D. Marta ficou nervosa à toa e mandou parar, como se ele tivesse culpa do tamanho do Brasil
D. Marta ficou nervosa à toa e mandou parar, como se ele tivesse culpa do tamanho do Brasil
Miguel era diferente por seu próprio tipo físico, que conseguia ser alemão e roceiro ao mesmo tempo, com aqueles cabelos em fogo sobre a cara avermelhada, o nariz descascando na ponta. Vestia uma imutável jaqueta de couro, fosse inverno ou verão. E ria, vivia rindo. Ria da descompostura que levava das colegas, em cuja conquista batalhava o tempo todo; ria dos conceitos que obtinha nas provas, exibindo-os para a turma e explicando: “Esse professor não me entende...” Ria das dúvidas que lançavam sobre seu talento de cantor e instrumentista, afirmando que mesmo os grandes astros tinham enfrentado a descrença antes de atingirem a fama. Nada podia magoá-lo e todos gostavam dele. Divertiam-se com sua elegância brega, deixando crescer a unha do dedo mindinho, coisa que julgava o fino da distinção; aceitavam sua ignorância simpática; engoliam suas respostas descalibradas, para as quais não havia réplica: “Dizer para a turma o que entendi desse texto... Professor, será que, no lugar disso, não dá pra apresentar um sucesso do Roberto Carlos, não? As gatas aí da sala estão a fim de um som romântico, professor”.
Embora não fosse simplesmente acomodado, Miguel nunca ficava triste por causa dos insucessos escolares. Se a Matemática insistia em ser um mistério impenetrável, pior para a Matemática, não era por causa de uns números sem pé nem cabeça que ele iria deixar-se abater. Um professor dizia que a Linha do Equador era imaginária... “E vale a pena estudar um negócio que nem existe de verdade?” O outro queria fazê-lo acreditar que o Português nascera do Latim, idioma falado pelos antigos romanos, mas como acreditar nisso se outro dia passou um filme em que os bravos soldados de Roma esbravejavam em Inglês, coisa fácil de perceber pelos yesses e nous que apareciam o tempo todo? Numa aula, D. Marta mandou-o localizar o Estado do Rio no mapa do Brasil, país grande que não tem mais fim. Miguel deu a partida lá de cima no Amazonas e veio correndo o dedo por todo o território nacional. Já estava quase em Minas Gerais quando D. Marta ficou nervosa à toa e mandou parar, como se ele tivesse culpa do tamanho do Brasil. Não conseguindo entender a complicação que os professores faziam, só continuou a estudar porque da última vez em que pedira aumento de salário, o patrão se saíra com um monte de conversa fiada que, resumida, significava isso: Pelo estudo que tem, você ganha até demais.
Abraçado ao violão, tentava impressionar as garotas, desfiando todas as canções possíveis sobre dor de cotovelo. No recreio, o pessoal ia chegando e ficava olhando os dedos nodosos de Miguel pulando de uma corda para outra, tentando produzir sons delicados, mas arrancando do instrumento apenas uma fala bruta e desarmoniosa como a própria mão que a produzia. Quando lhe perguntavam por que raramente trazia os livros, mas nunca se esquecia do violão, respondia que nunca tinha visto juntar mulher em volta de livro.
No fim do ano Miguel foi informado de que os professores não tinham condições de promovê-lo à série seguinte, e que seria melhor ele repetir o ano para superar algumas deficiências e coisa e tal. Terminada a explanação, Miguel armou uma cara de funda preocupação e deu uma resposta que bem define sua atitude diante da vida: “Isso aí que o senhor falou, tudo bem. Agora, eu queria saber se é verdade que no ano que vem não vão mais me deixar entrar em sala com o violão. Aí, já é prejudicar uma carreira, é ou não é?”
Mas no outro ano Miguel voltou, e o violão também. Vê-los na aula era como assistir pela segunda vez à mesma comédia, sem que por isso ela perdesse a graça. “Bom, eu não compareci à prova porque ontem eu vinha ouvindo umas musiquinhas no ônibus. Acredita que dormi, acordei lá no ponto final e perdi a hora? O que me atrapalha, professor, pode crer, é esse meu amor à arte”.
O colégio conseguiu ensinar pouco mais do que pouca coisa a Miguel. Ele, no entanto, ensinou muita coisa a todos do colégio. Ainda outro dia foi visto, empoleirado no alto de um poste, talvez trocando lâmpadas, talvez consertando linhas telefônicas, a cara mais vermelha, o nariz mais descascado, um sol que parecia concentrar-se todo no cabelo amarelo de Miguel. Lá estava ele, com a mesma alegria criança que sempre mora em seu coração, com sua lição de otimismo e coragem. Consciente de suas limitações intelectuais, faz graça com elas; sabedor de sua feiura, comporta-se como galã irresistível e, por mais que a vida o maltrate, não deixa de sentir e demonstrar amor por ela. Pendurado no poste, por mais que o sol lhe bata no rosto, por mais incômoda que seja a posição em que se acha, não deixa de acenar para um conhecido que passa lá embaixo.
Você costumava dizer, Miguel, que não tinha jeito para aprender. Talvez seja verdade. Mas você tem algo mais importante do que isso, que é o seu jeito para ensinar. Ensinar a gente a aceitar a vida, mesmo quando ela se comporta como uma velha rabugenta e nos trata a chineladas.
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