De peito aberto

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

 

Nem vou lembrar agora a palavra pudor, que já é quase um arcaísmo

 

O nordestino não é mais o mesmo e, pelo visto, as nordestinas menos ainda.    Eis a conclusão a que cheguei depois de ter sabido pela imprensa que em Natal algumas beldades locais desfilaram pelas ruas em carro aberto, despidas da cintura para cima. Na verdade, da cintura para baixo também era grande a escassez de tecido, não havendo mais do que uns modestos pedaços de pano, tão estreitos que só mesmo olhando com muita atenção (o que eu evitei fazer) se poderia dizer de que cor eles eram. A princípio pensei que a causa da nudez pública fosse o calor potiguar, e que as moças estivessem apenas querendo pegar um arzinho para refrescar.

Mas, indo um pouco além do lide, verifiquei que o i(nu)sitado desfile teve como objetivo defender o direito de as mulheres andarem de peito aberto, o que, alegam elas, os homens fazem há milênios sem que ninguém veja nada demais nisso.  Sem querer falar dos aspectos morais, sociológicos, políticos ou quaisquer outros que o tema possa suscitar, limito-me a olhar o assunto pelo lado estético. Nem vou lembrar agora a palavra pudor, que já é quase um arcaísmo, sobrevivendo a duras penas num canto esquecido dos dicionários. Diferenças de volume, formato e finalidade explicam por que, se Juliana Paes e o marido saíssem pela praia de Ipanema des-vestidos como recomendam as moças natalenses, ele poderia estar não apenas pelado, mas também carregando nas costas um tubarão recém-pescado que ninguém notaria sua presença.

 Mas creio que quem mais irá combater esse movimento são as próprias mulheres porque, convenhamos, não são todas que possuem encantos suficientes para assim se exibirem. Vinícius de Moraes diria que, para aderir à nova moda, beleza é fundamental. Imagine então como sofreriam as que, por não possuírem os requisitos exigidos pela novidade, precisassem manter oculto o que as outras orgulhosamente andassem exibindo. Seria o reconhecimento da própria feiura. Ora, de todas as desgraças que neste mundo podem se abater sobre qualquer mulher, sentir-se feia é a mais dolorosa. Se bem que, pensando melhor, talvez nem mesmo as mais belas entrem nessa de sair pelas ruas sem lenço e sem documento. Porque, embora digam que o que é bonito merece ser mostrado, certas belezas tanto mais encantam quanto mais ocultas permanecem.

E foi o comportamento de nossas conterrâneas do Nordeste que me fez lembrar da história de Lady Godiva. Essa senhora, que viveu na Inglaterra séculos antes de Cristo, até hoje é famosa por ter cavalgado nua pelas ruas de sua cidade. Porém não foi para exibir sua beleza que ela fez esse passeio equestre. Na verdade, seu motivo era bem mais nobre do que o das citadas moças brasileiras.

Diz a lenda que seu marido era cobrador de impostos, o que ele fazia com voracidade escandalosa. Se bem que, comparado com seus colegas brasileiros, qualquer cobrador de impostos, por mais voraz que seja, não passa de um principiante. Pois bem, Godiva tinha um coração de ouro e sofria com as privações que o povo passava para pagar tanto imposto. Daí que ela pediu ao marido que diminuísse a cobrança. Ele respondeu — sem pensar na besteira que estava fazendo — que só atenderia o pedido se ela desfilasse pelas ruas vestida apenas por seus belos cabelos. Pra quê?! Não tardou muito e lá estava ela, ao natural, como tinha vindo ao mundo, atravessando a cidade de lado a lado.

Dizem que os moradores fizeram um acordo e prometeram que ninguém olharia para aquela dama encantadora, que os defendia de forma tão generosa. Tenho minhas dúvidas de que todos tenham cumprido a promessa, mas o que importa é que os impostos foram realmente diminuídos. Oh, se a esposa de algum dos nossos governantes se dispusesse a se sacrificar assim pelo povo brasileiro! A gente nem ia exigir que ela fosse bonita. E também jurava que não ia olhar. Talvez não cumprisse, mas como é que os políticos iam exigir isso de nós, se também eles tão raramente cumprem o que prometem?

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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