A casa de meus avós

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 06 de outubro de 2021

Ao vê-la chorando, o pássaro faz uma curva no ar e volta para dentro da gaiola

Meus avós maternos moravam na Vila Nova, nos fundos de um estreito corredor que ia dar no morro do Colégio da Fundação Getúlio Vargas. Eu nasci ali pertinho, em frente ao que era então a estação de cargas da Leopoldina Railway e hoje é o batalhão da PM. Nem o trem me levou, nem a polícia me prendeu. Simplesmente fui ficando, mudei de bairro duas ou três vezes e agora só mudo de onde estou para dar cumprimento ao que escrevi num modesto poeminha que começava assim: Quando eu morrer/ quero ficar/ se a morte tem algum nexo, / ali atrás da prefeitura, / na altura.

Pois foi no pequeno espaço do quintal da casa de vovô e vovó (na verdade, “casa da vovó”, que desde cedo a gente aprende quem é que de fato manda no pedaço) que eu vivi aqueles anos que Casimiro de Abreu chamou da “aurora da minha vida”. Se ali não havia as bananeiras e os laranjais de que fala o poeta, havia para compensar uma horta e alguns pés de café. Na época própria, os grãos eram esparramados no chão de terra batida e ficavam à disposição do sol, para que este, quando fosse servido, os secasse. E, claro, havia um pilão e o cheiro de café que subia pelo ar e continua subindo pelas paredes da memória, como diria Belchior.

Mas o principal era o barranco. Sim, havia um barranco, um altíssimo barranco, pelo qual se subia através de meia dúzia de degraus cavados na terra. Grande era a emoção de percorrer aquela densa Amazônia de esquálidos arbustos, um pé de goiaba e outro de pitanga. Santas e boas horas passamos ali, eu e meu irmão, tentando pegar passarinhos que nunca nos deram confiança, tentando entender o milagre da física que permitia às formigas carregarem uma folha com o dobro do tamanho e do peso delas. E pensando muito seriamente no futuro: quando o bolo de fubá ficaria pronto, quando vovô nos daria a bala que havia prometido, quando... quando... quando...

E foi na casa dos meus avós que pela primeira vez percebi o quanto pode a beleza feminina, o poder da beleza feminina. Antes de contar esse caso, conto outro, que me ocorreu agora. Eu estudei um ano de espanhol. Claramente havia um buraco no horário e para fechá-lo o colégio lançou mão do primeiro professor que achou disponível, que era de espanhol, como podia ser de mandarim ou de física quântica. Nada e menos ainda foi o que me ficou dessas aulas, mas sei que certa vez lemos um soneto, do qual ainda me lembro o assunto e o verso final. No poema, um pássaro está preso e sua dona, que o adora, fica com pena dele e abre a porta da gaiola. Mas, ao sentir que perdia o bichinho amado, põe-se a chorar. Ao vê-la chorando, o pássaro faz uma curva no ar e volta para dentro da gaiola. E o poeta exclama no último verso: “O quanto pode uma mulher que chora!”

Mas deixemos o Colégio Cêfel e voltemos à casa dos meus avós. Meu irmão sofreu um acidente e precisava de atendimento médico domiciliar, o qual nunca lhe faltou, porque ele contava com a sorte de ter uma tia bonita. Por causa dela, diariamente o médico ia visitar seu paciente predileto e aproveitava para uma demorada conversa com a tia do doentinho. Não quero cometer o pecado de achar que ele alimentava segundas ou terceiras intenções. Mas, se alguma coisa valem as impressões de uma criança, é certo que ele vivia encantado com aquela moça bonita, que tão cordialmente o recebia e que transformava um quarto de sofrimentos num jardim florido e perfumado.

... Quando o futuro chegou, obrigou-nos a sair da casa de meus avós e, primeiro ele, depois ela, também os dois saíram daquela casa e foram morar com os anjos, prêmio que eles tinham conquistado por antecedência, ainda aqui na Terra, aturando os netos com santa paciência. Também meu irmão já se libertou das grades deste mundo e voou para o céu, onde com certeza a toda hora agradece a Deus por ter lhe dado uma tia bonita e um médico que sabia apreciar a beleza feminina.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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