Blog de roberiocanto_18846

Mortos muito vivos

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Teoria por teoria, essa é tão boa quanto outra qualquer

Teoria por teoria, essa é tão boa quanto outra qualquer

Há muitos mistérios neste mundo e de nada devemos duvidar. Por exemplo, até recentemente os portugueses esperavam sentados pela volta do rei D. Sebastião, que nunca voltou, pela singela razão de que havia morrido em 1578, na África, onde fora se meter em guerra contra os mouros.  Rei e órfão desde o ventre materno, morreu sem deixar herdeiros, e órfã deixou a nação portuguesa. Como seu corpo nunca foi achado, desse defunto insepulto nasceu o Sebastianismo, crença de que o rei voltaria para governar e engrandecer a pátria. Creio que, passadas algumas centenas de anos, mesmo os mais ferrenhos monarquistas lusitanos já desistiram de esperar por esse rei que, de bom mesmo, só fez autorizar a criação da Cidade Maravilhosa. Bem, foi mais ou menos isso que aprendi na minha longínqua oitava série.

Elvis Presley é outro que continua vivo mesmo depois de ter morrido. E não estou falando em sentido figurado: é vivo mesmo, ou pelo menos assim pensa muita gente mundo afora. Recentemente apareceu a foto de um senhor gorducho, de vasta cabeleira branca, que, para muitos, não é outro senão o Rei do Rock, agora trabalhando como jardineiro — vejam vocês o que é a vida e quão passageiras são as glórias deste mundo! Isso depois de ter fugido para a Argentina, de ter atuado como coadjuvante no filme Esqueceram de Mim e de ter sido abduzido por uma nave espacial. Ou seja, pode estar cuidando de jardins, cantando tango em casa de shows, ou ensinando marcianos a tocar violão e requebrar.  Mas a maior prova de que Elvis não morreu em 1977 é a declaração de uma confiável senhora americana para quem o próprio telefonou recentemente, para dar notícias e informar que estava passando bem. Não há por que duvidar.

Com certeza também não faltará quem ache que Michael Jackson anda escondido em algum lugar por aí, preparando uma nova turnê, ou talvez administrando uma barraca no Mercado Modelo de Salvador. E não é de todo impossível que Frank Sinatra tenha sido visto de sarongue, torcendo pela Mangueira no Carnaval carioca de 2019. (Pelos exemplos citados, já se viu que são os artistas americanos os que mais sobrevivem ao próprio caixão).

Quem parece que morreu mesmo foi o pessoal que teve o azar de, no dia 14 de abril de 1912, estar a bordo do Titanic, embora nele ou dele não tenha morrido ninguém. Explico: segundo uma das centenas de teorias da conspiração que rolam pelo mundo, o navio que afundou foi outro, um tal de Olympic. Os dois pertenciam à mesma empresa e o Olympic já estava meio ferrado, por causa de um acidente. Há quem acredite que um diretor da empresa teve então a brilhante ideia de despachar o Olympic no lugar do Titanic, cujo falso afundamento resultaria numa indenização muito maior.

O problema foi que o suposto Titanic afundou antes da hora combinada, e o socorro que estava planejado não chegou a tempo de recolher os náufragos. Ou seja: o Titanic só afundou de mentirinha, mas quem morreu, morreu de verdade. Talvez a história não seja bem assim, que eu não sou especialista em teorias da conspiração. Mas, teoria por teoria, essa é tão boa quanto outra qualquer. E se você, leitor, se interessa pela pura verdade dos mais falsos acontecimentos, não faltará um livro ou um filme para contar uma versão que mais lhe agrade.

Enfim, há muitas e diferentes mortes, e uns morrem mais do que outros. O melhor que fazemos é ir cuidando da nossa própria vida enquanto podemos, até que chegue a hora em que também o nosso navio vá para o fundo oceano do esquecimento, e não haja qualquer teoria que, falsa ou verdadeira, nos traga de novo à vida.

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Eles e nós

quarta-feira, 06 de janeiro de 2021

Como atiram mal policiais e bandidos americanos!

Como atiram mal policiais e bandidos americanos!

Não é desfazer dos nossos, mas presidentes cinematográficos são os americanos. É só assistir a dois ou três filmes de aventura para chegar a essa conclusão. Tem filme em que The President entra no Number One e parte para enfrentar terroristas ou alienígenas só com a cara e a coragem e o apoio da plateia. De fato, não demora muito e os céus se enchem de explosões, enquanto, ao som de alguma música triunfante, o herói volta para a Terra, onde o esperam os aplausos de seus compatriotas e o abraço da primeira-dama. Tem filme em que potências estrangeiras armam longos planos para matar o homem e, na hora agá, um segurança se mete entre a bala fatal e o peito presidencial, o qual sai de cena com uma rapidez de fazer inveja a Usain Bolt. Terrorista se dão ao trabalho de passar anos planejando uma cilada, subornando seguranças e se infiltrando entre os convidados para o baile na Casa Branca. E, nos dez minutos finais da história, acabam descobertos por um faxineiro distraído ou por uma humilde secretária.

Mas também há coisas em que eles são piores do que nós. Novamente podemos encontrar comprovação nos filmes. Quantos filmes você já viu em que os bandidos — presos com justiça —, ou o mocinho — injustamente preso —fazem o maior sacrifício para escapar da prisão? É tanto cavar túneis, arrombar paredes e pular muros que metade da sessão se gasta nessa trabalheira. Método também muito usado e bem mais prático é atrair o guarda para perto da cela e dar-lhe uma gravata mortal. Depois, é acomodar-se na sela de um cavalo que estava dando bobeira do lado de fora ou ligar o carro que algum descuidado tinha deixado ali por perto, com a chave na ignição e tudo mais. E aí, basta desviar-se dos tiros e ganhar o mundo. Aliás, como atiram mal policiais e bandidos americanos! Quatro ou cinco deles descarregam suas metralhadoras contra o fugitivo e nenhuma bala o atinge, nem de raspão. Já o carro, coitado, fica mais furado do que uma peneira, se me permitem usar essa expressão antiga. Mas, se é o mocinho que está fugindo, basta que ele dê um tiro para trás e dois ou três dos seus perseguidores vão direto para o céu — se é que existe céu para bandidos.

Quanto aos nossos bandidos... é outro nível. Nem precisam sair da prisão, porque de lá mesmo tocam seus negócios, por meio de celulares ou pombos-correios. E caso resolvam arejar as ideias ou rever os amigos, saem pela porta da frente, geralmente por descuido de quem os vigiava e que depois exclama, sinceramente surpreso: “Mas ele tava aí ainda agorinha! Como é que esse cara sumiu assim no de repente?!” E, no caso extremo de um ou mais presos precisarem cavar um túnel para ver o sol lá fora, ninguém vai aborrecê-los, querendo impedir a conclusão da obra.

A política é outra atividade em que estamos à frente dos americanos. Com toda a tecnologia que têm, eles levam semanas para saber quem ganhou a eleição. Pior ainda: nem sempre é o mais votado que leva.  Aconteceu com Hilary Clinton, aconteceu com Al Gore, que ganharam nas urnas, mas perderam no Colégio Eleitoral. Nós, não. Nós sempre damos posse ao mais votado, embora frequentemente o tiremos do cargo antes da hora. Mas no mesmo dia da eleição, à noitinha, ficamos sabendo quem vai nos governar. E até houve uma época em que, com meses de antecedência, o povo era informado de quem tinha vencido a eleição, e por acaso era sempre um general.

Eles têm suas virtudes e seus defeitos, nós temos nossos defeitos e nossas virtudes. A diferença é que nós os adoramos ingenuamente, e eles solenemente nos ignoram.

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Os mascarados

quarta-feira, 02 de dezembro de 2020

É ela que permite que dois conhecidos que se desconhecem troquem palavras cordiais ao se encontrarem por acaso

É ela que permite que dois conhecidos que se desconhecem troquem palavras cordiais ao se encontrarem por acaso

Os mais moços talvez não conheçam a palavra nesse sentido, mas ela sobrevive nos dicionários, ainda que em estado vegetativo. Está lá no Michaelis: “Mascarado: Diz-se de ou indivíduo ou profissional muito convencido ou presunçoso”. De fato, quando antigamente se queria acusar alguém de vaidoso, pretensioso, metido a besta, podia-se dizer, por exemplo: "Bom jogador, mas muito mascarado", ou "Além de burro, é mascarado". Isso era no tempo da televisão à lenha, coisa muito antiga. Tempo em que bandido usava máscara, preferindo ser um cidadão anônimo e atuando sobretudo à noite. Atualmente eles querem mais é ser conhecidos e reconhecidos, não têm mais horário certo, atacam 24 horas por dia e de cara limpa, nem ligam para as câmeras que gravam suas ações, às vezes até dão adeusinho para elas.

Mas nem foram os bandidos que me lembraram do antigo uso do adjetivo mascarado. Para falar a verdade, foi um acontecimento honesto e banal. Estava eu caminhando quando uma senhora me cumprimentou com grande familiaridade. Não tinha dúvida: ali estava uma velha conhecida, conhecimento que lhe permitia, sem faltar com a boa educação, interromper o caminhante que ia absorto em seus pensamentos — graves ou insignificantes — para dois dedos de prosa matinal. Mais ou menos bem educado que sou, não deixei de levar a conversa adiante, a qual se encerrou com mútuas declarações de alegria pelo encontro.

Meu problema começou dois passos adiante: quem era aquela senhora tão atenciosa? Lembrei-me até de uns versinhos que ando repetindo há anos, sem saber se são meus ou se os copiei de alguém: "Vi meu amigo de longe, / ele também me reconheceu. / Quando nos aproximamos, / eu vi que não era ele, / ele viu que não era eu". Estivesse ela sem máscara, e provavelmente eu a teria identificado, ou pelo menos reduzido a variedade de tempos e espaços em que nos teríamos conhecido: no trabalho, na vizinhança, numa festa, num funeral? Mas assim, com metade do rosto escondido, era apenas um vulto, uma voz, um punhado de gestos. Nada suficiente para que eu lhe desse um nome, uma personalidade, enfim, uma identidade.

A pandemia do coronavírus, de tantas e tão trágicas consequências, tem, pelo menos para mim, essa gravidade adicional: dificulta a identificação das pessoas. Não que antes eu fosse capaz de reconhecer todo mundo com rapidez e precisão. Muitas e muitas vezes cumprimentei estranhos e em tantas outras passei por amigos como se nunca os tivesse visto (talvez por isso, quem sabe, alguém já tenha me chamado de mascarado). Mas agora o problema se complicou muito. Obrigados a andar somente com meia cara de fora para não contrairmos o vírus ou para não transmiti-los aos outros, ficamos todos meio irreconhecíveis.

Sim, a máscara é necessária e bem merece ser chamado de mascarado quem não a usa. Mas tem seus efeitos colaterais, alguns bons, outros ruins. De ruim tem isso de não sabermos a quem estamos cumprimentando ou quem está acenando para nós. Às vezes também oculta o rosto de uma moça bonita ou de uma criança alegre. Mas é ela que nos protege contra esse bichinho que tão cruelmente ataca a humanidade. E é ela que permite que dois conhecidos que se desconhecem troquem palavras cordiais ao se encontrarem por acaso, durante uma caminhada matinal.

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Questão de fé

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Se duvidar, cura também dor de cotovelo, corações partidos e versos de pé quebrado

Tem horas em que a gente, por mais boa vontade que tenha, se cansa dessa tal de espécie humana. Não raramente concluímos que, tirando nós mesmos, nossos parentes e alguns poucos amigos, a humanidade não passa de um punhado de pessoas imprestáveis, pra não dizer francamente desprezíveis. Verdade que a espécie humana está pouco se lixando para a nossa opinião, mas isso não nos impede da falar mal dela (como se dela não fizéssemos parte).

Se duvidar, cura também dor de cotovelo, corações partidos e versos de pé quebrado

Tem horas em que a gente, por mais boa vontade que tenha, se cansa dessa tal de espécie humana. Não raramente concluímos que, tirando nós mesmos, nossos parentes e alguns poucos amigos, a humanidade não passa de um punhado de pessoas imprestáveis, pra não dizer francamente desprezíveis. Verdade que a espécie humana está pouco se lixando para a nossa opinião, mas isso não nos impede da falar mal dela (como se dela não fizéssemos parte).

Apesar disso, de vez em quando constatamos que ainda há neste mundo muitos corações generosos. Gente que nunca ouviu falar em nós e nem desconfia de nossa existência e que, no entanto, vive pensando em nós e por nossa causa morre de preocupação. Por exemplo: há poucos dias recebi uma mensagem de uma dessas almas caridosas (para as quais desde já as portas dos céus se encontram abertas) me oferecendo uma pulseira que cura todas as dores musculares. Ou, pelo menos, todas aquelas que me afligem e muitas outras das quais eu mesmo nem desconfiava que sofria.

São tais as maravilhas da dita pulseira que até pensei em voltar aos meus tempos de atleta, atividade que abandonei há tantos anos, para o bem do meu joelho e do futebol nacional. Pois fui daqueles jogadores que chutam a bola na direção que o nariz aponta, sendo que, no meu caso, frequentemente essa direção era a do gol da minha própria equipe. Em virtude do que, dei muita volta olímpica nos gramados, correndo tanto quanto possível à frente de nossos goalkeepers. Também isso contribuiu para que eu abandonasse a bola em favor das letras, atividade esta em que acabei me revelando tão genial quanto nos campos de futebol.

Contudo, houvesse nos meus tempos de lateral esquerdo a milagrosa pulseira de que ora vos falo, bem outra poderia ter sido a minha história. Porque essa grande contribuição da ciência brasileira aos atletas de todas as modalidades e nacionalidades significa o fim dos sofrimentos físicos que a prática esportiva costuma acarretar. E não só a prática esportiva, mas também as mais comezinhas das ações humanas, tais como subir escada ou correr da polícia. E se o prezado leitor também padece de algum desconforto na região situada entre o dedão do pé e a raiz do cabelo, deve logo se informar sobre o assunto, pois o uso desse maravilhoso invento da ciência brasileira elimina desde torcicolo a unha encravada. Se duvidar, cura também dor de cotovelo, corações partidos e versos de pé quebrado.

Não sejamos tão crédulos quanto aquele soldado americano que, ao voltar ao seu país depois de anos de ausência, encontrou em casa um recém-nascido. Tendo a esposa lhe garantido que engravidara pensando nele enquanto assistia a filmes pornográficos, o bravo guerreiro tanto acreditou que até transmitiu ao bebê o seu próprio nome, acrescido de Júnior. Mas também não sejamos desconfiados demais. A pulseira mágica pode não curar coisa nenhuma, não tendo outra vantagem além de botar dinheiro no bolso do espertalhão que a está vendendo. Mas quantos males e quantas dores não deixaram de existir em doentes que só tomaram placebo ou ouviram do médico de confiança: “Isso não é nada, rapaz!”

O que me lembra da velha história do sujeito que recebeu de um amigo chegado da Terra Santa uma lasca da madeira da Cruz de Cristo, lasca que, por sinal, o dito amigo tinha arrancado naquele mesmo dia de uma árvore do quintal de sua casa. Pois o doente ficou rapidamente curado de várias moléstias, algumas das quais já vinham pesando em suas costas há longos anos. Esse é o episódio que explica e justifica o antigo ditado segundo o qual “mais cura a fé do que o pau da cruz”.

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Entre João Vaine e Jon Eine

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Talvez porque também a professora fosse adepta das santas soluções average

Talvez porque também a professora fosse adepta das santas soluções average

Não é pra me gabar, não, mas o fato é que falo inglês desde minha longínqua adolescência. Eu atuava de lateral esquerdo e era um dos mais famosos atletas do bairro, sobretudo pela minha capacidade de chutar a bola em qualquer direção. Graças a esse dom, devo ter feito mais gols contra do que Pelé a favor. E foi praticando o esporte de Charles Miller que tive meus primeiros contatos com a língua inglesa, então predominante no futebol brasileiro. Eis que no meu tempo da afamado lateral esquerdo uma palavra gozava de especial prestígio, provavelmente porque a compreensão que tínhamos sobre o que ela significava era mais ou menos a mesma que tínhamos da Física Quântica. E o mais bonito é que a pronunciávamos exatamente como a víamos escrita no Jornal dos Sports: a-ve-ra-ge.

Muita briga se deu nos campos de pelada por causa do tal “goal average”. Frequentemente a equipe que perdia uma competição se dizia campeã pelo critério do “goal average”. Era quase uma senha para que técnicos e diretores invadissem o gramado (sem grama, mas com muita poeira ou lama) e o empurra-empurra começasse. Mas geralmente se chegava a um acordo, e os dois times dividiam o título: um campeão pelas pontos obtidos e outro, pelo “goal average”.

Sabendo que se tratava de uma palavra estrangeira, o que lhe dava grande autoridade, também os adultos logo compreenderam a importância de usá-la nas questões do dia a dia. Por exemplo: marido e mulher brigavam. Um vizinho mais solícito ia reconciliar os dois e já chegava dizendo: “Vamos resolver isso no average”. Diante de palavra tão poderosa, dificilmente a briga continuava. E foi por meio dela que dei o meu primeiro passo no idioma que Donald Trump usa para enaltecer os Estados Unidos e esculhambar o resto do mundo, principalmente a parte latina, latrina e latida, coisas que para ele têm pouca ou nenhuma diferença.

Mas nem só de average vivíamos nós. Nosso inglês ia muito além. Lembro-me que fomos ver um faroeste e o mocinho era um sujeito alto e meio desengonçado. A discussão pós-filme foi sobre como falar o nome do artista. Era quase unânime a opinião de que o homem se chamava João Vaine, mas não faltaram dois ou três sabidos que insistiam em falar Jon Eine. Até pensamos em consultar os mais velhos, mas desistimos ao lembrar que provavelmente eles diriam que “de acordo com o average”, as duas pronúncias podiam ser aceitas. Um dos nossos, mais adiantado na escola, pediu a opinião de um professor, mas não conseguiu guardar a resposta na cabeça e acabou optando por Joel Eine, que não estava previsto.

Assim, de degrau em degrau, ou mais propriamente step by step, tentei subir no inglês, mas, para falar a verdade, até hoje estou no começo da escada.  E ainda não sei como se pronuncia ou o que significa average (cartas para a redação, caso tenha aí algum leitor que não seja como eu semianalfabeto em inglês). Na faculdade, iniciei o curso de Letras na esperança de que a professora de Língua Estrangeira fosse surda (não era). Mas felizmente era compreensiva e deixava para mim a pergunta mais fácil da lição. Na décima vez que ela perguntou What´s your name?, vacilei um pouco, mas resolvi arriscar. Quando pronunciei o nome pelo qual toda a turma me conhecia, houve um alívio na sala. No fim das contas, acabei sendo aprovado e pegando meu canudo de papel, como diria o Martinho da Vila. Até hoje não sei como consegui isso. Talvez porque também a professora fosse adepta das santas soluções average.

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Proposta de casamento

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

— Casar contigo? Tá doido!

— Ué, por que não? Tou me oferecendo de coração.

— E vai sustentar a gente como? E tem meus três meninos. Tu tem quantos?

— No papel é duas meninas.

— Mas fora do papel é uma fila que vai daqui à Bahia. É o que dizem...

— Exagero desse povo, num chega nem a Niterói.

— Quero não. A gente ia ter lua de mel com cinco testemunhas na cama.

— Cama é o que não me falta. Ontem mesmo peguei um sofá na beira do rio. Tirando a mola que espeta dum lado, dá pra dormir otimamente bem.

— Casar contigo? Tá doido!

— Ué, por que não? Tou me oferecendo de coração.

— E vai sustentar a gente como? E tem meus três meninos. Tu tem quantos?

— No papel é duas meninas.

— Mas fora do papel é uma fila que vai daqui à Bahia. É o que dizem...

— Exagero desse povo, num chega nem a Niterói.

— Quero não. A gente ia ter lua de mel com cinco testemunhas na cama.

— Cama é o que não me falta. Ontem mesmo peguei um sofá na beira do rio. Tirando a mola que espeta dum lado, dá pra dormir otimamente bem.

— Mas tua casa é desse tamaninho. A gente ia morrer sufocado lá dentro.

— Você precisa ver as janelas. É janela pra todo lado. Muito arejado. E tem um quintal bacana...

— Muito do bacana! Pena é aquele barranco nos fundos: cai-não-cai. Quero não.  E tem o Arlindo.

— O que que o Arlindo tem com a nossa conversa?

— Quer casar comigo.

— Safado! Picareta! Eu vi primeiro, ninguém tasca! E deve ser casado, aquele malandro.

— Casado é você e com três ou quatro. Arlindo é solteirinho que só vendo.

— Mas dizem que ele é meio frouxo.

— Isso posso te garantir que é mentira.

— Num vai me dizer que tu tá falando por experiência própria!

— Ah, deixa pra lá! Mas casar contigo, só se eu tivesse maluca.

— Vamos fazer o seguinte: a gente dá um chego lá em casa, tu vê as condições e pensa melhor no assunto.

— Tá bom. Vou lá conhecer tua casa. Mas, ó, num vou passar da sala, combinado?

— Mas o mais lindo é o quarto. Tu precisa ver.

— Tem o que no quarto?

— Tem a cama, tem o espelho, tem...

— O importante é a cama. É boa?

— Macia que dá gosto! Só vendo!

— Vamos lá dá uma olhada. Sem compromisso, hem!

— Sem compromisso. Deixa comigo...

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O armário e a nota de duzentos

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A mãe, que até então vinha se saindo bem, vacilou por alguns demoradíssimos segundos

A mãe, que até então vinha se saindo bem, vacilou por alguns demoradíssimos segundos

Estou na fila, um pouco atrás deles. O menino não para: levanta um refrigerante que está no carrinho, puxa a blusa da mãe, pergunta se pode abrir o pacote de biscoito, pede para ir ao banheiro, tudo isso ao mesmo tempo. Quando há somente um freguês à sua frente, ela começa a abrir a carteira, não sem que o pixote tente puxar uma nota. “É aquela do cachorro?”, pergunta ele, com certeza se referindo à nota de duzentos reais, que ainda não foi vista ao vivo por ninguém, mas já há algum tempo é anunciada na TV como mais uma gloriosa obra do governo para alavancar a economia nacional.

Se bem que não é totalmente verdadeiro dizer que ninguém tenha visto a tal nota, que traz impressa o lobo guará, o qual veio inflacionar a fauna das moedas nacionais. Antecederam-no beija-flores, garças, araras, micos e garoupas. Ou seja, uma bicharada heterogênea, ao mesmo tempo monetária e zoológica. Mas o fato é que o lobo guará não é de todo inédito na mão dos brasileiros. Isso porque a criatividade do nosso povo mais uma vez falou mais alto e se antecipou ao governo. Mal a Casa da Moeda começou a imprimir a nota de duzentos, e a plebe apenas a conhecia pela propaganda oficial, e já os falsários trabalhavam para abastecer o mercado, fabricando dinheiro com a serenidade de quem imprime santinhos para distribuir nas igrejas.

Posta em circulação, a esmerada produção caseira não contou com a simpatia da polícia, que logo começou a recolher a grana e a perseguir seus criadores.  Foi uma verdadeira caçada ao pobre do lobo guará. Aqueles patriotas, que apenas desejavam auxiliar o governo na dura tarefa de colocar milhões de reais em circulação, não tiveram sua boa intenção compreendida e recolheram as impressoras, aguardando um momento mais oportuno para voltar à ativa. Talvez também tenham desanimado do meritoso trabalho que realizavam ao perceber que o povão preferia que o arisco lobo guará fosse substituído pelo seu primo pobre, o simpático vira-lata, o mais nacional de todos os cachorros, talvez o mais brasileiro dentre todos os nossos bichos.

Pois não é que a nova nota me desviou do que, de verdade, me chamou a atenção no diálogo do menino com a mãe? Ela, pacientemente, ia respondendo e contendo o filho, enquanto tirava as mercadorias do carrinho. Só mesmo mãe para fazer essas três coisas ao mesmo tempo! E o que mais me fez alongar as orelhas foi o anjinho ter perguntado, em voz bem alta, se era verdade que o tio fulano tinha saído do armário. Tem coisas que atrapalham até mesmo as mães mais experientes.

— Qual armário que ele tava, mãe? Aquele grandão do quarto, mãe? Deve ser, do jeito que titio é gordo! Ele tava fazendo o quê dentro do armário, mãe? Por que que ele saiu do armário, mãe? Aquele moço que anda com ele ajudou ele a sair do armário, mãe? Eles tavam brincando de quê, mãe? De esconde-esconde, mãe? Gente grande também brinca de esconde-esconde, mãe?

Eis que não apenas eu, mas também a funcionária do caixa e um freguês do outro lado tinham alongado as orelhas.  Todos queriam saber como a jovem mãe ia responder a tantas e tão embaraçosas perguntas. Porque, apesar de atualmente tanta gente estar saindo do armário, o assunto ainda é delicado, principalmente quando levantado por uma criança, na fila do supermercado, e tendo um tio como personagem central.

A mãe, que até então vinha se saindo bem, vacilou por alguns demoradíssimos segundos, enquanto o moleque olhava para cima e a puxava pela manga. Mas ela logo se recuperou e deu uma resposta bastante sensata e quase verdadeira.

— Seu tio estava consertando o armário. É isso aí, filho. Aí seu tio ficou preso lá dentro, entendeu? Aí o amigo dele foi ajudar e ele saiu do armário. Entendeu? Agora para de fazer pergunta e me ajuda a tirar as compras do carrinho!

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JTNJJ Miguel - uma figura

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

D. Marta ficou nervosa à toa e mandou parar, como se ele tivesse culpa do tamanho do Brasil

D. Marta ficou nervosa à toa e mandou parar, como se ele tivesse culpa do tamanho do Brasil

Miguel era diferente por seu próprio tipo físico, que conseguia ser alemão e roceiro ao mesmo tempo, com aqueles cabelos em fogo sobre a cara avermelhada, o nariz descascando na ponta. Vestia uma imutável jaqueta de couro, fosse inverno ou verão. E ria, vivia rindo. Ria da descompostura que levava das colegas, em cuja conquista batalhava o tempo todo; ria dos conceitos que obtinha nas provas, exibindo-os para a turma e explicando: “Esse professor não me entende...”  Ria das dúvidas que lançavam sobre seu talento de cantor e instrumentista, afirmando que mesmo os grandes astros tinham enfrentado a descrença antes de atingirem a fama. Nada podia magoá-lo e todos gostavam dele. Divertiam-se com sua elegância brega, deixando crescer a unha do dedo mindinho, coisa que julgava o fino da distinção; aceitavam sua ignorância simpática; engoliam suas respostas descalibradas, para as quais não havia réplica: “Dizer para a turma o que entendi desse texto... Professor, será que, no lugar disso, não dá pra apresentar um sucesso do Roberto Carlos, não? As gatas aí da sala estão a fim de um som romântico, professor”.

Embora não fosse simplesmente acomodado, Miguel nunca ficava triste por causa dos insucessos escolares. Se a Matemática insistia em ser um mistério impenetrável, pior para a Matemática, não era por causa de uns números sem pé nem cabeça que ele iria deixar-se abater. Um professor dizia que a Linha do Equador era imaginária... “E vale a pena estudar um negócio que nem existe de verdade?” O outro queria fazê-lo acreditar que o Português nascera do Latim, idioma falado pelos antigos romanos, mas como acreditar nisso se outro dia passou um filme em que os bravos soldados de Roma esbravejavam em Inglês, coisa fácil de perceber pelos yesses e nous que apareciam o tempo todo? Numa aula, D. Marta mandou-o localizar o Estado do Rio no mapa do Brasil, país grande que não tem mais fim. Miguel deu a partida lá de cima no Amazonas e veio correndo o dedo por todo o território nacional. Já estava quase em Minas Gerais quando D. Marta ficou nervosa à toa e mandou parar, como se ele tivesse culpa do tamanho do Brasil. Não conseguindo entender a complicação que os professores faziam, só continuou a estudar porque da última vez em que pedira aumento de salário, o patrão se saíra com um monte de conversa fiada que, resumida, significava isso: Pelo estudo que tem, você ganha até demais.

Abraçado ao violão, tentava impressionar as garotas, desfiando todas as canções possíveis sobre dor de cotovelo. No recreio, o pessoal ia chegando e ficava olhando os dedos nodosos de Miguel pulando de uma corda para outra, tentando produzir sons delicados, mas arrancando do instrumento apenas uma fala bruta e desarmoniosa como a própria mão que a produzia. Quando lhe perguntavam por que raramente trazia os livros, mas nunca se esquecia do violão, respondia que nunca tinha visto juntar mulher em volta de livro.

 No fim do ano Miguel foi informado de que os professores não tinham condições de promovê-lo à série seguinte, e que seria melhor ele repetir o ano para superar algumas deficiências e coisa e tal. Terminada a explanação, Miguel armou uma cara de funda preocupação e deu uma resposta que bem define sua atitude diante da vida: “Isso aí que o senhor falou, tudo bem. Agora, eu queria saber se é verdade que no ano que vem não vão mais me deixar entrar em sala com o violão. Aí, já é prejudicar uma carreira, é ou não é?”

Mas no outro ano Miguel voltou, e o violão também. Vê-los na aula era como assistir pela segunda vez à mesma comédia, sem que por isso ela perdesse a graça. “Bom, eu não compareci à prova porque ontem eu vinha ouvindo umas musiquinhas no ônibus. Acredita que dormi, acordei lá no ponto final e perdi a hora? O que me atrapalha, professor, pode crer, é esse meu amor à arte”.

O colégio conseguiu ensinar pouco mais do que pouca coisa a Miguel. Ele, no entanto, ensinou muita coisa a todos do colégio. Ainda outro dia foi visto, empoleirado no alto de um poste, talvez trocando lâmpadas, talvez consertando linhas telefônicas, a cara mais vermelha, o nariz mais descascado, um sol que parecia concentrar-se todo no cabelo amarelo de Miguel. Lá estava ele, com a mesma alegria criança que sempre mora em seu coração, com sua lição de otimismo e coragem. Consciente de suas limitações intelectuais, faz graça com elas; sabedor de sua feiura, comporta-se como galã irresistível e, por mais que a vida o maltrate, não deixa de sentir e demonstrar amor por ela. Pendurado no poste, por mais que o sol lhe bata no rosto, por mais incômoda que seja a posição em que se acha, não deixa de acenar para um conhecido que passa lá embaixo.

Você costumava dizer, Miguel, que não tinha jeito para aprender. Talvez seja verdade. Mas você tem algo mais importante do que isso, que é o seu jeito para ensinar. Ensinar a gente a aceitar a vida, mesmo quando ela se comporta como uma velha rabugenta e nos trata a chineladas.

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Entrevista virtual com o poeta Manuel Bandeira

quarta-feira, 02 de setembro de 2020

— Começando lá bem de trás: como foi sua infância?

— Sou bem nascido, Menino, fui, como os demais, feliz.

— O que você faz para retornar a essa infância feliz?

— Enquanto anoitece, vou lendo sossegado e só as cartas que meu avô escrevia a minha avó.

— Do que mais você se lembra dos lugares de seus tempos de menino?

— Da velha chácara triste: Não existe mais a casa... Mas o menino ainda existe

— Como o poeta Manuel Bandeira define o homem Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho?

— Começando lá bem de trás: como foi sua infância?

— Sou bem nascido, Menino, fui, como os demais, feliz.

— O que você faz para retornar a essa infância feliz?

— Enquanto anoitece, vou lendo sossegado e só as cartas que meu avô escrevia a minha avó.

— Do que mais você se lembra dos lugares de seus tempos de menino?

— Da velha chácara triste: Não existe mais a casa... Mas o menino ainda existe

— Como o poeta Manuel Bandeira define o homem Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho?

— Provinciano que nunca soube escolher uma gravata. E em matéria de profissão um tísico profissional. Músico falhado (engoliu um dia um piano, mas o teclado ficou de fora).

— Apesar de doente desde cedo, sua poesia revela uma tranquila aceitação do sofrimento.

— Só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

— O que alguém pode fazer quando se descobre doente, como aconteceu com você ainda jovem?

— A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

— A doença fez você perder a pureza da juventude?

— Não sei entre que astutos dedos deixei a rosa da inocência.

— Sua poesia frequentemente fala de tristezas ...

— Eu faço versos como quem chora de desalento... de desencanto.

— Qual foi a outra grande tristeza de sua vida, Bandeira?

— Uma noite de muito frio, a Dama Branca levou meu pai.

— Nos seus poemas o amor frequentemente parece irrealizado ou mal sucedido...

— Amor – chama e, depois, fumaça... O fumo vem, a chama passa... Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

— Mas você tem amado muito na vida...

— A escuridão propícia aos furtos, propícia aos furtos como os meus, de amores frívolos e curtos.

— Você foi um homem de muitas amizades. Muitas pessoas queridas por você já partiram. Como você vê esses amigos quando se lembra deles?

— Estão todos deitados, dormindo profundamente.

— Tendo vivido a dor e o amor tão intensamente, como você define a vida?

— A vida é uma agitação feroz e sem finalidade. A vida não vale a pena a dor de ser vivida.

— Em poemas como Elegia de agosto, A espada de ouro, O obelisco, você critica a situação brasileira, ou antes, o comportamento de certos brasileiros. E se tudo isso ficar ainda pior?

— Vou-me embora pra Pasárgada. Aqui eu não sou feliz. Lá a vida é uma aventura.

— Supondo que se possa gostar de morrer, como você gostaria de morrer?

— Pensando humildemente na vida e nas mulheres que amei. Sei que é grande maçada morrer, mas morrerei — quando a vida for servida — sem maiores saudades desta madrasta vida, que todavia amei.

— Então você não tem medo da morte...

— Quando a Indesejada das gentes chegar (não sei se dura ou caroável), talvez eu tenha medo. Talvez sorria e diga: — Alô iniludível!

— Cite um poeta de sua especial admiração.

— Sempre é poeta de verdade esse homem lépido e limpo que é Carlos Drummond de Andrade.

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A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.

Pandemias

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Essa mixórdia de lives, news e fakenews com que somos bombardeados diariamente

Estes tempos de pandemia são como uma árvore gigantesca em que o próprio exagero do seu tamanho às vezes nos impede de reparar nos muitos galhos que se prendem ao tronco. E, no entanto, esses galhos, se empilhados, formam outro mal, senão igual, ao menos parecido com o próprio mal de onde brotam.

Essa mixórdia de lives, news e fakenews com que somos bombardeados diariamente

Estes tempos de pandemia são como uma árvore gigantesca em que o próprio exagero do seu tamanho às vezes nos impede de reparar nos muitos galhos que se prendem ao tronco. E, no entanto, esses galhos, se empilhados, formam outro mal, senão igual, ao menos parecido com o próprio mal de onde brotam.

Além de uma das maiores tragédias humanas de que se tem notícia, precisamos enfrentar a desinformação que governantes, cientistas, médicos, jornalistas e palpiteiros em geral nos proporcionam. Cada qual dando sua contribuição à nuvem de gafanhotos em que se transformaram as recomendações sobre o que devemos fazer ou o que não fazer para escapar do inimigo. O que ninguém nos ensina é como distinguir o que é fato, o que é boato, o que é pura e simples mistificação nesse amontoado de lives, news e fakenews com que somos bombardeados diariamente.

Limão com água mineral cura? Casca de abacate fortalece as defesas naturais do organismo? Quem manda: o presidente, o governador ou o prefeito? Dexametasona, cloroquina, hidroxicloroquina, palavrões que antes não ousaríamos falar diante das crianças são agora parte inevitável do noticiário. É só uma gripezinha que vai passar logo, ou é uma praga bíblica com que os céus vêm nos punir pelos nossos pecados? Tem gente recomendando ficar em casa para não espalhar o vírus, tem gente mandando bater rua para que o vírus ataque quem tem que atacar e depois, cansado de tanta trabalheira, nos deixe sossegados. Um religioso garante a cura a quem adquirir um miraculoso caroço de feijão que ele oferece a preço de ocasião. Laboratórios correm para criar o medicamento que encare esse monstro a um tempo tão enorme que assusta o planeta e tão pequeno que não podemos vê-lo. A vacina, essa vaca sagrada, pode ficar pronta no mês que vem ou dentro de dez anos.

Em meio a essa batalha global, uma outra, particular, desafia cada um de nós: aquela que o poeta chamou de "A dificílima dangerosíssima viagem/ De si a si mesmo". Ela nos obriga a sermos nossa mais inevitável e constante companhia, mas também a estarmos mais demorada e profundamente com aqueles que compartilham conosco o mesmo teto.  Resta a esperança de que esse confinamento leve o ser humano, para usar outra vez as palavras do poeta, a ir "Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas / A perene, insuspeitada alegria / De con-viver".

Viver, conviver, viver com, eis a questão. Não falta quem, diante desse desafio, fortaleça o companheirismo, o afeto, a divisão das preocupações, alegrias e tristezas. A palavra doce que dá outro sabor ao café da manhã, o gesto de carinho que antecede ao sono. Mas sabemos que outros tantos conseguem fazer doer ainda mais o que já é por si só tão doido e tão doído. A violência doméstica, as crianças maltratadas, as secretarias de saúde que mais parecem trabalhar em favor da doença, a roubalheira de sempre, desemprego e fome que se generalizam.

Diante da feiura desse momento, encontraremos consolo e conservaremos a esperança se continuarmos acreditando que a vida, apesar de tudo, "é bonita, é bonita e é bonita", como diz a canção de Gonzaguinha.

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