegando carona num caminhão estropiado que tinha ido lá fazer não sei o quê.

Aí, sem mais nem menos, me lembrei de que aquele era o último dia da previsão fatídica. E o velho caminhão zanzava de um lado para outro da estradinha estreita, rangia, resmungava e se inclinava para o precipício. Num dado momento, o bicho deu um solavanco que assustou até o motorista, que o conhecia de longo tempo. Temi que a profecia fosse se cumprir. E como não sou herói nem ateu, desci rezando para que chegássemos sãos e salvos ao pé do morro. Afinal, como diz o ditado espanhol, “Eu não creio em bruxas, mas que existem, existem”.

Bem, não morri, como os leitores já concluíram. Pelo menos até o dia em que escrevo esta crônica, sinto-me razoavelmente vivo. No dia em que vocês a estiverem lendo... sabe Deus. Termino desejando que todos vocês tenham uma vida longa e feliz, a cada dia cheia das melhores previsões para o futuro (e que todas elas se concretizem).

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Milagre policial

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Para a polícia, esse silêncio em si mesmo já era uma confissão de culpa

Para a polícia, esse silêncio em si mesmo já era uma confissão de culpa

Não podemos deixar de admirar a eficiência da nossa polícia e, se dos muitos crimes cometidos apenas uns poucos chegam a ser resolvidos, isso se deve à falta de colaboração dos criminosos, que têm o mau hábito de não deixar provas ou ao menos indícios que facilitem os trabalhos de investigação. Além do mais, quando questionados, negam com a cara mais limpa: “Que isso, doutor, nesse dia eu tava pescando em alto mar, o Zé do Anzol e minha mãe são testemunhas”. Enfim, ninguém tem a gentileza de deixar um recibo quando, por exemplo, saca dinheiro numa agência bancária com a apresentação não de um cheque, mas de um fuzil ou de outros artefatos semelhantes, que estes sim estão em grande evidência na vida e na morte do cidadão brasileiro.

  Além do mais, os bandidos têm uma atividade muito diversificada, atuando não só no sistema bancário, mas também nos transportes de mercadorias, nos golpes financeiros, no confisco de celulares, no contrabando de cigarros, na falsificação de remédios e até modestamente fazendo saques no caixa de lojas e restaurante. Mesmo aqueles bandidos contra os quais existe um amontoado de evidências não se pode fazer muita coisa, porque nunca lhes faltam álibis, sem falar que há também aspectos políticos, econômicos, sociais e outras relevantes razões que impedem uma boa e isenta investigação policial.

Mas recentemente tivemos uma mostra de como a polícia às vezes consegue agir com rapidez e eficiência. Se bem que, no presente caso, os homens da lei tenham contado com a ajuda de populares. Explico: enquanto as autoridades não chegavam, a população tratou de ir dando uns chutes, empurrões e sopapos no suspeito, que, aliás, apanhou em silêncio. Sim, suspeito de ter roubado o celular de uma dessas pessoas que andam pelas calçadas distraídas, mais preocupadas em ouvir, falar e digitar do que em olhar em volta para ver se alguém está se aproximando com intenções duvidosas. Com a chegada da polícia, o homem foi entregue à Justiça, ou à justiça, e levado para a delegacia.

Num instante, lá estavam parentes, vizinhos, amigos e curiosos a chorar e a gritar que o rapaz era inocente. A mãe, em prantos, jurou que o filho era incapaz de fazer mal a uma humilde mosca, de pisar numa barata tonta ou tirar o doce que uma formiga estivesse laboriosamente carregando. O acusado tinha, diziam todos, um coração infantil, até porque, era dotado de acentuado nível de limitação intelectual. Ou seja, não era mais do que uma cabeça de criança num corpo de adulto.

O delegado, no entanto, matou a conversa apresentando o relato do interrogatório, segundo o qual o acusado se recusara a dar esclarecimentos e apenas se manifestara para alegar seu direito constitucional de ficar calado. É o exemplo que nos dão os poderosos da República quando apanhados enfiando no próprio bolso alguns trocados do dinheiro público. Sendo a justiça brasileira igual para todos, embora nem todos sejam igualmente iguais, também o suspeito de roubar um celular pôde valer-se do direito constitucional de ficar calado. Para a polícia, esse silêncio em si mesmo já era uma confissão de culpa.

O que prejudicou um pouco a credibilidade do documento assinado e apresentado pela egrégia autoridade foi a comprovação posterior de que o suposto autor do roubo, além de não ter a cabeça boa, era surdo-mudo. Nessa condição, convenhamos, teria um pouco de dificuldade para se expressar e de invocar seu direito constitucional de permanecer calado, até porque desde que nascera não tinha feito outra coisa na vida senão ficar em silêncio.

Que o roubo tenha acontecido está ainda por ser provado. Mas não há dúvida de que o surdo-mudo ouviu e falou. Não duvidemos, pois milagres ainda mais extraordinários têm acontecido em muitas delegacias brasileiras.

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Conversa de beiral

quarta-feira, 01 de junho de 2022

— Moça, dá licença. Não se assusta não. Dá licença pra eu sentar aí do seu lado.

— Que maluquice é essa, cara! Tá brincando comigo? Olha que eu pulo agora mesmo. Tou brincando não.

— Eu sei... Claro que não! Foi por isso que eu me resolvi também.

— Não se aproxima não. Nem vem com lero-lero, igual naqueles filmes que o policial vem chegando cheio de conversa e, de repente... Ninguém vai me fazer desistir não. Fica aí, se não eu pulo agora mesmo. Tou avisando.

— Vim te fazer desistir nada, menina. Eu vou é pular também.

— Moça, dá licença. Não se assusta não. Dá licença pra eu sentar aí do seu lado.

— Que maluquice é essa, cara! Tá brincando comigo? Olha que eu pulo agora mesmo. Tou brincando não.

— Eu sei... Claro que não! Foi por isso que eu me resolvi também.

— Não se aproxima não. Nem vem com lero-lero, igual naqueles filmes que o policial vem chegando cheio de conversa e, de repente... Ninguém vai me fazer desistir não. Fica aí, se não eu pulo agora mesmo. Tou avisando.

— Vim te fazer desistir nada, menina. Eu vou é pular também.

— O quê? Quem vai pular sou eu. Não se meta, se me faz o favor.

— Dá licença. A gente sentado conversa melhor. Dá licença. Ui, que altura!

— Fica longe. A laje é muito grande. Fica aí mesmo.

—Tá certo. Eu tava lá embaixo, no meio da multidão, ouvindo a conversa do povo. Tem gente querendo que você salte logo, tem uns até reclamando da demora. Um já tá nervoso, precisa ir embora e você não se decide.

— Decidida eu tou. E muito. Só tou aqui passando uns pensamentos a limpo.

— Pra que passar pensamento a limpo, se você vai morrer?  Besteira. Mas tem gente chorando, uma freira tá rezando um terço. Uma velhinha prometeu àquela Nossa Senhora lá da Polônia... como se chama? Acho que é Mediugorje. Se você não pular, ela vai pagar uma viagem à Disneylândia pro sobrinho que faz 12 anos hoje.

— Pois esse moleque vai ficar sem conhecer o Pato Donald, sinto muito.  E não é Polônia, é Iugoslávia.

— Já reparou como tem desocupado nessa cidade? Ninguém trabalha mais não? Há mais de uma hora lá na rua, olhando aqui pra cima.  E de lá nem dá pra te enxergar direito.

— Agora juntou mais gente, depois que você chegou.

— Uns dizem que você tem câncer, outros que teu marido te deixou.  O que mais tá correndo é que você roubou a loja onde trabalha, o patrão descobriu. 

— Se no Brasil alguém se matasse por ter roubado, lá em Brasília não tinha 8o andar que chegasse. Mas larga de conversa fiada: você quer mesmo se suicidar?

— Pois é. Eu vi você e pensei: ela vai se matar por essas mixarias, muito mais motivo tenho eu. Vamos de mãos dadas?

— Você acha câncer mixaria?

— Você tem câncer???

— Deixa de ser besta, cara!  Vira essa boca pra lá!  Meu problema é outro.  E o teu, qual é?

— Mulher ...

—Te traiu?

— Minha namorada há dois anos, veja só! Grávida!

— Mas isso é motivo pra alguém se matar? Francamente, cara. Um rapaz bonito igual você. Ah, vai embora. Me deixa morrer sossegada. Aliás, como você entrou aqui, se os bombeiros tentaram até arrombar a porta?

— Eu sou chaveiro. Quer dizer, fui. Abro qualquer porta. Será que aquele helicóptero é por nossa causa? Tamos ficando famosos.

— Vamos aparecer na televisão... Suicídio duplo não é todo dia que tem.  E eu tão mal vestida. Também, que diferença vai fazer depois? Mas essa de se matar porque a namorada tá esperando um filho teu... deixa de ser frouxo, homem.

—Nada disso. Eu nunca transei com ela. “Só depois do casamento”, “Sou virgem”, “Minha religião não permite”, e eu acreditando! Grávida! De outro, é claro!

— Não me faça rir. Que zinha que você arrumou, hem? Em todo caso, melhor agora do que depois do casamento. 

— E você? Vai ver que teu motivo é pior do que o meu. 

— É uma história muito comprida. Precisava de tempo pra contar. 

— Me conta, agora fiquei curioso.  Faz o seguinte: a gente desce para tomar um chope e você me conta a história.

— Mas depois a gente volta, que eu não vim aqui pra dar esse espetáculo todo à toa.

— Depois a gente vê. Primeiro a gente toma um chope. Depois a gente vê o que faz.

 

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A moça que gostava de estudar

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Nunca se sabe o que esperar de uma pessoa que gosta de ler e de estudar

Nunca se sabe o que esperar de uma pessoa que gosta de ler e de estudar

No bairro onde passei alguns anos de minha infância, estudar não era coisa a que se desse grande valor. Para a maioria das famílias, se o filho aprendesse o suficiente para conseguir emprego numa fábrica ou numa loja, já estava muito bom. Passar disso era ambicionar demais, já era estar querendo se meter a filho de doutor. Minha mãe, no entanto, era uma exceção, não sem motivo ela se chamava Conceição (no oficial); Ceção (para as coisas do dia a dia) e uma de suas ideias fixas era arrumar colégio para nós. De modo que eu e meus irmãos tínhamos grande dificuldade de escapar dos estudos. Apesar disso, eu comungava da crença geral entre a garotada local de que estudar contrariava a natureza humana. Não podia ser normal a gente ter que renunciar a jogar pelada ou apostar corrida pelas ruas para se enfurnar entre quatro paredes, contemplando a professora diante de um quadro negro, fazendo umas contas malucas que ninguém entendia.

 Mas havia nesse bairro certa mocinha que gostava de estudar. Aquilo rompia com a harmonia do universo. Lá ia ela carregando livros e cadernos e, ao contrário de nós outros, com a cara mais feliz do mundo. Sim, ela não apenas ia ao colégio, mas ia contente. Verdade que, sendo alguns anos mais velha do que nós, frequentava uma escola no Centro e ainda se dava ao luxo de ir e vir de bicicleta, enquanto nós marchávamos a pé para o grupo escolar da vizinhança. O mais assombroso era que havia quem garantisse que ela gostava também de ler, isto é, não se limitava aos que os professores mandavam, mas por conta própria enfiava os olhos e a cara em livros que ela mesma procurava.

 Diante de tamanha estranheza, também os adultos tinham a suspeita de que a moça era, como então se dizia, meio gira. Ou seja, meio pancada, meio abestada. Para falar francamente, meio maluca. A família, no entanto, tratava-a com naturalidade e até mesmo com orgulho. A mãe dela chegava a olhar a gente de cima, como se dissesse que a filha não era da nossa laia, muito pelo contrário, era alguém que gostava de estudar. Alguém que podia até vir a ser datilógrafa em algum escritório ou secretária em alguma fábrica, por que não?

Nós, meninos, nunca tivemos dúvida sobre a pouca sanidade mental da moça. Alguns, mais benevolentes, a consideravam esquisita; os demais a tinham na conta de doida varrida. Quando ela passava pedalando, pontas de cadernos e livros olhando para fora da pasta abarrotada, a gente parava para contemplar com curiosidade e um pouco de medo ─ nunca se sabe o que esperar de uma pessoa que gosta de ler e de estudar. Mas o fato é que a moça nunca nos fez outro mal, a não ser o mau exemplo que dava e que alguns pais logo começaram a querer que os filhos imitassem. Isso não me afetou muito porque, como já disse, mesmo que eu não quisesse, Ceção me mandava para as aulas. Quanto aos livros, muito cedo também eu viria a contrair a incurável doença de gostar deles.

Aquela misteriosa moça só deixou de ser para nós um mistério quando tomou um tombo de bicicleta. Aconteceu que certo dia ela não conseguiu equilibrar em cima de duas rodas o corpo e a sabedoria e ambos vieram ao chão. A pobrezinha ficou esparramada no meio da rua, numa deselegância que ninguém podia imaginar numa pessoa tão estudiosa. Um cidadão chegou para socorrê-la antes que ela pudesse arrumar a saia, tendo ele, no entanto, a infeliz gentileza de acalmá-la dizendo: “Não adianta esconder que eu já vi tudo!” Mas levantou-a com cuidado, enquanto os moleques juntavam pertences dela e cheios de cerimônia os entregavam.

A partir daquele dia deixamos de ver aquela jovem como um ser estranho, quase do outro mundo. Foi com certeza o momento em que de uma vez por todas compreendemos que os intelectuais são apenas seres humanos e que, como todos os mortais, estão sujeitos a quedas e fracassos.

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A operária do crime

quarta-feira, 04 de maio de 2022

Bem tranquilos estavam todos da casa, quando a polícia bateu à porta

Bem tranquilos estavam todos da casa, quando a polícia bateu à porta

O jornal garante que a velhinha tem 89 anos, é bisavó, e está em plena forma. Condenada a 32 anos de prisão, não se deu por achada, não deixou que a polícia a achasse e por muitos anos continuou trabalhando no que melhor sabia fazer: roubos e furtos, que são sua especialidade desde jovem. Não que ela fuja de tarefas mais pesadas, se a situação assim o exigir. Aos 80 anos namorava um ex-PM, mas tendo o bravo militar cometido a imprudência de juntar algum dinheiro, ela resolveu se ressarcir do tempo perdido com aquele romance e rompeu o relacionamento da forma mais radical possível: matou o desafortunado companheiro (desafortunado nos dois sentidos: ficou sem a fortuna e sem a vida). Nessa empreitada, no entanto, precisou recorrer à ajuda do filho. Este, menos competente do que a mãe, foi parar na cadeia, enquanto ela saiu por aí batendo asas e carteiras, para grande desassossego da população.

Mas quem desconfia de uma velhinha que se chama Socorro, tem os cabelos brancos e aquele doce olhar que é a maior doçura de toda vovozinha, até mesmo a de Chapeuzinho Vermelho? De nada desconfiou a família que a empregou como cuidadora, nada menos do que cuidadora! Bem tranquilos estavam todos da casa, quando a polícia bateu à porta, não por causa daquela veneranda senhora, que, apesar da idade, ainda se esfalfava amparando quem mais do que ela precisava de ajuda para ir vivendo. É que, por acaso, mero acaso, os roubos na região de repente haviam aumentado exponencialmente.

O azar da ilustre dama foi, portanto, ter arrumado um trabalho honesto, ainda que com desonestas intenções. Tinha naquele lar um pouso certo e seguro, uma base de operações a partir da qual podia exercer sua atividade laboral nos prédios circunvizinhos, sem as amolações e contratempos comuns a outros trabalhadores que moram em bairros pobres, desses que a polícia visita com regularidade. Só foi descoberta porque os investigadores, ao entrarem no apartamento para as perguntas de praxe, levaram o maior susto: “A senhora por aqui!”. Estava esclarecida a onda de roubos que obrigara a polícia a elaborar as mais variadas explicações, quando a explicação era tão simples e ao mesmo tempo tão inacreditável. A família empregadora não desconfiava de nada e estava bem satisfeita com o seu trabalho. Mas, por via das dúvidas, foi conferir as joias da casa. Não faltava um só botão. A empregada cumprira fielmente o que prometera ao ser contratada: não mexer em nada que não lhe pertencesse.

Ainda agora o STF está analisando a tal “revisão da vida toda”. Trata-se de saber se a aposentadoria do trabalhador brasileiro deve ser calculada pelo que ele recebia a partir de 1994, ano do Plano Real, ou se desde que ele começou a contribuir para o INSS, caso tenha sido antes daquela data. Na avançada idade em que se encontra, e estando em atividade a tanto tempo, sem nunca ter tirado férias, a dedicada operária do crime certamente tem direito a um salário a altura de sua longa dedicação à profissão que abraçou. Alguém dirá que ela não contribuía com a Previdência, muito pelo contrário. É verdade, mas não será a única dentre os nossos compatriotas a viver às custas da nação sem ter contribuído para a sua riqueza.

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Uma personagem da minha infância

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Tanto a missa quanto o pão doce são capazes desses milagres

Tanto a missa quanto o pão doce são capazes desses milagres

A maior ingratidão é que nem do nome dela eu me lembro. Mas, também, para uma criança de 7 ou 8 anos a pessoa chamar-se João ou Maria, Zezé ou Greta Garbo nenhuma diferença faz. Nem por isso deixa de ser ingratidão. Pois ela foi uma personagem importante no filme da minha infância, nunca protagonista, mas por algum tempo uma figurante de destaque. Morava próximo à nossa casa e, todo domingo, ainda de madrugada, batia levemente na nossa porta (o que agora me faz lembrar os versos daquela “Balada da neve”, de Augusto Gil: “Batem leve, levemente, / como quem chama por mim. / Será chuva? Será gente? / Gente não é, certamente, / e a chuva não bate assim”). Também madrugadora, mamãe já tinha nos acordado e aprontado. E então aquela santa vizinha nos levava de Olaria até o Centro para assistirmos à missa na catedral.

 Íamos a pé, que nenhum de nós tinha dinheiro para o luxo de pegar ônibus, e nem sei se havia ônibus àquela hora. Ela, embora tão ou mais pobre do que nós, talvez pudesse pagar sua própria passagem, mas e as cinco ou seis crianças que ela levava com os cuidados de uma galinha que tomasse conta de pintinhos alheios? Talvez ela sonhasse que daquela ninhada sairia algum santo. No que me diz respeito, reconheço tristemente que esse sonho, se existiu, não se realizou, e só me consola a certeza de que ela não chegou a ver os ralíssimos juros de santidade que resultaram de seus excelsos investimentos em mim. Mas, talvez, quem sabe, algum dos outros meninos pôde compensá-la por aquelas caminhadas nas frias manhãs dos domingos friburguenses.

Não sei por que não íamos à missa numa das igrejas do bairro, tão mais próximas de nossas casas. Duas hipóteses me ocorrem. Pode ser que ela acreditasse que a santidade não se alcança sem algum sacrifício, no que estaria coberta de razão. Veja se Irmã Dulce dormia em palacetes ou se Francisco de Assis andava de carruagem. E o apóstolo Paulo, que teve que cair do cavalo e ficar cego para entrar na linha? Outra possibilidade é que ela queria premiar nosso bom comportamento, e para isso não bastavam as conhecidas padarias do bairro. Uma padaria no coração da cidade, na praça principal... era uma emoção a mais, um acontecimento na vida de crianças tão humildes.

Além do que, provavelmente sacrificando boa parte dos seus ínfimos ganhos de operária, depois da missa ela nos levava à padaria e prodigamente pagava um pãozinho doce para cada um de nós. Era só isso, era tudo, era demais. Voltávamos para casa de alma leve, que tanto a missa quanto o pão doce são capazes desses milagres, quando neles se põe um coração puro e uma barriga vazia.

Só voltei a vê-la muitos anos e muitos pecados depois, quando fui com um grupo de alunos à Casa dos Pobres. Eu a reconheci imediatamente, mas ela apenas me olhou sem me olhar. Marcos nos conta (capítulo 8, versículos de 22 a 26) que Jesus curou um cego em duas etapas e ele só iria enxergar com clareza na segunda delas. Na primeira, disse ter visto os homens e que eles lhe pareciam árvores andando. Então, provavelmente eu era para ela não mais que uma árvore que se mexia no meio de outras árvores inquietas.  E assim eu me afastei, e talvez a velha senhora, cabelos tão alvos, sentadinha no banco, ouvindo as vozes infantis que a rodeavam, vagamente se lembrasse das crianças que ela muito antigamente levava à missa. Não sei se alguma delas foi ou irá para o céu, mas quem as conduzia certamente tem lugar garantido, e será recebida por São Pedro como a Irene de Manuel Bandeira: “Entra, Irene, você não precisa pedir licença”.

 

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Uma boa dose

quarta-feira, 06 de abril de 2022

Sem afobação e sem vacilação, trate de fazer sua encomenda

Sem afobação e sem vacilação, trate de fazer sua encomenda

Eu sei que você toma um golinho de vez em quando e não sou eu que vou criticá-lo por isso. Beber não é problema, o problema é ficar bêbado, o que sempre tem graves consequências, às vezes graves demais. Mas são coisas bem diferentes e é de muita sabedoria e de elogiável prudência não confundir uma com a outra. Então, se você toma seu traguinho e não perturba ninguém, acho que está no seu direito. Não chego ao exagero sem pé nem cabeça daquele samba antigo que dizia “Eu bebo sim, tô vivendo, tem gente que não bebe, tá morrendo”. Quem vive bebendo não só está se matando aos poucos como, pior ainda, frequentemente destrói a vida de outras pessoas.

Mas, como estou sabendo por fonte fidedigna que você já bebia com moderação muito antes de as propagandas serem obrigadas a dar esse conselho (que os fabricantes sinceramente desejam que ninguém siga), e como sei que você está nadando não em bebida, mas em dinheiro, vou dar uma notícia que com certeza vai lhe interessar. Uma destilaria escocesa acaba de lançar um uísque ao moderado preço de R$ 635.000,00 a garrafa. O produto tem 81 anos e talvez seja mais velho do que você. Ou seja, quando você acordou para a vida, ele já estava dormindo num barril de carvalho, do qual só saiu agora, para ser finalmente vendido nos mais elegantes botequins do mundo. Tão elegantes que não se chamam botequim, embora o sejam, apenas com toalhas mais limpas e garçons com luvas.

Não é necessário que você saia correndo para adquirir três ou quatro das 288 garrafas que foram produzidas. Elas ficarão em exposição até que o dono resolva colocá-las à venda. Por outro lado, também não é bom demorar muito para tomar a iniciativa, porque você não é o único ricaço do mundo que gosta de um bom uísque. Ainda mais como esse, que mistura os sabores de chocolate, canela, trufa, caramelo, gengibre e abacaxi, além do uísque propriamente dito.

Sem afobação e sem vacilação, trate de fazer sua encomenda ou acabará perdendo essa oportunidade, como já perdeu outra da maior importância: a de saborear o segundo colocado na lista dos “mais velhos”, que durante 80 anos esperou pacientemente no barril, até ser vendido pela bagatela de R$ 1.000.000,00 a garrafa. Não, eu não errei na quantidade de zeros.

De minha parte, continuarei me conformando com uma cerveja de vez em quando e um vinho sempre que possível. Mas, se você realmente comprar o uísque de um milhão ou mesmo o de 635 mil e me chamar para um brinde, aceitarei o convite pelo prazer de sua companhia e para não parecer orgulhoso. Prometo não fazer como a raposa da fábula que, após tentar sem sucesso alcançar o cacho de uvas, sentencia: “Estão azedas”.

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As mães ucranianas

quarta-feira, 23 de março de 2022

Se Deus não segurar o dedo nervoso dos grandes deste mundo, virão as bombas todo-poderosas

Lembro-me mais ou menos de uma frase do Padre António Vieira sobre a guerra. Também mais ou menos sei onde ela está e vou procurá-la. Ei-la: “A guerra é aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal algum que não se padeça, ou não se tema; nem bem que seja próprio e seguro”.

Se Deus não segurar o dedo nervoso dos grandes deste mundo, virão as bombas todo-poderosas

Lembro-me mais ou menos de uma frase do Padre António Vieira sobre a guerra. Também mais ou menos sei onde ela está e vou procurá-la. Ei-la: “A guerra é aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal algum que não se padeça, ou não se tema; nem bem que seja próprio e seguro”.

Já no tempo dele era assim. Muito antes dele já era assim, terá sido sempre assim, desde o momento em que o homem primitivo, que mal havia levantado a cara do chão, sentiu-se capaz de segurar um pedaço de pau ou de atirar uma pedra e ferir outro homem. E hoje, milênios e milênios depois, primitivos continuamos, agora com armas mais destrutivas do que quanto pau e pedra possam existir no universo. Armas capazes de ferir não um, mas milhares, milhões; armas inteligentes, certeiras, fatais. E, se Deus não segurar o dedo nervoso dos grandes deste mundo, virão as bombas todo-poderosas. Talvez nem se possa falar delas no plural, pois bastará uma para que tudo vire pó, fumaça, nada. E para que finalmente a vida se cale no planeta Terra.

A cada minuto a guerra nos atinge. Não há como ignorá-la, ainda que tentemos fechar os olhos, tapar os ouvidos, calar a consciência. Bombas explodem, prédios desabam, pessoas correm, tentando superar estradas, cruzar fronteiras. Vão carregando sacos ─ roupas, remédios, documentos ─ e carregando-se uns aos outros. O andar trôpego e a cara sofrida com que avançam penetram em nosso coração. Não o coração dos românticos, aquele músculo incessante que trazemos no peito e que na verdade nunca se alegra ou se entristece. Mas aquele coração que é a nossa espiritualidade, nosso sentimento do mundo, nossa própria humanidade.  O coração que nos distingue das coisas brutas como a pedra, e mesmo dos outros animais que compartilham este mundo conosco ─ serpentes, jumentos, passarinhos.

E todos nós temos rezado, cada um a seu jeito, pois há muitas maneiras de rezar e as melhores independem das palavras. Sim, rezamos por todos os que sofrem e morrem em meio ao barulho, a fumaça e a escuridão, perdidos entre os gritos e gemidos que ressoam naquele pedaço do mundo tão distante e tão ao alcance do nosso coração. Rezamos por russos e ucranianos, que o sofrimento e a dor não conhecem nacionalidade. E se rezamos com maior fervor pelos ucranianos é porque eles estão sendo agredidos, porque são mais fracos, porque morrem mais. Sim, rezemos pelos ucranianos, e ainda mais pelas mulheres ucranianas que sofrem pelos maridos e pais que estão no fragor da batalha ─ ou talvez não mais, talvez já tenham abandonado a luta e estejam estirados no chão, sujos de terra e de sangue.

E mais do que por todas, rezamos pelas mães ucranianas, que ora se escondem, ora correm, ora se encolhem, e disfarçam suas fraquezas e seus medos, para fazer deles força e determinação. Lá vão elas, bolsas despencando do ombro esquerdo, a mão direita segurando uma criança, e mais outra que dorme no seu colo. Quem sofre mais do que essas mães? Nem mesmo os pequeninos, que esses ao menos têm um vulto que os afaga e conduz, ainda que aos trancos e barrancos. As mães ucranianas lutam, temem e tremem sozinhas ─ por si e por todos que elas amam.

Mas nessa calamidade composta de todas as calamidades, rezemos também pelas mães russas, muitas das quais têm se manifestado contra a guerra, apesar de reprimidas pelo governo. Pois de que vale para qualquer mãe ganhar uma guerra, conquistar um país e perder um filho?

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O banheiro do Papa

quarta-feira, 09 de março de 2022

Talvez nos faltem governantes com o espírito empreendedor daquele cidadão uruguaio

Talvez nos faltem governantes com o espírito empreendedor daquele cidadão uruguaio

É difícil abordar certos assuntos sem perder a elegância. Por exemplo: fiquei sabendo que a ONU estabeleceu dezenove de novembro como o Dia Mundial do Banheiro. A princípio achei engraçado, porque, embora existam as celebrações mais esquisitas que possam ser imaginadas, celebrar o vaso sanitário me pareceu um exagero além da conta. No entanto, mais do que engraçada, a data é triste.  No Brasil, a efeméride se destina a lembrar às autoridades em particular e ao povo em geral que mais de 35 milhões de brasileiros não têm onde se aliviar senão indo atrás do poste ou no meio do mato. Ou então o sujeito faz o que tem que fazer num penico e joga fora, caia onde cair, azar de quem estiver passando por perto na hora em que alguma coisa estranha sair voando pela janela.

Já no Brasil colônia os escravos tinham entre outras tarefas igualmente honrosas a de recolher de manhã o trono que seus senhores haviam enchido no dia anterior, colocá-los no ombro e ir até a praia ou rio mais próximo e despejar ali o precioso conteúdo que, equilibrando mal e mal, entornando aqui e respingando ali, iam levando pelas ruas afora. Aliás, na falta de praia ou rio, qualquer recanto ou esquina da cidade servia para receber esse presente matinal. A poluição era completa. A visual ainda podia ser evitada, sempre era possível virar o rosto para o outro lado. O problema maior era a olfativa, porque ninguém aguenta ficar por muito tempo sem respirar, e aos pulmões humanos mais convém um ar empesteado do que a falta de ar. Sem falar que mal cheiro não pede licença para existir, entra por uma janela e sai pela outra, não sem antes percorrer todos os cômodos da casa.

Não sei se assistiram ao filme o Banheiro do Papa. Pedindo licença pelo spoiler, vou contar. Numa cidadezinha do lado de lá da fronteira Brasil - Uruguai corre a notícia de que João Paulo II em pessoa vai passar por ali. A expectativa é de que milhares de pessoas, de ambos os países, se acotovelem para ver o Sumo Pontífice. Como a população local é bem pobre, todos começam a pensar num jeito de aproveitar a oportunidade para ganhar algum dinheiro. Ou seja, assim como aconteceu com o Natal e tudo mais, o que era espiritual virou comercial. Nos dias que antecederam ao grande evento, cada habitante investiu o que podia ou não podia em alguma coisa de que os turistas viessem a precisar ou quisessem levar como lembrança. A maioria recorreu aos seus supostos dotes culinários e, em consequência, ao longo das ruas por onde desfilaria a comitiva papal havia comida suficiente para matar a fome de todos os fiéis desde o ano zero da Era Cristã.

Um deles, no entanto, se fez uma pergunta mais oportuna: onde esse povo vai se aliviar depois de comer tudo isso? Assim pensando, investiu o dinheiro que não tinha na construção de um banheiro. Mas pobre dá tanto azar na vida que nem o Papa consegue amenizar e a passagem de João Paulo foi tão rápida que ninguém teve tempo sequer para um adeusinho. O máximo que a população viu foi a poeira dos carros que passavam em alta velocidade. O triste fim da história é que ninguém chegou a sentir fome e todo mundo foi embora sem comer e sem precisar, como diz o eufemismo, ir ao banheiro. De modo que o engenhoso construtor ficou ainda mais pobre, mais endividado e provavelmente menos católico.

Talvez nos faltem governantes com o espírito empreendedor daquele cidadão uruguaio. Administradores capazes de fazer com que cada brasileiro usufrua desse direito tão básico e tão esquecido: um banheiro onde possa se trancar, se sentar e ficar pensando na vida. Mas não façamos mal juízo dos nossos homens públicos e das, com licença da má palavra, mulheres públicas. Talvez todos eles pensem — com razão — que brasileiro pobre come tão pouco que não tem como nem por que correr ou recorrer ao vaso sanitário.

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