Vencimentos e derrotas

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Grande e generoso é o coração dos legisladores brasileiros

Você com certeza reclamaria se quisessem reduzir o seu salário, é ou não é? E com toda razão. A maioria de nós, brasileiros, a cada trinta dias recebe um contracheque que só serve para nos fazer pensar em quantos daqueles seriam necessários para zerar as contas do mês. Como cheque é uma coisa que já caiu quase completamente em desuso, o prefixo da palavra contracheque só pode significar oposição e desprezo por quem recebe aquela insignificância. Nossos vencimentos mensais mais acertadamente se chamariam derrotas mensais.

Não são todos os brasileiros, claro. Certa vez um amigo com talento para o humor negro contou-me a história do operário que teve a ousadia de pedir participação nos lucros, alegando que o patrão era uma ilha de riqueza encravada no oceano nacional de pobreza. O poderoso industrial reconheceu possuir uma fortuna de muitos milhões e saber que sobravam no país trabalhadores vivendo com uma mão na frente e outra atrás, às vezes com as duas atrás, em virtude dos baixos salários que recebiam.

O trabalhador já estava comovido até as lágrimas diante da generosidade do patrão, antevendo o crescimento expressivo que ia pingar na sua conta a partir daquela conversa. Aí o poderoso chefão pegou a calculadora e dividiu sua fortuna pelo número dos brasileiros, que já naquela época beiravam os duzentos milhões. Concluída a conta, sentenciou: “Dá um real para cada brasileiro”. Tirou uma moeda do bolso e arrematou: “Tá aqui a sua parte. Agora passa na contabilidade que o senhor tá despedido!”

Não são todos os brasileiros, claro. Agora mesmo anda pelos noticiários a informação de que um ex-Secretário de Estado do Rio de Janeiro, condenado (mas não preso, que isso de cadeia é coisa de pobre) após ter admitido o recebimento de sete milhões em propinas. Esse nobre servidor do povo fluminense solicitou ao Supremo autorização para voltar a trabalhar (talvez honestamente, quem sabe?), o que lhe foi negado. Aposentado à força, viu-se o infeliz na obrigação de ficar em casa vendo novelas na TV, passear na praia com os cachorros, tomar uns uísques com os amigos, e outras ocupações assim pesadas. Grande e generoso é o coração dos legisladores brasileiros e, para não lhe abater completamente o ânimo, a lei permite que ele continue recebendo os mesmos salários que receberia se estivesse trabalhando, os quais totalizam a bagatela de R$ 37.000,00 por mês. Agora vai ter que se apertar e viver só com isso, que as propinas estão temporariamente suspensas.

  Já o ator Arnold Schwarzenegger deu um grande exemplo de desapego ao dinheiro, aceitou de bom coração reduzir seu próprio salário e foi para o sacrifício. Bem sabemos que os ganhos de um ator de Hollywood fazem o holerite do brasileiro médio parecer um filme de terror. Também é certo que tal redução não ia colocar nosso amigo Arnold na miséria. Nem por isso deixou de ser uma atitude nobre da parte dele abrir mão de toda a grana a que teria direito. Então, para fazer o filme “Os irmãos gêmeos”, ele se contentou em receber apenas 237 milhões. De dólares! Se fosse de reais, já não era pouca coisa. Agora vai ver qual é o câmbio do dia e multiplica 237 milhões por 5 ou 6. Compare com o último pagamento que você recebeu e veja dá uma diferença muito grande.

Sigamos o bom exemplo desse senhor. Nada de ficarmos com essa teimosia de querer ganhar mais e mais, e aliás inutilmente, já que ninguém está a fim de socializar a riqueza, uma vez que a pobreza já está tão bem socializada. E talvez um pouco nos contentemos com esse pensamento do grande Padre António Vieira: “Quem é o verdadeiro rico? Aquele que não quer nada, porque nenhuma coisa lhe falta.”

PS – Na verdade, Schwarzenegger abriu mão de outros pagamentos em troca da participação na venda de ingressos. Como o filme foi um sucesso mundial...

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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