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A lição de Dorian Gray

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Os dias vão-se embora, sem nos pedir desculpas por tamanha indelicadeza

Os dias vão-se embora, sem nos pedir desculpas por tamanha indelicadeza

Infelizmente, não sou dessas pessoas que nunca envelhecem. Pois é o que acontece com certa senhora que conheci tempos atrás, sendo ela então uma trintona e eu um molecote de quinze. Estivemos afastados por mais de uma década e, quando nos reencontramos, eu quase dobrara a idade e ela não passara dos 35, conforme honestamente me confessou, com aquele ar heroico de quem resolve assumir de vez toda a verdade. Outra vem diminuindo os anos com tal velocidade que ela e o filho mais velho já estão quase empatados. Não há o que estranhar nesses fenômenos, pois os cientistas afirmam que espaço e tempo não passam de ilusões criadas pela pequenez da inteligência humana. Tudo é relativo, como diria Einstein.

Portanto, não estará faltando com a verdade quem, tendo 60 anos, sinta-se com 40 e assim os declare. Eu não ouso duvidar de ninguém, mas às vezes sou mal interpretado. Outro dia vi uma aluninha da alfabetização contemplando uma placa fixada na parede do colégio. Perguntei-lhe se ela estava lendo as palavras ali escritas e obtive como resposta um sonoro “rua Monsenhor Miranda”. Talvez achando que eu estivesse cometendo o pecado de duvidar de sua sabedoria, a pequena leitora declarou com ar triunfante: “Eu já leio até de pensamento”. Quer dizer: ela não precisava ficar pronunciando as palavras para que até mesmo um burrão como eu entendesse que ela só podia estar lendo.

No livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, o personagem, à custa de muita safadeza, consegue não envelhecer. Em compensação, mantém escondido um retrato em que vão se acumulando todas as marcas do tempo e das torpezas cometidas pelo seu dono. Não parece boa maneira de permanecer jovem. É só ler o livro para ver que Dorian Gray, que pretendia enganar o tempo, não se deu bem com o truque. Sim, bom seria manter o corpo forte e liso, sem que, no entanto, a alma enrugasse. Mas a lição que o romance nos dá é que isso não é possível. Para não envelhecer, só mesmo morrendo jovem, mas essa solução não agrada a ninguém. Certamente não agradaria àquele ancião que, ao atingir um século de existência, ouviu de um repórter a pergunta sobre como era completar 100 anos. O velho simplesmente respondeu que a outra opção era pior.

Enfim, os dias vão-se embora, sem nos pedir desculpas por tamanha indelicadeza. Tomás Antônio Gonzaga, poeta do Arcadismo brasileiro, dá uma bela cantada na sua idealizada Marília, convidando-a a fazer “de feno um brando leito” e aproveitar “do prazer de sãos amores” porque “sobre nossas cabeças/sem que o possam deter, o tempo escorre;/ e para nós o tempo, que se passa,/ também, Marília, morre”.

É um bom conselho. Talvez melhor ainda seja o que se pode depreender desse pensamento do próprio Wilde: “Ser bom é estar em harmonia consigo mesmo. E não ser é ver-se forçado a estar em harmonia com os outros”. Sim, eis o problema de quem não aceita envelhecer: atormentar-se diante do espelho, vivendo mal consigo mesmo, na vã esperança de parecer bem para os outros.

Para encerrar, outra sentença de Oscar Wilde. Não sei se essa é um bom conselho (no seu tempo ele não era considerado o tipo de quem se podia esperar bons conselhos). Ei-la: “Para recuperarmos a juventude só precisamos repetir as nossas loucuras”.

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Por una cabeza

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Um votinho a menos e ele não teria ido para o cadafalso

Um votinho a menos e ele não teria ido para o cadafalso

Um voto é apenas um voto. Ou seja: muito pouco. Mas às vezes um mísero votinho pode fazer grande diferença. Por exemplo: todos nós sabemos que Maria Antonieta, rainha da França, não era a rainha da simpatia. Tanto que era depreciativamente chamada de "a Austríaca", como se ter nascido na Áustria fosse em sim mesmo um defeito (embora de lá também tenha nos saído Adolf Hitler). Mas assim o povão e até mesmo gente da corte se referiam a ela, sempre às escondidas, que ninguém era besta de falar às claras qualquer coisa que desagradasse a Sua Majestade. Também o marido, Luís XVI, não era lá essas coisas, basta dizer que se casou no palácio e na Igreja aos quinze anos, mas só sete anos depois se casou na cama. Enquanto isso, dizem as más línguas, Maria Antonieta ia se divertindo como podia e com quem podia.

Portanto, não era nada de se estranhar que todo mundo acreditasse na lorota segundo a qual Maria Antonieta, durante um passeio pelas ruas de Paris, teria perguntado por que lá do lado de fora de sua luxuosa carruagem só tinha gente de cara infeliz, gente com cara de quem passava fome. "O povo não tem pão", responderam-lhe. A rainha, como ainda hoje fazem os políticos em campanha, rapidamente deu solução para o problema: "Se não têm pão que comam brioches". Uma santa! Uma anta! Para encurtar a conversa, direi que Sua Majestade perdeu completamente a cabeça ao ser guilhotinada, numa das mais famosas consequências da Revolução Francesa. Como se sabe, mais de 2.500 cabeças rolaram naquele período, inclusive a de um tal Jacques-René Hérbert, o jornalista que estava entre os principais caluniadores e acusadores da rainha. Enfim, provou do próprio veneno.

Agora vejamos o que Maria Antonieta tem a ver com um voto a mais ou a menos. Pois bem, o marido dela, o já citado Luís XVI, foi julgado pela Justiça, se é que se pode chamar de justiça julgamentos motivados por rancor e medo, dois sentimentos que o rei ainda inspirava. Votaram 721 jurados, 360 pela absolvição do réu. Não é necessário fazer muita conta para concluir que Luís XVI foi condenado por 361 votos. Um votinho a menos e ele não teria ido para o cadafalso, nem ele nem sua esposa, a até hoje tão (mal) falada Maria Antonieta.

Outra situação em que um voto fez tremenda diferença foi na Revolução Americana. Dentre as muitas questões que a nova nação tinha a resolver, figurava a da escolha do idioma. Porque o que mais tinha na América do Norte da época era estrangeiro. Ainda hoje se diz que em Nova York são falados 800 idiomas diferentes, tal é o número de gente de todos os cantos do mundo que lá se acotovela. Em 1775 não era tanto assim, mas um casal falando hebraico podia facilmente passar por dois carpinteiros que discutiam em francês ou por alguns moleques que se xingavam em holandês. Mas os dois principais concorrentes ao Oscar de idioma nacional eram mesmo o alemão e o Inglês. No fim da apuração, o Oscar foi para o inglês, que superou o alemão por um voto, por apenas um votinho! Ou, como se diz nas corridas de cavalo argentinas: “Por una cabeza”.

Assim se explica porque hoje em dia é muito mais comum ouvir-se um cantor romântico dizendo “I love You” do que “Ich liebe dich”.

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A triste história da mulher mais rica da África

quarta-feira, 02 de junho de 2021

Bastou o pai deixar o governo para que começassem as perseguições

Bastou o pai deixar o governo para que começassem as perseguições

Creio que até mesmo você, leitor, que tem um coração de pedra, e se tivesse dois o outro seria uma pedreira completa, haveria de se comover com a situação de uma distinta senhora africana que vê diariamente seus dois milhões e quatrocentos mil dólares se esvaírem feito água jorrando em torneira com defeito. Ela diz que é dinheiro mais limpo que a consciência de um recém-nascido, o governo diz que é mais sujo do que a fralda de um bebê que já se alimenta de papinhas. Pensando na velhice, como deve fazer qualquer pessoa prudente, a coitada juntou esses trocadinhos durante os trinta e dois anos em que o pai dela foi presidente do país e ela, presidente da petrolífera local, ou seja, a Petrobras deles.

O mais comovente da história é que, tendo sua fortuna bloqueada, aquela que era a mulher mais rica da África anda passando dificuldade para pagar as contas. Não demora muito, cortam a luz e a água de sua mansão. Tudo bem que a África não é os Emirados Árabes, nem a Alemanha, nem os Estados Unidos, mas mesmo lá ser a mulher mais rica não é pouca coisa. Por outro lado, considerando que o Fundo Monetário Internacional calcula que 24 bilhões de dólares desapareceram misteriosamente dos cofres públicos durante o governo do pai, até que a filha foi modesta, ficando, salvo erro de conta da minha parte, com apenas dez por cento do butim.

Pois bastou o pai deixar o governo para que começassem as perseguições. Dizem que ela, além de tirar uns trocadinhos da empresa de vez em quando, ainda participava de falcatruas em outros setores do governo, numa admirável prova de versatilidade e dinamismo. Há quem diga que lá, como em outros países (diferentes do Brasil, é claro), os pais costumam não enxergar as malandragens dos filhos, talvez não de propósito, mas por estarem sempre muito ocupados com suas altas responsabilidades na condução e moralização da República.

E essa madame ainda contou com a sorte de não ter posto a grana em bancos da Inglaterra, onde acaba de ser aprovada uma lei que amplia as possibilidades de o governo congelar o dinheiro que entra nos cofres do país sem explicar direitinho de onde veio e para onde vai. Dizem as autoridades que Londres, sendo uma das principais praças financeiras do mundo, se facilitasse, facilmente viraria um novo paraíso fiscal. Claro que isso deixaria a rainha muito irritada, e nunca convém irritar uma soberana que está sentada no trono há mais de setenta anos.

Eu confesso que não fiquei preocupado com essa medida, porque não tenho dinheiro nem na África, nem na Inglaterra. Para falar a verdade, nem no Brasil. Também... meu avô era funileiro, profissão que nem existe mais e meu pai, eletricista, que, como sabem os eletricistas de todo o mundo, é um trabalho que não permite a ninguém fazer fortuna. Já meu bisavô era mais abonado, posto que tinha uma carroça e com ela prestava muitos e valorosos serviços ao comércio e à indústria de nossa cidade, nos idos de 1900.

Não ser milionário tem seus inconvenientes, mas ao menos nos livra da triste experiência de, numa das muitas voltas que a história dá, perder dinheiro e ainda por cima ganhar cadeia.

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Sobre jabuticabas

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Estou pensando em me oferecer um diploma

Estou pensando em me oferecer um diploma

Creio que foi em Santa Catarina que se deu mais esse fato esquisito do infindável rol de esquesitices brasileiras. É mais uma jabuticaba. Como sabem os ecológicos leitores, diz-se que é uma jabuticaba alguma coisa que não existe em lugar nenhum do mundo, só mesmo aqui. Por exemplo, a citada fruta, cujo nome, garantem os dicionários, vem do tupi iawotikáwa. Imagine se você fosse um curumim tupi e tivesse que gritar: “O pé de iawotikáwa está carregado!” Antes que você tivesse terminado a frase os outros moleques da aldeia já teriam devorado tudo. A jabuticaba é nossa de nascença, mas só continuam sendo nossa porque nenhuma potência mundial se interessou por ela, do contrário teriam feito o mesmo que fizeram com a madeira, ouro, prata e tudo o mais que puderam carregar.

Em todo caso, esquisitice não é exclusividade nossa, existe em todo lugar. Na Índia, para dar a ela coragem na vida, costumam jogar a criança recém-nascida do alto de um prédio, enquanto lá embaixo algumas pessoas a esperam com um lençol esticado. Vai que uma dessas pessoas tira a mão do lençol para coçar o sólido nariz ou espantar uma esvoaçante mosca. Na Rússia, quem chega atrasado tem, por castigo, que engolir vários copos de vodka, sendo que muito russo deve se atrasar de propósito. Também entre nós ia faltar cachaça, se os retardatários fossem obrigados a tomar umas doses.

Falando nisso, vocês já devem ter ouvido a história do voo em que faltou comida. As comissárias de bordo lamentaram que só houvesse quarenta refeições para os trezentos passageiros. E acrescentou que aqueles que abrissem mão da refeição poderiam receber bebida grátis e à vontade. Resultado: no fim do voo estavam sobrando quarenta refeições e faltava bebida, o que prova que as pessoas que bebem são muito solidárias e generosas. Eu, se estivesse presente, ia perguntar se não dava para ficar com meia refeição e meia bebida.

Mas, voltando à jabuticaba. Um oficial da PM catarinense recebeu uma medalha e um diploma concedidos pela corporação. Até aí, nada de mais, nada mais justo de que homenagear os policiais que se destacam no honroso serviço que prestam à população. O que é um pouco de se estranhar — ou pelo menos seria estranhável em países que não têm jabuticaba — é que o diploma foi assinado pelo próprio homenageado. Ou seja: o nobre soldado homenageou a si mesmo. Diga-se, em sua defesa, que ele não participou da reunião em que o assunto foi tratado e até declarou que o diploma não deveria ter sido emitido. Quanto à sua assinatura, foi explicado que era eletrônica e, mais, que não era de sua competência indicar ou vetar nomes para aquela honraria. Mas nem por isso deixa de ser uma jabuticaba. Ainda mais porque o presidente da comissão estava presente e ainda assim não se julgou impedido de ser igualmente agraciado.

Eu também gosto muito de homenagens. Recebo muito poucas e muito mais do que mereço. Mas agora que aquele nobre militar deu o exemplo, estou pensando em me oferecer um diploma, com algum elogio que não seja muito exagerado. Para não dar na vista, vou pedir à minha mulher que assine e faça a entrega. O perigo é que ela pode olhar o papel e dizer: “Mas como é que eu vou assinar uma mentira dessas?!”

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Festa de aniversário

quarta-feira, 05 de maio de 2021

É dia de festa na casa dessa família tão tipicamente brasileira

É dia de festa na casa dessa família tão tipicamente brasileira

A menina chega ao mercadinho do bairro e entra indecisa. Pelo tamaninho, deve ter nove anos, quando muito dez. Abre a mão, da qual escapolem poucas notas e parcas moedas. Com a voz baixa de quem tem de medo da resposta, pergunta se o dinheiro dá para três pãezinhos, três salsichas e um refrigerante pequeno. É claro que não dá, mas o dono do negócio tem coração mole e diz que sim, dá até para acrescentar algumas balinhas. A menina ri, contente com a sobremesa imprevista. Do balcão, a mulher do comerciante pergunta quantos anos a menina tem. Doze, responde ela. Faço doze hoje.

Então vai ter bolo de aniversário logo mais! Exclama a simpática senhora. A menina, quase como quem pede desculpa por dar a resposta errada, diz que não, que ela nunca teve bolo de aniversário. Não tem esse costume lá em casa, não, explica com naturalidade. Aliás, nunca deve ter lhe passado pela cabeça que pudesse ter bolo de aniversário, coisa que — acredita ela — só criança rica tem. Mas quem não sente pena de uma garotinha com doze anos de idade e nove de aparência, vestindo roupas que já pertenceram a alguém maior do que ela? A mulher sente pena. Sabe que a aniversariante mora ali por perto, mas quer saber exatamente onde. A explicação é feita com poucas palavras e vários volteios das mãos. Mas dá para entender.

A mulher vai até a cidade e compra uma torta de chocolate. Leva o presente à casa da menina e chega no justo momento em que pão, salsicha e refrigerante constituem o farto jantar daquele dia. O pai, biscateiro, não está. Talvez não esteja há muito tempo. Mas agora que tem torta, a família entra em estado de celebração. A mãe e dois irmãozinhos cantam um parabéns desencontrado e batem palmas, enquanto no berço o bebê chora assustado. É dia de festa na casa dessa família tão tipicamente brasileira.

Não vamos agora endeusar a pobreza, que tem mais é que ser combatida, nem demonizar a riqueza, que ser rico não é crime, embora muitas vezes gere o crime da omissão e da indiferença. Mas não deixa de ser tocante ver essa menina que aos doze anos admite nunca ter tido bolo de aniversário, e essa família para a qual a simples presença de uma torta de chocolate é motivo de comemoração.

Está muito longe — e o mais certo é que não chegue nunca — o dia em que todas as crianças brasileiras terão pais presentes e presentes de aniversário. Por enquanto, louvemos as boas almas, aquelas ainda capazes de sair de trás do balcão da indiferença e se mover para tornar especial um dia que, sem elas, estaria condenado a se perder na sucessão de dias insignificantes e sombrios.

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É fogo!

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Álcool sempre se dá um jeito de achar

Álcool sempre se dá um jeito de achar

A ideia até que era boa, mas também as melhores costumam encontrar quem as critique. Veja-se o que aconteceu com Galileu quando ousou sugerir que a terra girava em torno do sol. Outra prova da incompreensão que cerca os pensadores verdadeiramente originais é o caso do vereador gaúcho que apresentou à câmara municipal a proposta de se pulverizar a cidade com álcool. Para provar a viabilidade e a eficácia de uma chuva etílica no combate à Covid – 19, lembrou que há muito as plantações são pulverizadas contra todo tipo de praga e que, excetuando-se as ditas pragas — gafanhotos, formigas e similares — todos consideram os resultados como a salvação da lavoura. Argumentou ainda que vários empresários locais possuíam aviões e patrioticamente concordariam em emprestá-los para a nobre tarefa de sobrevoar a região e despejar do alto a cura do coronavirus.

A bancada da oposição, talvez lamentando não ter tido a ideia antes, logo tratou de ridicularizar o colega. Alegaram com ironia que seria necessária uma lei complementar destinada a impedir que nos limites do território municipal se acendesse fósforo, ligasse o fogão ou mesmo pitasse um cigarrinho, atitudes inocentes, mas capazes de incendiar a cidade. Sem falar no perigo, que não lhes ocorreu, mas que eu não deixei passar em branco, de alguns cidadãos mais chegados a um trago irem para rua e, de boca aberta para o céu, se fartarem de graça com um produto que só pagando conseguiam adquirir nos bares e supermercados. E se as esposas ralhassem ao vê-los chegar em casa tropeçando, alegariam que, tendo esquecido o guarda-chuva em casa, apanharam o maior temporal ao sair do trabalho.

Muitos riram da boa intenção do vereador, outros alegaram, talvez com razão, que bem melhor seria combater o inimigo com as armas da ciência, e não com propostas pé de cana e sem pé nem cabeça. O problema é que as armas da ciência — vacinas, respiradores e camas hospitalares — andam em falta e álcool sempre se dá um jeito de achar. Também aqui em nossa cidade projetos de lei muito esquisitos de vez em quando atravessam a cabeça das autoridades. Contam os mais antigos que o aumento dos preços dos produtos hortigranjeiros era objeto dos debates na casa legislativa. A sessão corria tranquila, até que um vereador mais bem informado sobre economia tentou explicar que o fenômeno era causado pela lei da oferta e da procura. Pra quê? Imediatamente um de seus pares pediu a palavra e, indignado, propôs que lei tão nefasta aos interesses da população fosse declarada extinta em todo o território municipal.

Um outro teria discursado ardorosamente contra a lei da gravidade, ao saber que essa era a causa de tanta coisa grave que acontecia no mundo, como, por exemplo, a queda de aviões. Não chegou ao extremo de propor sua extinção, mas afirmou que opor-se a ela era obrigação de todo cidadão de bem. São talentos desse naipe que acabam dando origem a muitas piadas com os quais a população se vinga dos que a governam ou desgovernam. É o caso daquele prefeito a quem se atribui a intenção de acabar com as subidas dos morros, deixando apenas as descidas, facilitando assim a vida sobretudo dos mais pobres, da parte da população que, sem carro e sem dinheiro para pagar o ônibus, tem que subir os morros a pé.

Piada ou não, a ideia não foi avante, talvez porque tenham conseguido convencer Sua Excelência de que, embora tendo o inconveniente das subidas, os morros são um dos encantos de nossa cidade e tão acostumados estamos de tê-los ao nosso redor que sem eles nos sentiríamos mais desprotegidos e ainda mais pobres.

 

 

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Tim-tim!

quarta-feira, 07 de abril de 2021

Naquela época os egípcios tinham mesmo alguns costumes esquisitos

Naquela época os egípcios tinham mesmo alguns costumes esquisitos

Talvez você se espante com esse negócio de viagem turística à lua, quiçá a Marte. E se você se espanta também com o uso da palavra quiçá, lembre-se do famoso bolero “Siempre que te pregunto/ que, cuándo, como y dónde/ tú siempre me respondes/ quizás, quizás, quizás”. Não é preciso ser mestre doutor em espanhol para saber que o quizás deles é o nosso quiçá, e que ambos correspondem à nossa indecisa palavra talvez. Mas, admito, é palavra antiga e fora de circulação há muito tempo, que só a duras penas sobrevive nos dicionários.

Porém nada é espantoso neste mundo e neste mundo nada é novo. Muito menos a inteligência e a sabedoria humanas.  A prova disso são os egípcios. E a prova de que os egípcios antigos — e bota antigo nisso — tinham tanto inteligência quanto sabedoria, além de muito bom gosto, é que há mais de cinquenta mil anos já fabricavam cerveja. É a conclusão a que chegaram os arqueólogos que estavam procurando coisas bem diferentes num cemitério no deserto quando se depararam com uma verdadeira e completa fábrica da boa e velha cervejinha. E não se tratava de coisa pequena, era uma super-AMBEV, capaz de produzir 22.400 litros a cada rodada. Se for mentira ou exagero, é mentira e exagero das múmias ou dos arqueólogos, eu estou apenas repetindo o que li (talvez inventando um pouquinho).

Não sei se os nossos ancestrais companheiros de copo aproveitavam devida e democraticamente a bebida. Só o fato de a fábrica estar situada num cemitério já depõem um pouco contra eles, porque dessa má localização os estudiosos concluíram que a cerveja era usada nos sepultamentos do pessoal da elite. Pelo que entendi, os faraós não se deixavam sepultar sem pagar a última rodada e permitir que os convidados enchessem a cara durante a cerimônia de adeus. Pode ser até que eles, conscientes de seus pecados, levassem parte da produção consigo, para o caso de irem para “aquele lugar quente” onde, pelo que se sabe, a sede é grande.

Mas, enfim, naquela época os egípcios tinham mesmo alguns costumes esquisitos. Por exemplo: se você tivesse dois mil pedaços de ouro, o que faria? Gastaria tudo em cerveja? É uma ideia. Mas os arqueólogos acharam uma velha múmia com duas mil peças de ouro enfiadas na boca. Além de um grande desperdício, é o mais caro “cala a boca” de que se tem notícias.

Certamente vocês já observaram que eu falo da cerveja com alguma simpatia. Não observaram errado, devo confessar. Não que eu ignore quanto sofrimento e quanta tragédia o consumo de álcool tem causado, o quanto tem cobrado em lágrimas perdidas e vidas desperdiçadas. Mas acredito, e sou adepto, do uso moderado, de parar não na hora devida, mas muito antes dela. E o que os arqueólogos encontraram num cemitério da cidade de Abydo é prova de que beber é um hábito antigo, que certo ou errado, tem passado de copo em copo, através dos tempos, até os dias atuais. Saúde!

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Menina de rua (mas não tanto)

quarta-feira, 17 de março de 2021

 Não, não quero adotá-la. Se bem que, pensando bem...

 Não, não quero adotá-la. Se bem que, pensando bem...

Pede para falar comigo, vou pessoalmente ver quem é a tal Edilberta. Até que é bonitinha. Não é que eu, vinicianamente, ache que beleza é fundamental. Mas isso é a primeira coisa que a gente repara numa mulher, não me venha agora você sustentar o contrário, só porque sua patroa está presente. Convido a visitante a sentar-se e, a bem da verdade, essa é uma boa ação que pratico também com as mais feias e mesmo com os marmanjos. Não é sem motivo que certa senhora me considera “um cavalheiro de antigamente”. Pois bem, disponho-me a ouvir Edilberta, que deseja me entrevistar, visto que ela, chegada ontem de Fortaleza, já foi informada de que sou "uma pessoa muito considerada na cidade", vejam vocês, eu mesmo desconhecia esse fato glorioso a meu respeito.

 As perguntas são sobre as miudezas habituais: nome, idade, profissão. Ao item “sexo” quase me furtei a responder, porque até então eu achava que, só de olhar para mim, a pessoa já podia concluir, sem precisar de confirmação de minha parte. Enfim, “cavalheiro de antigamente”, vou respondendo na melhor forma da lei, como lá dizem nossos doutos advogados. Mas a entrevista vai ficando embaraçosa, à medida que Edilberta quer saber que nota eu daria à saúde no município, à educação no estado, à honestidade no país.

Minha avó me ensinou que peixe morre pela boca. Meu avô, talvez achando que provérbio demais também mata, ficava calado. Não chego a ser tão prudente quanto meu avô, mas também não saio por aí mordendo qualquer isca, só porque a pescadora é bonitinha. Levado por tão alta sapiência, eu é que começo a questionar a entrevistadora. E ela me conta uma história de cortar o coração das estátuas se é que estátuas têm coração. De família paupérrima em Fortaleza, escapou das drogas e da prostituição infantil (essa notável atração turística nacional) graças às senhoras caridosas que, naquela cidade, recolhem e acolhem meninas de rua. Durante alguns anos morou com as ditas senhoras, mas que, aos dezoito, precisou abrir vaga para outra deserdada que chegava.

Voltando ao interrogatório, Edilberta quer saber quem eu acho que é culpado por haver crianças de rua: a família, a sociedade ou o governo. A questão me parece muito complexa para ser reduzida a um x entre três parênteses possíveis. A caneta espera ansiosa e, já que demoro tanto, a própria entrevistadora me socorre, isentando a família.  Ainda assim, preciso decidir entre o governo e a sociedade (Edilberta e a caneta me olhando, concentradas). Mas, tão logo eu me decido por "ambos", a moça quer saber se eu adotaria uma menina de rua. Depois de rápidas reflexões religiosas, morais e filosóficas, respondo que sim. Pra quê !!!

 — O senhor me adotaria?

Edilberta me pergunta, me olhando nos olhos. Pois ora, ora! Aqui está essa moça, até bonitinha, a me propor essa questão assaz embaraçosa. Não fosse eu o já duas vezes citado “cavalheiro de antigamente”, teria dito alguma gracinha de duplo sentido. No entanto, limitei-me a perguntar (e um São Francisco que estava na moldura atrás de mim é testemunha) o que significava aquele “o senhor me adotaria?”

Pois bem, se vocês pensaram mal de Edilberta, estão enganados e terão que um dia responder, diante do próprio São Francisco, por esse mal pensamento. Porque, o que a moça tem a oferecer é, nada mais, nada menos do que “uma importantíssima obra cultural”, que vem a ser uma penca de dicionários ilustrados, receitas culinárias e as obras completas de José de Alencar. Adotar Edilberta significa comprar algumas dessas preciosidades, que “uma pessoa conceituada como o senhor não pode deixar de ter em sua casa”.

Pobre Edilberta! Lá se foi o pouco encanto que nossa conversa estava me proporcionando. Então, era apenas para me vender livros! Francamente, tem coisas que chateiam até um cavalheiro, mesmo dos de antigamente. Uma delas é vir com essa conversa de menina de rua, e depois querer nos empurrar José de Alencar e livros de culinária.

Delicadamente, aconselho Edilberta a ir bater em outra porta. Não, não quero adotá-la.
Se bem que, pensando bem...

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Vamos com calma

quarta-feira, 03 de março de 2021

Dentre os pecados capitais a ira é talvez o pior

Dentre os pecados capitais a ira é talvez o pior

Quem é que nunca teve um ataque de raiva? É só ler o Antigo Testamento para constatar que até Deus de vez em quando perdia a paciência com suas criaturas. Não que lhe faltassem boas razões para isso e tanto mais e melhores razões tem agora, quando os homens parecem achar que Deus não existe ou que, se existe, o problema é dEle. Pode ser que Ele esteja apenas dando um tempo à humanidade para ver se ela, por conta própria, para de fazer burrada. Mas, pelo visto, o resultado não tem sido muito bom, é só olhar para o que os homens andam fazendo uns aos outros, aos demais bichos deste mundo e à natureza. Nossa sorte é que a ira de Deus dura um triz e sua paciência dura pelos tempos eternos, in saecula saeculorum. Amém.

Sim, quem nunca viveu, ainda que uma única vezinha, esse momento em que um raio parece nos ter atingido, e tudo em volta fica vermelho, as feições se arrepiam, as mãos desatinam e a voz se desgoverna. Pudéssemos nos ver nessa hora e ficaríamos com tanta raiva de nós mesmos que jamais íamos nos permitir ficar com raiva de novo. Pena que em tais ocasiões nunca esteja por perto alguém com a calma e a coragem suficientes para colocar um espelho diante da nossa cara. Só assim veríamos o quão longe estamos de merecer o título de homo sapiens e o quão plenamente merecedores ainda somos do título de homo stupidus.

E não é por falta de conselhos. A sabedoria popular está cheia de boas recomendações que ajudam a cozinhar a cólera em fogo brando e depois deixar que ela vá esfriando por conta própria, feito panela destampada. Contar até dez ou, dependendo do tamanho do ataque, até cem ou mil é uma delas; tirar as calças pela cabeça também ajuda muito. E, no caso de a fúria se dirigir especificamente a alguém, é útil pensar contra ele as palavras mais feias, tais como onagro, sevandija, abantesma ou histrião. Pensar e calar, porque imagine as graves consequências de você, furioso, gritar ao seu interlocutor: “Você não passa de um réprobo!”  Se bem que é possível que ele reaja como aquele sujeito que, chamado de mentecapto, ficou comovido e agradeceu o elogio.

Escrever é ainda melhor, contanto que o escrito não seja enviado. Conta-se que certo general procurou Abraham Lincoln para queixar-se de um colega de farda. Após ouvir o imenso rol das acusações, o presidente recomendou que o homem lhe entregasse uma carta, registrando minuciosamente tudo o que lhe havia dito. O bravo soldado (naquele momento um soldado bravo) saiu da entrevista certo de que enérgicas medidas seriam tomadas contra seu desafeto. Dias depois, tocou no assunto com o presidente, ocasião em que foi informado de que aquela bela peça bélica e literária estava guardada, trancada e calada numa gaveta. Com espanto, o general quis saber quando afinal seus insultos chegariam aos olhos do destinatário, ao que Lincoln respondeu que, uma vez que o desabafo havia sido feito, e por escrito, o autor já devia ter esfriado a cabeça e lavado a alma. Portanto, não havia mais motivo para que a carta fosse entregue. E deu por encerrada a questão.

Acalmemo-nos, porque, pensando bem e com calma, concluiremos que dentre os pecados capitais a ira é talvez o pior, tanto que tem por patrono um demônio chamado Azazel, e pelo nome já se vê que boa coisa ele não é. Além disso, a ira é, de todos os pecados, o que mais se volta contra o próximo. Nos outros seis... Só para lembrá-lo, leitor, para que você possa melhor avaliar o quanto tem pecado ultimamente, o elenco completo é o seguinte: soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça. Pois bem, nos outros seis o mal se volta contra o próprio pecador, mas a tal da ira costuma ser despejada em cima de quem não tem nada com isso, às vezes estava só de passagem.

E se você conseguiu vencer a preguiça e ler esta crônica até aqui, sem ter ficado com raiva do autor, já obteve duas grandes vitórias. É só continuar se desviando dos outros cinco pecados e vai chegar ao fim do dia mais inocente que um passarinho voando no Jardim do Éden.

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Um americano maluco

quarta-feira, 03 de fevereiro de 2021

Mas depois que a boa velhinha voou para o céu, o melhor é deixá-la descansar em paz

Mas depois que a boa velhinha voou para o céu, o melhor é deixá-la descansar em paz

Embora nunca se tenha feito um levantamento científico sério, não tenho dúvida de que nos Estados Unidos está a maior concentração mundial de malucos. Afinal, os americanos são os maiorais em quase tudo, basta ver que nas calçadas de lá as pessoas têm que andar com cuidado para não esbarrar em algum ganhador do Nobel: cientistas, escritores, humanistas e mais uma fila interminável. Na última vez que vi a relação de vencedores, eles já tinham faturado o prêmio 352 vezes. O que nos consola é que até lugares que a gente nem sabia que existiam e muito menos que fossem países já alcançaram essa glória. É o caso de Santa Lúcia, que para mim não passava de uma clínica psiquiátrica, mas já faturou duas vezes (Literatura e Ciências Econômicas). Ainda há esperanças para o Brasil!

Apesar de ser tão importante e entregar aos contemplados uma grana preta (na verdade, nas cores do Euro), o prêmio não deixou de ser esnobado. Foi o que fez Lê Dúc Thou, do Vietname, que, tendo sido o Nobel da Paz em 1973, pediu que o deixassem em paz e não estendeu a casaca para receber a medalha nem a mão para pegar o dinheiro.

Os dados sobre os americanos, porém, são sempre superlativos. Certa vez li que se o resto do mundo comesse a mesma quantidade dos ianques a fome se alastraria (ainda mais!) pelo mundo. Se comparado, por exemplo, com um indiano, cada sobrinho do Tio Sam consome vinte vezes mais de tudo: água, eletricidade, papel higiênico e remédio, sem falar no uísque e provavelmente na cocaína. Portanto, não é de se estranhar e que, ao contrário, seja muito lógico que entre eles esteja a maior população de malucos do planeta. Para comprovar a tese, lembro o caso do sujeito que recentemente foi preso no Tenesse por estar arrobando túmulos num cemitério.

A coisa em si já é bastante doida, e ainda mais se agrava pelo motivo apresentado pelo arrombador. No fundo, um motivo muito nobre. Ele não estava arrancando dentes de ouro, nem profanando cadáveres, nem procurando algum Rolex que tivessem deixado cair no caixão na hora do sepultamento. Visto por um vigia noturno, o sujeito foi preso. Na delegacia, alegou que pretendia — simplesmente pretendia — ressuscitar a avó. Vejam vocês! Eu sempre soube que as avós fazem parte dos melhores momentos de nossa vida e, quando elas se vão, ficam para sempre entre as nossas mais doces lembranças. É só a gente pegar o álbum de fotografias ou, se você é mais jovem, o arquivo de fotos do celular para ver que não há momento algum de sua felicidade em que elas não estejam presentes, sorrindo na fotografia. Sim, amar a avó é compreensível e elogiável.  Elas merecem.  Mas depois que a boa velhinha voou para o céu, o melhor é deixá-la descansar em paz.

Ainda não está bem claro para que esse madman pretendia tirar a vovozinha do sono eterno. Talvez para pedir melhora na mesada, talvez para reclamar da pequena parte que lhe coube na herança, talvez para implorar perdão por alguma falta cometida. Fosse qual fosse o motivo, não creio que ela pudesse atendê-lo. Até porque, se lhe perguntassem se queria voltar ao mundo dos vivos, provavelmente ela, com a sabedoria que só os mortos podem ter, responderia citando o poeta baiano Leminski:

Vida e morte / amor e dúvida / dor e sorte / quem for louco / que volte.

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