Blog de roberiocanto_18846

Proposta de casamento

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

— Casar contigo? Tá doido!

— Ué, por que não? Tou me oferecendo de coração.

— E vai sustentar a gente como? E tem meus três meninos. Tu tem quantos?

— No papel é duas meninas.

— Mas fora do papel é uma fila que vai daqui à Bahia. É o que dizem...

— Exagero desse povo, num chega nem a Niterói.

— Quero não. A gente ia ter lua de mel com cinco testemunhas na cama.

— Cama é o que não me falta. Ontem mesmo peguei um sofá na beira do rio. Tirando a mola que espeta dum lado, dá pra dormir otimamente bem.

— Casar contigo? Tá doido!

— Ué, por que não? Tou me oferecendo de coração.

— E vai sustentar a gente como? E tem meus três meninos. Tu tem quantos?

— No papel é duas meninas.

— Mas fora do papel é uma fila que vai daqui à Bahia. É o que dizem...

— Exagero desse povo, num chega nem a Niterói.

— Quero não. A gente ia ter lua de mel com cinco testemunhas na cama.

— Cama é o que não me falta. Ontem mesmo peguei um sofá na beira do rio. Tirando a mola que espeta dum lado, dá pra dormir otimamente bem.

— Mas tua casa é desse tamaninho. A gente ia morrer sufocado lá dentro.

— Você precisa ver as janelas. É janela pra todo lado. Muito arejado. E tem um quintal bacana...

— Muito do bacana! Pena é aquele barranco nos fundos: cai-não-cai. Quero não.  E tem o Arlindo.

— O que que o Arlindo tem com a nossa conversa?

— Quer casar comigo.

— Safado! Picareta! Eu vi primeiro, ninguém tasca! E deve ser casado, aquele malandro.

— Casado é você e com três ou quatro. Arlindo é solteirinho que só vendo.

— Mas dizem que ele é meio frouxo.

— Isso posso te garantir que é mentira.

— Num vai me dizer que tu tá falando por experiência própria!

— Ah, deixa pra lá! Mas casar contigo, só se eu tivesse maluca.

— Vamos fazer o seguinte: a gente dá um chego lá em casa, tu vê as condições e pensa melhor no assunto.

— Tá bom. Vou lá conhecer tua casa. Mas, ó, num vou passar da sala, combinado?

— Mas o mais lindo é o quarto. Tu precisa ver.

— Tem o que no quarto?

— Tem a cama, tem o espelho, tem...

— O importante é a cama. É boa?

— Macia que dá gosto! Só vendo!

— Vamos lá dá uma olhada. Sem compromisso, hem!

— Sem compromisso. Deixa comigo...

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A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.

O armário e a nota de duzentos

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A mãe, que até então vinha se saindo bem, vacilou por alguns demoradíssimos segundos

A mãe, que até então vinha se saindo bem, vacilou por alguns demoradíssimos segundos

Estou na fila, um pouco atrás deles. O menino não para: levanta um refrigerante que está no carrinho, puxa a blusa da mãe, pergunta se pode abrir o pacote de biscoito, pede para ir ao banheiro, tudo isso ao mesmo tempo. Quando há somente um freguês à sua frente, ela começa a abrir a carteira, não sem que o pixote tente puxar uma nota. “É aquela do cachorro?”, pergunta ele, com certeza se referindo à nota de duzentos reais, que ainda não foi vista ao vivo por ninguém, mas já há algum tempo é anunciada na TV como mais uma gloriosa obra do governo para alavancar a economia nacional.

Se bem que não é totalmente verdadeiro dizer que ninguém tenha visto a tal nota, que traz impressa o lobo guará, o qual veio inflacionar a fauna das moedas nacionais. Antecederam-no beija-flores, garças, araras, micos e garoupas. Ou seja, uma bicharada heterogênea, ao mesmo tempo monetária e zoológica. Mas o fato é que o lobo guará não é de todo inédito na mão dos brasileiros. Isso porque a criatividade do nosso povo mais uma vez falou mais alto e se antecipou ao governo. Mal a Casa da Moeda começou a imprimir a nota de duzentos, e a plebe apenas a conhecia pela propaganda oficial, e já os falsários trabalhavam para abastecer o mercado, fabricando dinheiro com a serenidade de quem imprime santinhos para distribuir nas igrejas.

Posta em circulação, a esmerada produção caseira não contou com a simpatia da polícia, que logo começou a recolher a grana e a perseguir seus criadores.  Foi uma verdadeira caçada ao pobre do lobo guará. Aqueles patriotas, que apenas desejavam auxiliar o governo na dura tarefa de colocar milhões de reais em circulação, não tiveram sua boa intenção compreendida e recolheram as impressoras, aguardando um momento mais oportuno para voltar à ativa. Talvez também tenham desanimado do meritoso trabalho que realizavam ao perceber que o povão preferia que o arisco lobo guará fosse substituído pelo seu primo pobre, o simpático vira-lata, o mais nacional de todos os cachorros, talvez o mais brasileiro dentre todos os nossos bichos.

Pois não é que a nova nota me desviou do que, de verdade, me chamou a atenção no diálogo do menino com a mãe? Ela, pacientemente, ia respondendo e contendo o filho, enquanto tirava as mercadorias do carrinho. Só mesmo mãe para fazer essas três coisas ao mesmo tempo! E o que mais me fez alongar as orelhas foi o anjinho ter perguntado, em voz bem alta, se era verdade que o tio fulano tinha saído do armário. Tem coisas que atrapalham até mesmo as mães mais experientes.

— Qual armário que ele tava, mãe? Aquele grandão do quarto, mãe? Deve ser, do jeito que titio é gordo! Ele tava fazendo o quê dentro do armário, mãe? Por que que ele saiu do armário, mãe? Aquele moço que anda com ele ajudou ele a sair do armário, mãe? Eles tavam brincando de quê, mãe? De esconde-esconde, mãe? Gente grande também brinca de esconde-esconde, mãe?

Eis que não apenas eu, mas também a funcionária do caixa e um freguês do outro lado tinham alongado as orelhas.  Todos queriam saber como a jovem mãe ia responder a tantas e tão embaraçosas perguntas. Porque, apesar de atualmente tanta gente estar saindo do armário, o assunto ainda é delicado, principalmente quando levantado por uma criança, na fila do supermercado, e tendo um tio como personagem central.

A mãe, que até então vinha se saindo bem, vacilou por alguns demoradíssimos segundos, enquanto o moleque olhava para cima e a puxava pela manga. Mas ela logo se recuperou e deu uma resposta bastante sensata e quase verdadeira.

— Seu tio estava consertando o armário. É isso aí, filho. Aí seu tio ficou preso lá dentro, entendeu? Aí o amigo dele foi ajudar e ele saiu do armário. Entendeu? Agora para de fazer pergunta e me ajuda a tirar as compras do carrinho!

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JTNJJ Miguel - uma figura

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

D. Marta ficou nervosa à toa e mandou parar, como se ele tivesse culpa do tamanho do Brasil

D. Marta ficou nervosa à toa e mandou parar, como se ele tivesse culpa do tamanho do Brasil

Miguel era diferente por seu próprio tipo físico, que conseguia ser alemão e roceiro ao mesmo tempo, com aqueles cabelos em fogo sobre a cara avermelhada, o nariz descascando na ponta. Vestia uma imutável jaqueta de couro, fosse inverno ou verão. E ria, vivia rindo. Ria da descompostura que levava das colegas, em cuja conquista batalhava o tempo todo; ria dos conceitos que obtinha nas provas, exibindo-os para a turma e explicando: “Esse professor não me entende...”  Ria das dúvidas que lançavam sobre seu talento de cantor e instrumentista, afirmando que mesmo os grandes astros tinham enfrentado a descrença antes de atingirem a fama. Nada podia magoá-lo e todos gostavam dele. Divertiam-se com sua elegância brega, deixando crescer a unha do dedo mindinho, coisa que julgava o fino da distinção; aceitavam sua ignorância simpática; engoliam suas respostas descalibradas, para as quais não havia réplica: “Dizer para a turma o que entendi desse texto... Professor, será que, no lugar disso, não dá pra apresentar um sucesso do Roberto Carlos, não? As gatas aí da sala estão a fim de um som romântico, professor”.

Embora não fosse simplesmente acomodado, Miguel nunca ficava triste por causa dos insucessos escolares. Se a Matemática insistia em ser um mistério impenetrável, pior para a Matemática, não era por causa de uns números sem pé nem cabeça que ele iria deixar-se abater. Um professor dizia que a Linha do Equador era imaginária... “E vale a pena estudar um negócio que nem existe de verdade?” O outro queria fazê-lo acreditar que o Português nascera do Latim, idioma falado pelos antigos romanos, mas como acreditar nisso se outro dia passou um filme em que os bravos soldados de Roma esbravejavam em Inglês, coisa fácil de perceber pelos yesses e nous que apareciam o tempo todo? Numa aula, D. Marta mandou-o localizar o Estado do Rio no mapa do Brasil, país grande que não tem mais fim. Miguel deu a partida lá de cima no Amazonas e veio correndo o dedo por todo o território nacional. Já estava quase em Minas Gerais quando D. Marta ficou nervosa à toa e mandou parar, como se ele tivesse culpa do tamanho do Brasil. Não conseguindo entender a complicação que os professores faziam, só continuou a estudar porque da última vez em que pedira aumento de salário, o patrão se saíra com um monte de conversa fiada que, resumida, significava isso: Pelo estudo que tem, você ganha até demais.

Abraçado ao violão, tentava impressionar as garotas, desfiando todas as canções possíveis sobre dor de cotovelo. No recreio, o pessoal ia chegando e ficava olhando os dedos nodosos de Miguel pulando de uma corda para outra, tentando produzir sons delicados, mas arrancando do instrumento apenas uma fala bruta e desarmoniosa como a própria mão que a produzia. Quando lhe perguntavam por que raramente trazia os livros, mas nunca se esquecia do violão, respondia que nunca tinha visto juntar mulher em volta de livro.

 No fim do ano Miguel foi informado de que os professores não tinham condições de promovê-lo à série seguinte, e que seria melhor ele repetir o ano para superar algumas deficiências e coisa e tal. Terminada a explanação, Miguel armou uma cara de funda preocupação e deu uma resposta que bem define sua atitude diante da vida: “Isso aí que o senhor falou, tudo bem. Agora, eu queria saber se é verdade que no ano que vem não vão mais me deixar entrar em sala com o violão. Aí, já é prejudicar uma carreira, é ou não é?”

Mas no outro ano Miguel voltou, e o violão também. Vê-los na aula era como assistir pela segunda vez à mesma comédia, sem que por isso ela perdesse a graça. “Bom, eu não compareci à prova porque ontem eu vinha ouvindo umas musiquinhas no ônibus. Acredita que dormi, acordei lá no ponto final e perdi a hora? O que me atrapalha, professor, pode crer, é esse meu amor à arte”.

O colégio conseguiu ensinar pouco mais do que pouca coisa a Miguel. Ele, no entanto, ensinou muita coisa a todos do colégio. Ainda outro dia foi visto, empoleirado no alto de um poste, talvez trocando lâmpadas, talvez consertando linhas telefônicas, a cara mais vermelha, o nariz mais descascado, um sol que parecia concentrar-se todo no cabelo amarelo de Miguel. Lá estava ele, com a mesma alegria criança que sempre mora em seu coração, com sua lição de otimismo e coragem. Consciente de suas limitações intelectuais, faz graça com elas; sabedor de sua feiura, comporta-se como galã irresistível e, por mais que a vida o maltrate, não deixa de sentir e demonstrar amor por ela. Pendurado no poste, por mais que o sol lhe bata no rosto, por mais incômoda que seja a posição em que se acha, não deixa de acenar para um conhecido que passa lá embaixo.

Você costumava dizer, Miguel, que não tinha jeito para aprender. Talvez seja verdade. Mas você tem algo mais importante do que isso, que é o seu jeito para ensinar. Ensinar a gente a aceitar a vida, mesmo quando ela se comporta como uma velha rabugenta e nos trata a chineladas.

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Entrevista virtual com o poeta Manuel Bandeira

quarta-feira, 02 de setembro de 2020

— Começando lá bem de trás: como foi sua infância?

— Sou bem nascido, Menino, fui, como os demais, feliz.

— O que você faz para retornar a essa infância feliz?

— Enquanto anoitece, vou lendo sossegado e só as cartas que meu avô escrevia a minha avó.

— Do que mais você se lembra dos lugares de seus tempos de menino?

— Da velha chácara triste: Não existe mais a casa... Mas o menino ainda existe

— Como o poeta Manuel Bandeira define o homem Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho?

— Começando lá bem de trás: como foi sua infância?

— Sou bem nascido, Menino, fui, como os demais, feliz.

— O que você faz para retornar a essa infância feliz?

— Enquanto anoitece, vou lendo sossegado e só as cartas que meu avô escrevia a minha avó.

— Do que mais você se lembra dos lugares de seus tempos de menino?

— Da velha chácara triste: Não existe mais a casa... Mas o menino ainda existe

— Como o poeta Manuel Bandeira define o homem Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho?

— Provinciano que nunca soube escolher uma gravata. E em matéria de profissão um tísico profissional. Músico falhado (engoliu um dia um piano, mas o teclado ficou de fora).

— Apesar de doente desde cedo, sua poesia revela uma tranquila aceitação do sofrimento.

— Só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

— O que alguém pode fazer quando se descobre doente, como aconteceu com você ainda jovem?

— A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

— A doença fez você perder a pureza da juventude?

— Não sei entre que astutos dedos deixei a rosa da inocência.

— Sua poesia frequentemente fala de tristezas ...

— Eu faço versos como quem chora de desalento... de desencanto.

— Qual foi a outra grande tristeza de sua vida, Bandeira?

— Uma noite de muito frio, a Dama Branca levou meu pai.

— Nos seus poemas o amor frequentemente parece irrealizado ou mal sucedido...

— Amor – chama e, depois, fumaça... O fumo vem, a chama passa... Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

— Mas você tem amado muito na vida...

— A escuridão propícia aos furtos, propícia aos furtos como os meus, de amores frívolos e curtos.

— Você foi um homem de muitas amizades. Muitas pessoas queridas por você já partiram. Como você vê esses amigos quando se lembra deles?

— Estão todos deitados, dormindo profundamente.

— Tendo vivido a dor e o amor tão intensamente, como você define a vida?

— A vida é uma agitação feroz e sem finalidade. A vida não vale a pena a dor de ser vivida.

— Em poemas como Elegia de agosto, A espada de ouro, O obelisco, você critica a situação brasileira, ou antes, o comportamento de certos brasileiros. E se tudo isso ficar ainda pior?

— Vou-me embora pra Pasárgada. Aqui eu não sou feliz. Lá a vida é uma aventura.

— Supondo que se possa gostar de morrer, como você gostaria de morrer?

— Pensando humildemente na vida e nas mulheres que amei. Sei que é grande maçada morrer, mas morrerei — quando a vida for servida — sem maiores saudades desta madrasta vida, que todavia amei.

— Então você não tem medo da morte...

— Quando a Indesejada das gentes chegar (não sei se dura ou caroável), talvez eu tenha medo. Talvez sorria e diga: — Alô iniludível!

— Cite um poeta de sua especial admiração.

— Sempre é poeta de verdade esse homem lépido e limpo que é Carlos Drummond de Andrade.

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Pandemias

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Essa mixórdia de lives, news e fakenews com que somos bombardeados diariamente

Estes tempos de pandemia são como uma árvore gigantesca em que o próprio exagero do seu tamanho às vezes nos impede de reparar nos muitos galhos que se prendem ao tronco. E, no entanto, esses galhos, se empilhados, formam outro mal, senão igual, ao menos parecido com o próprio mal de onde brotam.

Essa mixórdia de lives, news e fakenews com que somos bombardeados diariamente

Estes tempos de pandemia são como uma árvore gigantesca em que o próprio exagero do seu tamanho às vezes nos impede de reparar nos muitos galhos que se prendem ao tronco. E, no entanto, esses galhos, se empilhados, formam outro mal, senão igual, ao menos parecido com o próprio mal de onde brotam.

Além de uma das maiores tragédias humanas de que se tem notícia, precisamos enfrentar a desinformação que governantes, cientistas, médicos, jornalistas e palpiteiros em geral nos proporcionam. Cada qual dando sua contribuição à nuvem de gafanhotos em que se transformaram as recomendações sobre o que devemos fazer ou o que não fazer para escapar do inimigo. O que ninguém nos ensina é como distinguir o que é fato, o que é boato, o que é pura e simples mistificação nesse amontoado de lives, news e fakenews com que somos bombardeados diariamente.

Limão com água mineral cura? Casca de abacate fortalece as defesas naturais do organismo? Quem manda: o presidente, o governador ou o prefeito? Dexametasona, cloroquina, hidroxicloroquina, palavrões que antes não ousaríamos falar diante das crianças são agora parte inevitável do noticiário. É só uma gripezinha que vai passar logo, ou é uma praga bíblica com que os céus vêm nos punir pelos nossos pecados? Tem gente recomendando ficar em casa para não espalhar o vírus, tem gente mandando bater rua para que o vírus ataque quem tem que atacar e depois, cansado de tanta trabalheira, nos deixe sossegados. Um religioso garante a cura a quem adquirir um miraculoso caroço de feijão que ele oferece a preço de ocasião. Laboratórios correm para criar o medicamento que encare esse monstro a um tempo tão enorme que assusta o planeta e tão pequeno que não podemos vê-lo. A vacina, essa vaca sagrada, pode ficar pronta no mês que vem ou dentro de dez anos.

Em meio a essa batalha global, uma outra, particular, desafia cada um de nós: aquela que o poeta chamou de "A dificílima dangerosíssima viagem/ De si a si mesmo". Ela nos obriga a sermos nossa mais inevitável e constante companhia, mas também a estarmos mais demorada e profundamente com aqueles que compartilham conosco o mesmo teto.  Resta a esperança de que esse confinamento leve o ser humano, para usar outra vez as palavras do poeta, a ir "Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas / A perene, insuspeitada alegria / De con-viver".

Viver, conviver, viver com, eis a questão. Não falta quem, diante desse desafio, fortaleça o companheirismo, o afeto, a divisão das preocupações, alegrias e tristezas. A palavra doce que dá outro sabor ao café da manhã, o gesto de carinho que antecede ao sono. Mas sabemos que outros tantos conseguem fazer doer ainda mais o que já é por si só tão doido e tão doído. A violência doméstica, as crianças maltratadas, as secretarias de saúde que mais parecem trabalhar em favor da doença, a roubalheira de sempre, desemprego e fome que se generalizam.

Diante da feiura desse momento, encontraremos consolo e conservaremos a esperança se continuarmos acreditando que a vida, apesar de tudo, "é bonita, é bonita e é bonita", como diz a canção de Gonzaguinha.

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Sujeiras e limpezas

quarta-feira, 05 de agosto de 2020

Os primeiros portugueses sentiam enjoo com o cheiro de limpeza dos nativos

— É o banho! Não tem outra! Você já viu alguém ficar doente de sujeira? Nunca, né? Agora, o sujeito toma banho, pega um vento pelas costas, cai logo de cama. Sujeira nunca matou ninguém, mas limpeza demais é prejuízo certo pra saúde. Muita gente já morreu por causa dessa mania de tomar banho todo dia.

Os primeiros portugueses sentiam enjoo com o cheiro de limpeza dos nativos

— É o banho! Não tem outra! Você já viu alguém ficar doente de sujeira? Nunca, né? Agora, o sujeito toma banho, pega um vento pelas costas, cai logo de cama. Sujeira nunca matou ninguém, mas limpeza demais é prejuízo certo pra saúde. Muita gente já morreu por causa dessa mania de tomar banho todo dia.

Com argumentos sólidos como esse é que Paulão sustentava suas teses. E bastava ficar um pouco mais próximo dele para sentir o cheiro e perceber que, ao contrário do que ocorre entre os adultos, nele se reuniam teoria e prática, pregação e ação. Tanto que corria entre a molecada da vizinhança que a mãe, Dona Matilde, pelo menos uma vez por semana pegava o filho pela orelha e o enfiava embaixo do chuveiro. Isso com um filho de treze anos e já bem mais alto do que ela.

Outra teoria de Paulão, semelhante à primeira, era de que lavar a cabeça com frequência provocava queda de cabelo. Com dados irrefutáveis, doutrinava os demais meninos do bairro:

— Teu pai é careca? Não é, né? E ele lava a cabeça todo dia, usando aquele negócio cheiroso que rico usa, o tal do xambu? Agora vê os alemães lá da fábrica: tudo careca, é ou não é? O motivo tá na cara: rico lava a cabeça todo dia.

E se ponderassem com Paulão que na fábrica tinha também alemão com cabelo, ele explicava que isso era porque “esse alemão ou já foi criado no Brasil ou tinha babá brasileira. Aí, já viu, né? Relaxavam e não davam banho na criança. Sorte dele, que não ficou careca igual a seus convertorrâneos. Ou então é peruca!”

Nunca pude seguir integralmente os ensinamentos desse meu amigo de infância, talvez porque minha mãe tinha opiniões inteiramente contrárias às dele e era mais enérgica do que Dona Matilde. Mas, falando francamente, não discordo inteiramente do que ele dizia. Basta observarmos que os franceses até pouco tempo atrás não eram chegados ao banho diário, e essa é a razão provável de terem inventado tantos perfumes, com os quais tentavam substituir a água e o sabão. A desculpa era que na França a maioria das casas tinha banheira e não chuveiro. Como encher uma banheira exige muito tempo e paciência, o pessoal acabava desistindo e deixava a faxina corporal para a próxima semana.

Parece que com o aumento do número de chuveiros, a situação melhorou um pouco, mas ainda hoje os franceses perderiam para os índios brasileiros, que viviam mais dentro dos rios do que na terra, eram quase anfíbios. Razão pela qual os primeiros portugueses sentiam enjoo com o cheiro de limpeza dos nativos, e estes fugiam dos recém-chegados por causa do mau cheiro que deles provinha. Então quando levantavam o braço para enfiar a espada no pobre do selvagem... as axilas lusitanas matavam mais do que as armas. Num dos livros de Graciliano Ramos há uma cena que bem mostra que esse negócio de banho não é costume universal. Algumas pessoas conversam numa sala e a certa altura uma senhora pede licença para recolher-se, porque ia banhar-se. Mal ela virou as costas e um dos presentes sussurrou para outro: “Mulher porca!” Ou seja, porca porque precisava tomar banho, necessidade que não aflige as pessoas limpas por natureza.

E não se pense que a nobreza é mais asseada do que a plebe. Numa carta de Napoleão (ninguém menos do que Napoleão!) o grande general pede a sua esposa que ela não tome banho nos próximos três dias, porque ele está voltando para casa e cheio de saudades. Assim também é demais! Mas, enfim, é coisa de francês, é très chic!

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Datas importantes

quarta-feira, 22 de julho de 2020

No dia 20, celebramos a viagem à lua, coisa da qual minha avó muito duvidava

Você, leitor, precisa ficar mais atento às coisas realmente importantes que acontecem ao seu redor. Por exemplo: em 24 de junho comemorou-se o Dia do Disco Voador, data da mais alta grandeza, noticiada por todos os veículos de comunicação, tanto aqui na Terra quanto em outros planetas, notadamente em Marte, de onde vem a maioria dos extraterrestres que nos visitam. E vai ver que você, alienado do jeito que é, não se lembrou de nada disso.

No dia 20, celebramos a viagem à lua, coisa da qual minha avó muito duvidava

Você, leitor, precisa ficar mais atento às coisas realmente importantes que acontecem ao seu redor. Por exemplo: em 24 de junho comemorou-se o Dia do Disco Voador, data da mais alta grandeza, noticiada por todos os veículos de comunicação, tanto aqui na Terra quanto em outros planetas, notadamente em Marte, de onde vem a maioria dos extraterrestres que nos visitam. E vai ver que você, alienado do jeito que é, não se lembrou de nada disso.

E cá estamos em fins de julho, que é um mês de grandes efemérides, e algumas delas você já perdeu. No dia 3, o calendário nos lembra de reverenciar Tomé, aquele cético que precisou tocar em Jesus para dar crédito à boa nova que lhe contaram os demais apóstolos. Já não digo acreditar em Jesus, que estava desaparecido há uma semana, mas ao menos acreditar nos próprios companheiros. Não sei como eles não lhe deram uns cascudos, para aprender a não chamar os outros de mentirosos. Principalmente Pedro, que era meio esquentado, haja vista o que aconteceu com a orelha do soldado romano que se dirigiu a Jesus sem o devido respeito, no mais famoso e injusto “Teje preso!” da história de humanidade.

No dia 4 — essa você não pode ter deixado passar em branco, seria a maior falta de patriotismo — nossos calendários registram com muito orgulho o Dia da Independência. Não a do Brasil, que pra essa não damos muita confiança, mas a dos Estados Unidos. Pois do que gostaríamos mesmo era de ser sobrinhos do Tio Sam, tanto que procuramos usar o máximo possível de palavras ianques, tais como sale, off, t-shirt, etc. Agora está muito em moda a tal da “live”, que, quando somos obrigados a falar em língua de gente pobre e atrasada, dizemos “ao vivo”.

O sete celebra o Ingresso das Mulheres na Marinha, acontecimento que, se não foi suficiente para transformar nossa armada em uma potência bélica, ao menos nos dá motivo para acreditar que melhorou em mil por cento a beleza da marujada. Sei até de um cidadão cujo pacato coração civil vira um mar revolto toda vez que vê passar certa capitã-de-corveta que mora na mesma rua que ele. Dez é o Dia da Pizza, a qual, ao contrário do que muitos pensam, não é uma massa de origem italiana, mas um jeito brasileiro de se aplicar a lei, sobretudo quando tem gente importante envolvida na questão.

Dia 11 é o Dia Mundial da População, seja lá o que isso possa significar. Até por que, quem vai cumprimentar quem, se todos fazem parte da população? A tal população é uma coisa que está em todo lugar, aonde quer que se vá, lá está ela, tão numerosa que não há quem de vez em quando não se sinta sufocado com tanta gente em volta, como se o planeta fosse um elevador para seis pessoas e mais de vinte já tivessem entrado. Assim é porque, embora todos concordem que há gente demais no mundo, raros são os casais que deixam de agravar a explosão populacional.

No dia 20, celebramos a Viagem à lua, coisa da qual minha avó muito duvidava. Segundo sua firme convicção religiosa, esse era um abuso que Deus não ia permitir, posto que entregou a lua à administração de São Jorge, que a percorre toda noite, mantendo o lugar bonito, brilhante e desinfestado de dragões. Essa era a convicção dela, e quem teve avó italiana sabe que não vale a pena discutir com ela. Quando criança, consultei um padre a respeito, e ele, sem nenhum respeito, apontou para vovó e girou o dedo em torno da orelha, gesto que na época nada significou para mim, mas que, quando vim a entender, me deixou bastante revoltado. Alguém poderá rir da ignorância de D. Maria Chardelli, que era analfabeta, Mas, quando se vê alguns notáveis do governo federal sustentando que a Terra é plana, conclui-se que a ignorância está ao alcance de todos, mesmo dos mais sábios.

Em julho temos a celebrar ainda outros dias grandiosos: 15 (do Homem), 21 (dos Mortos da Marinha), 29 (da Identificação) e por aí vai. E só mesmo pela grande modéstia que me caracteriza é que deixarei de citar a data mais importante do mês: meu aniversário. E a prova da importância dessa data é que aqui em casa ninguém se lembra das outras que citei, mas a do meu aniversário, graças a Deus, ninguém se esquece.

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A praga dos gafanhotos

quarta-feira, 08 de julho de 2020

No meio daquela multidão em disparada, gafanhotos e gafanhotas conseguem se entender

No meio daquela multidão em disparada, gafanhotos e gafanhotas conseguem se entender

Segundo lemos no livro do Êxodo, o faraó Ramsés II era um sujeito cabeça dura, e a teimosia dele, recusando-se a libertar os judeus, obrigou o Senhor a despejar dez pragas sobre o Egito. Uma das desgraças que desabaram sobre os egípcios foi a nuvem de gafanhotos. Esses bichinhos andam --- ou melhor, voam --- sempre em estado de fome desesperada, de tal modo que podem acabar com uma lavoura enquanto o diabo pisca o olho. E, como sabem os que já estiveram na presença do Dito Cujo, ele, quando pisca o olho, é apenas por um triz, que o diabo não pode perder tempo e permitir que um pecador lhe escape.

Pois o Brasil, que não tem nenhuma culpa pela ranzinzice de nenhum faraó, nem dos de lá nem dos de cá, se viu ameaçado por um bando que, calculam as autoridades, reunia cerca de vinte milhões de esfomeados, zunindo como uma flecha em direção à Pátria Amada. Depois de passar pelo Uruguai e pelo Paraguai, estavam pastando na Argentina. No entanto, essa tríplice visita não foi suficiente para matar a fome da bicharada, ou talvez eles pretendessem vir ao Brasil apenas para saborear sobremesa, o que significaria devorar todas as lavouras que encontrassem pelo caminho.

Um aspecto intrigante do assunto é que os gafanhotos têm vida média de três meses, ou seja, vão morrendo aos montões durante a viagem. E como a população não diminui? perguntará o leitor mais atento. Eis a explicação a que cheguei quando me fiz a mesma pergunta: eles se reproduzem em pleno voo. O que justifica outro espanto do leitor: como é que pode?  Sem ser especialista em gafanhotos, concluo que eles voam transando e transam voando. Por incrível que pareça, no meio daquela multidão em disparada, gafanhotos e gafanhotas conseguem se entender e gerar os herdeiros de sua fome milenar. Dada a velocidade com que viajam, essa deve ser a rapidinha mais rápida de todas.

Verdade que, para os cientistas, as dez pragas narradas na Bíblia têm explicações nada miraculosas. Erupções de vulcões, aquecimento climático, seca e a presença do homem, o mais devorador de todos os bichos, causaram um desequilíbrio ecológico que explicaria o que o povo de então considerou um castigo dos céus.

Qualquer que tenha sido a causa, o certo é que o Egito passou naquela época por um grande aperto, uma verdadeira praga. Mas também o Brasil tem sofrido pragas terríveis, e algumas delas até chegam aos mais altos cargos da República. Nossos gafanhotos só devoram cédulas, preferencialmente das verdinhas. Comem também a moeda nacional, mas logo conseguem plantá-las no terreno fértil de bancos estrangeiros e de paraísos fiscais e depois colhem dólares à mancheia.

Gafanhoto por gafanhoto, talvez os nossos sejam mais vorazes do que seus antepassados bíblicos.

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A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.

Para manter-se ocupado

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Não deve ser fácil satisfazer a tantas esposas sem perder a majestade

Não deve ser fácil satisfazer a tantas esposas sem perder a majestade

Durante a quarentena a que estamos obrigados neste que será para sempre lembrado como “aquele ano”, cada um faz o que pode para se manter ocupado e ocupar os outros. Tem de tudo: música nas varandas, corrida pelos cômodos da casa, gente que nunca tinha fritado um ovo fazendo almoço para a família inteira. Sem falar nas lives, que põem na tela da TV cantores, chefs, filósofos, gente de variados talentos colaborando para que nós passemos as horas (ou, mais propriamente, para que as horas passem por nós). Até a propaganda dos bancos se humanizou: ao invés de falar em dinheiro, falam em amizade; ao invés de falar em juros, falam em esperança. Tudo com a santa intenção de nos manter longe do inimigo que está de tocaia lá fora.

No meio de tanta criatividade, não vi ninguém mais criativo do que o rei da Tailândia, que, não querendo arriscar sua imperial saúde, foi se hospedar num luxuoso hotel dos Alpes alemães. O tal Rama X é, como se vê pelo título, o décimo de sua dinastia, inaugurada no século XVIII pelo Rama I, cuja ramagem vem se estendendo até os dias atuais. A bem da verdade, não se pode dizer que Sua Alteza tenha estado em confinamento, nem que tenha encontrado dificuldade para gastar as horas.

Aos 67 anos, o monarca não se dá por vencido e levou consigo 20 concubinas. Ou seja: não lhe deve ter faltado com que se ocupar, pois não deve ser fácil satisfazer a tantas esposas sem perder a majestade. Certamente para se poupar um pouco ou porque em seu país o vinte e um é o número do azar, o rei deixou a primeira-dama oficial na Suíça. Até vinte, tudo bem, mas vinte e uma é demais.  Verdade que o mês tem trinta dias, mas tem também trinta noites, portanto sobram apenas nove luas para o descanso, isso se alguma das acompanhantes não pedir bis.

Mas Rama X não é o campeão dessa modalidade. Basta lembrar que Salomão, o homem mais sábio da Bíblia, teve mil e tantas esposas, não faltando quem ache que só uma já é sinal de pouca sabedoria. Até já houve quem dissesse que o segundo casamento é a vitória da esperança sobre a experiência. Mas toda a sapiência de Salomão não o impediu de casar-se com mulheres dos mais diferentes povos e deuses e apaixonar-se de tal forma por Betsabá que mandou o marido dela para a guerra, com a esperança de que ele de lá não voltasse vivo. Depois, há de ter pensado: “Bem, já que ela está viúva...”

Certa vez me falaram sobre uma senhora que não é do tempo de Salomão, nem de tão distante quanto a Tailândia, mas daqui mesmo e de poucos anos atrás. Pois essa senhora, me disseram, teve quatro maridos. Com a prudência, no entanto, de ocupar-se com um de cada vez e esperar que um morresse para aceitar outro em sua cama. Viúva quatro vezes, ainda ficou em bom estado e disponível para o quinto casamento. O qual não aconteceu porque, é o que dizem, os possíveis candidatos ficaram com medo daquela mulher que amava ardorosamente, mas que justamente por ser tão ardorosa era garantia de morte para quem ousasse provar do seu amor fatal.  Tem perigos que nem o rei da Tailândia encara.

Enfim, melhor contentarmo-nos com uma só, o que, se pensarmos bem, é mais do que merecemos. Afinal, diz o Livro dos Provérbios que “Quem encontra uma esposa encontra algo excelente”. E, acrescento eu, suficiente para nos deixar ocupados e felizes, não só durante uma quarentena, mas durante uma vida inteira.

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É uma loucura!

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Falar sozinho, de fato, ninguém fala

Falar sozinho, de fato, ninguém fala

A senhora que vai à minha frente conversa tão animadamente que retardo o passo para observá-la. Falta de educação minha, reconheço, mas como não dar especial atenção a quem anda assim, num bate-papo tão animado pelas calçadas? E lá estava ela, alternando vozes, contrapondo argumentos, pontuando com gestos expressivos seus pontos de vista. Conversa educada, nenhum exagero, nada de ofensas. Mas também, é forçoso reconhecer, sem conciliação entre os interlocutores. Às vezes ela passava a mão na testa, num movimento impaciente, mas logo se acalmava e voltava a desfilar raciocínios, exemplos, ponderações. Parecia uma velha mãe doutrinando o filho cabeça dura.

Até aí, tudo bem. Não há lei que impeça as pessoas de conversarem enquanto vão caminhando para casa, após um longo dia de trabalho. Em se tratando dessa senhora, todavia, o caso tinha a particularidade de que ela estava falando sozinha. Ou, melhor dizendo, falava com uma pessoa que somente ela via e ouvia, porque falar sozinho, de fato, ninguém fala. Fala-se, sim, com alguém invisível, mas presente, pois “só se vê bem com o coração; o essencial é invisível aos olhos”.

Confesso que fiquei quase feliz ao vê-la dialogar com o vazio, na sua loucura contida, civilizada. Até me lembrei de alguns malucos que conheci nos longes da minha infância e acabei concluindo que já não se fazem mais loucos como os de antigamente. Quando eu era garoto, todo bairro que se prezasse tinha o seu destrambelhado particular, do qual cuidava com orgulho e carinho. Ah, os doidos de antigamente! Serviam para capinar o quintal, levar recados, até mesmo para tomar conta das crianças eles serviam. Não assim os de agora. Atualmente, quando um sujeito resolve desvairar, não faz por menos: pega um fuzil, vai para a lanchonete e mata 10, 20 pessoas. Ou então funda uma religião, explica para Deus como é que as coisas devem ser e, não obtendo a compreensão de Deus no céu ou dos homens na terra, põe fogo no templo com todos os fiéis dentro, e eles morrem felizes, gritando “Glória, glória, aleluia!” Os tantãs dos velhos tempos eram Napoleão, Maria Santíssima ou Getúlio Vargas e só ficavam chateados quando alguém não lhes reconhecia a verdadeira identidade e insistia em chamá-los de João, Madalena ou Teotônio.

Contaram-me que certa vez fizeram um exame nos motoristas de ônibus do Rio de Janeiro e concluíram que 60 ou 70% deles padeciam de algum distúrbio mental. O que me espantou foi saber que 30 ou 40% desses trabalhadores ainda conseguem manter alguma sanidade, mesmo dirigindo o dia inteiro, por anos a fio, no trânsito carioca. Quando Jânio renunciou, um deputado propôs que a lei passasse a exigir atestado de saúde mental dos futuros pleiteantes à Presidência da República. A ideia não deve ter prosperado porque nunca se chegaria à conclusão de quem seria bom da bola o bastante para avaliar os candidatos.

Basta ler “O Alienista”, de Machado de Assis. O Dr. Bacamarte, médico ilustre, chega a Itaguaí para dedicar-se ao estudo da loucura. Começa por prender um doido indiscutível e pouco a pouco vai avançando sobre os demais cidadãos, até meter no hospício desde a própria esposa até o prefeito. Quando finalmente o Dr. Bacamarte fica sozinho do lado de fora do manicômio, chega à brilhante conclusão de que, se tantos são os doidos, ser doido é o normal, e só quem tem a cabeça no lugar é que precisa ser metido em camisa de força e retirado do convívio social, a fim de que não mais perturbe, com sua lucidez descabida, a tranquila loucura geral. E, então, o grande cientista liberta todos os internos e prende-se a si mesmo, numa atitude de grande coerência científica.

“Eu não sou maluco, não!”, é a primeira coisa que todo maluco diz. Não sejamos, pois, tão pretensiosos. Sejamos, sim, benevolentes com os que, neste vasto hospício em que vivemos, ainda conseguem conservar alguma mansidão em sua loucura, pois de médico, poeta e, sobretudo de louco, todos nós temos um pouco.

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