A ira, o único pecado que, segundo o narrador, Deus se permite cometer
O grande poeta João Cabral de Mello Neto disse que estava velho demais para se arriscar com leituras novas, que poderiam não valer a pena, e que por isso não lia mais, só relia. Eu ainda não abri mão de leituras novas, mas sempre tive o hábito de revisitar livros que me ficaram na memória e na emoção. E agora, que um vírus, essa porcaria tão pequena que nem se pode enxergar, está nos assustando e nos obrigando a ficar em casa, tenho dedicado ainda mais tempo à releitura.
A ira, o único pecado que, segundo o narrador, Deus se permite cometer
O grande poeta João Cabral de Mello Neto disse que estava velho demais para se arriscar com leituras novas, que poderiam não valer a pena, e que por isso não lia mais, só relia. Eu ainda não abri mão de leituras novas, mas sempre tive o hábito de revisitar livros que me ficaram na memória e na emoção. E agora, que um vírus, essa porcaria tão pequena que nem se pode enxergar, está nos assustando e nos obrigando a ficar em casa, tenho dedicado ainda mais tempo à releitura.
De Machado de Assis, reli a obra-prima ”Quincas Borba”, prima de outros personagens de primeira, principalmente de seus primos Dom Casmurro e Brás Cubas. Na trama, o modesto e ingênuo professor Rubião fica milionário, ao se tornar herdeiro de Quincas Borba. Não convém dizer mais do que isso, talvez apenas acrescentar que Rubião vai conquistar a (falsa) amizade do casal Palha e apaixonar-se por Sofia, esposa do (falso) amigo. Amor de enlouquecer, como se verá ao longo do desenrolar dos acontecimentos. Não sendo possível nem conveniente contar aqui a história toda, transcrevo a única piada explícita desse livro cheio de humor tão amargo e irônico.
“Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona — um triste molambo de mulher, — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
“ — É minha, meu senhor; isto é tudo que eu possuía neste mundo.
“ — Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?”
Reli também “Xadrez, truco e outras guerras”, de José Roberto Torero. Narrativa que, com humor sutil e corrosivo, revela o quanto a ambição e vaidade dos poderosos podem custar caro, a cara e a vida dos humildes, que são esses que vão para a guerra, morrer no lugar dos que têm poder. Mais ou menos inspirado na Guerra do Paraguai, o livro trata da ira, o único pecado que, segundo o narrador, Deus se permite cometer.
Ambição, violência, amor e morte se misturam desde o palácio do rei até os campos de batalha, onde soldados dos dois lados se atacam irados, sem saber por que morrem e sem saber por que matam. Só como aperitivo, aí vão alguns trechos colhidos ao acaso durante a leitura:
“A vitória tem muitas mães, mas a derrota é sempre órfã”.
— Coronel, a ira é para o soldado o que o capim é para o jumento.
— Devo-lhe a vida./ — Então não me deves nada.
— Tens a língua afiada demais. / — Sempre é bom, se nos falta a faca.
— E quem será o novo inimigo?/ — O país do Leste./ — É um país pequeno e fraco./ — Eu sei. Por isso vou atacá-lo”.
— Se nos contentarmos em sermos como somos, nunca seremos o que poderíamos ser.
Agora tenho nas mãos “As coisas boas da vida”, de Rubem Braga, o “inimitável sabiá da crônica”, como o chamou Paulo Mendes Campos. Basta esse apelido para se perceber o cronista inigualável que Rubem Braga foi. Do livro, limito-me a transcrever esse trechinho em que ele lamenta o estado a que ficou reduzido o riacho que, quando menino, ele via passar ao lado de sua casa: “Não, esta crônica não pretende salvar o Brasil. Vem apenas dar um testemunho, perante a História, a Geografia e a Nação de uma agonia humilde: um córrego está morrendo. E ele foi o mais querido, o mais alegre, o mais terno amigo de minha infância”.
Bem, creio que os leitores, inteligentes como são, perceberam que, por falta de assunto, vali-me de autores que andei relendo nesses dias de reclusão forçada. Posso não ter sido muito criativo, mas o leitor não tem do que se queixar, porque, ao menos dessa vez, dei-lhe a oportunidade de ler textos de qualidade nesta coluna.
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