Foot-ball

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Atualmente, os pais se enchem de esperança se o herdeiro faz algum sucesso ainda nas escolinhas

“No íntimo achava que o neto caminhava para a desgraça. Deixar um emprego como o da estiva, para se meter na vadiação de jogo de bola”. Assim a velha Filipa lamenta que Joca, seu neto, saia de Araruama para jogar futebol no Rio, o que, para ela, era “deixar um emprego de homem para se meter com moleques”. E olha que o rapaz era uma revelação, um excelente center-forward, como se dizia na época. Um craque. E mais: ele ia direto para o Fluminense e de saída recebeu quinhentos mil réis, só para pagar a viagem até a capital. Já no primeiro jogo arrasou com tudo quanto foi center-half, back e goal-keeper que encontrou pela frente. Mas não era apenas a avó que sofria com a escolha de Joca, também a mãe, tanto que “Sinhá Antônia chorou muito” no dia em que viu a foto do filho na capa de uma revista esportiva.

Essa história está nas páginas de Água-Mãe, romance de 1941, em que o flamenguista José Lins do Rego deixa seus personagens anteriores descansando lá no Nordeste e coloca outros em ação no litoral do Estado do Rio, principalmente em Araruama e Cabo Frio. Joca, cuja família vivia da pesca, da sobriedade e do anonimato, devia cumprir o mesmo destino, mas, atuando pelo Tamoios cabo-friense, revelou um surpreendente talento para o foot-ball. Surpreendente porque era fora da curva, fora da história de sua gente, que desde sempre se ocupava das águas e dos barcos, longe dos gramados e da bola.

A leitura de Água-Mãe nos faz entender que nem sempre esse esporte teve o prestígio de que desfruta atualmente. Pelo visto, as mães choravam mais do que riam quando um filho descambava para esse campo malvisto, malquisto: os campos de futebol. Que jogassem pelada nas ruas e nas areias para se distrair com outro meninos, vá lá. Mas fazer disso profissão... era um desgosto irremediável. Bem diferente de agora, quando os pais se enchem de esperança se o herdeiro faz algum sucesso ainda nas escolinhas. Basta que o molequinho meta dois gols numa partida para que se comece a ver nele um novo Pelé, no mínimo um Rivelino.

Mas não precisamos voltar a 1941 para ver que nem sempre o mundo da bola foi tão rico e glamoroso. Em Estrela Solitária, biografia de Mané Garrincha, Ruy Castro revela a vida difícil que o craque das pernas tortas levou, mesmo depois de consagrado no Botafogo. Dormia nos vestiários do clube, assinava contratos em branco e jogava mesmo estando machucado. E ai de Garricha se ao seu lado não estivesse o anjo protetor chamado Nilton Santos.

Os jogadores de hoje, pelo menos os maiores, aqueles que chegam às grandes equipes, ao futebol europeu ou às seleções, esses são os nossos ídolos, quase deuses, e não falta quem mais os adore do que adoraria Deus, se nEle cresse como crê em Cristiano Ronaldo ou em Neymar Jr. E basta que um deles torça o dedão do pé para que a nação toda entre em estado de vigília. Faturam muitos milhões jogando bola e outros mais como garotos-propaganda das grandes marcas. Há dias, Cristino Ronaldo fez despencar as ações da Coca-Cola pelo singelo gesto (mas não ingênuo ou impensado) de tirar de sua frente duas garrafas do refrigerante durante uma entrevista. Sem patrocínio, não!

Nada contra o futebol ou seus praticantes, amadores ou profissionais. Se ganham muito dinheiro, ganham fazendo o que sabem e não assaltando a bilheteria, nem criando leis para desfrutarem de altos vencimentos e altas mordomias. Para falar a verdade, eu gosto bem de um joguinho do Flamengo ou da Seleção Brasileira. Não sou dos mais apaixonados, mas também não sou indiferente. Quanto ao que aconteceu a Joca... melhor você ler o livro.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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