Pesos e contrapesos

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Tem uma história, ainda que seja sempre humilde e quase sempre sofrida

Peço-lhe trezentos gramas de queijo. Ele entendeu, mas necessita de confirmação: “Trezentas gramas?” Longe vão os tempos em que eu torturava os alunos, querendo que pesassem as coisas no masculino e não no feminino. Mas o tempo me ensinou que, bem pesadas as coisas, mais vale um grama de comunicação do que uma tonelada de gramática. E não é que as fatias que ele põe na balança somam exatamente trezentos gramas, nem um tiquinho a mais, nem um tiquinho a menos?

Elogio sua exatidão ao calcular as fatias necessárias, e ele diz que se tivesse a mesma sorte ao escolher os números da loto, estaria rico. Como não há nenhum outro freguês esperando, estico a conversa e lhe pergunto o que ele faria se acertasse os treze pontos. A resposta me surpreende. Esse rapaz, que tão modestamente trabalha atrás do balcão de um supermercado, não sonha com iates, viagens ou joias. Não quer ter um Rolex, nem conhecer Nova York. “Se eu ganhasse muito dinheiro, voltava pra minha terra, Maceió. Ia rever minha família e meus amigos”.

Sim, seu maior desejo, que não realiza porque parcos são os seus ganhos, é simplesmente voltar à terra natal, abraçar mãe, pai, irmãos, primos e conhecidos. Fico admirado ao ver a força desses laços telúricos, o quanto o lugar em que se viveu permanece na memória, o quanto persistem no coração os laços de amor e de sangue. Diferente de tantos que jogam sonhando com altos voos, ele — que não joga — queria apenas pegar um avião e pisar de novo no chão em que se criou, abraçar aqueles que o criaram e os que junto dele se criaram.

Para quem passa os dias atendendo a vozes que vêm do outro lado do balcão, achar um ouvinte disponível é oportunidade para contar um pouco de si, mostrar que também tem uma história, ainda que seja sempre humilde e quase sempre sofrida. Pois veio da capital das Alagoas para o Rio de Janeiro na esperança de melhorar de vida, o que então significava trabalhar com um tio tão distante que ninguém mais na família lembrava que cara ele tinha. Mas sabiam o nome e, mais ou menos, o endereço. Nunca encontrou o tio, mas achou quem lhe desse produtos pra vender na praia: protetor solar, óculos escuros, cangas coloridas e o que mais aparecesse. Também vendeu água nas imediações do Maracanã e flores na entrada do cemitério.

Um companheiro de aventuras e desventuras era de uma cidade próxima e assim também ele veio para cá, onde, graças à experiência de praias, estádios e cemitérios, arrumou trabalho no supermercado. E assim vai entregando duzentas gramas disso, trezentas daquilo, quatrocentas de tudo o mais. Tão bem se deu que mandou vir a namorada, já tem um filho e até pensa em se casar.  Está bem, está feliz. Mas nos momentos de folga, nas noites de sábado ou nas manhãs de domingo, deve ainda sentir o cheiro do mar, escutar o barulho do vento, ouvir a voz da mãe, dando conselhos, e a do pai, dando ordens. De tudo isso deve se lembrar e, fosse menos prático e mais poético, daria ao que sente o nome de saudade.  Como não é poeta, e sim balconista, se conforma em dizer que, se ganhasse na loto, voltava para Maceió, sua terra natal, ia rever a mãe, o pai, os irmãos e os amigos.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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