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Buenas personas

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Já é tradição os homens fazerem humor com-contra as mulheres

Já é tradição os homens fazerem humor com-contra as mulheres

Além do isolamento a que estamos obrigados por causa do vírus que ora nos espreita do lado de fora, ainda somos atacados via internet por mais mensagens do que as tantas, muitas, demais que já recebíamos quando a saúde andava à solta e a doença estava oculta nos confins da China. Se fôssemos ler todas com o cuidado que de nós esperam seus remetentes, não faríamos mais nada na vida (ou na morte) e nem mais teríamos tempo para reclamar da imensa duração dos dias, com suas horas que não passam, cada 24 parecendo 48, 62 ou mais. E o que chama a atenção é como muita gente acha um jeito de mandar mensagens que, ao falar sobre o vírus, trazem, subjacente ou explícita, a ideologia de quem as enviou. Eu, sinceramente, estou ficando confuso: não sei se o Covid-19 é de esquerda ou de direita. Não sei se nossas autoridades são um comitê de Sábios da Medicina Internacional, ou um bando de incompetentes médicos brasileiros. Cada remetente tem suas convicções e não desanima do que parece ter se transformado no propósito de sua vida: convencer-nos da pureza, da grandeza e da isenção de suas postagens.

Por outro lado, mesmo nesses tempos escuros, em que até sair à rua tornou-se imprudência, quando não pecado e crime, não falta quem se disponha a fazer humor. Às vezes, humor negro. Mas rir das próprias desgraças e dos próprios medos parece mesmo a melhor forma de o ser humano aguentar o tranco e ir vivendo, sobrevivendo. É só nos lembrarmos do caso — verídico — do sujeito que foi baleado num assalto e, já na mesa de operação, ouviu do médico a pergunta: “Tem alergia a alguma coisa?” “À bala”, respondeu o engraçadinho, enquanto o sangue escapava pelos furos que as ditas cujas lhe fizeram no corpo.

Das piadas que recebi, citarei apenas uma. Se bem me lembro, era assim: “Ahora que los bares están cerrados, me he quedado em casa, hablando com mi esposa. Parece uma buena persona”. Desculpem os erros, porque meu espanhol é dos faroestes americanos, nos quais o bandido que fala espanhol sempre acaba levando bala do mocinho que fala inglês. Quase tudo na vida tem dois lados, e o outro lado da vida nem merece ser mencionado. Eis, pois, uma lição de vida da atual pandemia: leva-nos a encontrar as buenas personas que temos ao nosso lado e tantas vezes perdemos, justamente porque as temos fácil demais. A quarentena é uma oportunidade para descobrimos aquilo que o poeta chamou de “a insuspeitada alegria de con-viver”.

Quanto ao sujeito que gostaria de estar nos bares, discutindo com outros bêbados, mas é obrigado a ficar em casa, conversando com a esposa, já é tradição os homens fazerem humor com-contra as mulheres. Certamente por inveja, uma vez que sem elas é impossível para eles realizar coisas grandiosas, como dar sentido à vida, ou pequenininhas, como achar os óculos perdidos pela casa. Assim sendo, com permissão de minha mulher e respeito a todas as outras, que desde já declaro ter na conta de buenas personas, aqui vão algumas finezas que os homens disseram sobre elas.

Quando um cara rouba sua mulher, não há melhor vingança do que deixá-lo com ela. (David  Bissonette)

Eu não tive sorte com minhas duas esposas. A primeira me deixou e a segunda, não. (James Holt McGavra)

Uma boa esposa sempre perdoa o seu marido quando ela está errada. (Rodney Dangerfield)

Um cara, todo orgulhoso, disse: “Minha esposa é um anjo”. O segundo cara respondeu: “Sorte sua, a minha ainda está viva”. (Um marido que, por motivos óbvios, preferiu ficar anônimo).

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A cara que temos

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Quem, estando na praia, vê uma mulher bonita passar e presta atenção ao mar?

Quem, estando na praia, vê uma mulher bonita passar e presta atenção ao mar?

Albert Schweitzer disse que “com vinte anos todos têm o rosto que Deus lhes deu; com quarenta, o rosto que lhes deu a vida; e com sessenta, o rosto que merecem”. Atualmente, quando pergunto ao espelho se era isso que eu merecia, ele, com um impiedoso aceno de cabeça, responde que sim. Tanto quanto você, prezado leitor, e mais ainda você, prezadíssima leitora, eu gostaria de ter mantido a cara com que me vejo nas fotos da juventude. Mas voltar ao passado só mesmo nos filmes de ficção científica, ou em romances como “O retrato de Dorian Gray”, em que o personagem-título transfere para uma pintura as consequências de todas as safadezas e todos os crimes que comete.

 O truque de Dorian Gray para não envelhecer funcionou por anos afora, mas, quando chegou, a conta foi muita alta: ele finalmente ficou com a cara que merecia, e ela era feia como todos os pecados que ele havia cometido nos seus longuíssimos anos de juventude. Coisa parecida acontece com pessoas que tanto esticam a cara pra lá e pra cá, a poder de cirurgias plásticas que, no fim das contas, já não se sabe se foi Deus, a vida, o tempo ou o cirurgião que fez aquela obra.  

Recentemente vi na TV uma cantora a quem muito admiro, mas não sei se a vi realmente, porque a vista que eu tinha dela era muito outra, outra figura. A que agora apareceu na tela estava tão plastificada que, da senhora nobremente envelhecida que poderia ter sido, ficou uma visão assustadoramente feia, mais parecendo uma caricatura de si mesma. A vantagem é que, assim alisada a ferro de passar roupa, ela pode sem esforço economizar muitos movimentos faciais: para rir, basta piscar os olhos, para abrir os olhos, basta alongar o queixo.

Sim, envelhecer tem suas desvantagens, mas ninguém negará que, entre ficar velho e morrer jovem, a primeira opção ainda é a melhor, por maiores que sejam as dores nas costas. Assim sendo, não vale a pena acrescentar ao inexorável passar do tempo preocupações sobre o inexorável passar do tempo. Quanto às plásticas a que as mulheres recorrem para permanecerem bonitas, estou com Vinícius de Moraes: a beleza é fundamental. E a beleza feminina é a primeira entre todas, a que mais acrescenta encantos à paisagem. Quem, estando na praia, vê uma mulher bonita passar e presta atenção ao mar, ou, estando num jardim, repara que há flores ao redor?

Não sou eu, portanto, que vou criticar as mulheres se elas colecionam cremes e perfumes, vestidos e sapatos, ou mesmo se elas fazem uma discreta e secreta visita a um dos muitos pitanguys que a medicina moderna ponha à disposição delas. O problema é que algumas exageram e, quanto mais levantam o nariz ou encurtam a bochecha, piores ficam. Nem sempre toques a mais produzem rostos amenos. O bisturi do tempo é incessante, e vai traçando linha e abrindo sulcos, mesmo nos corpos mais perfeitos. Vejam Brigite Bardot, atriz que nos seus tempos de beleza enlouquecia os homens de desejo e as mulheres de inveja. Tão linda era, e agora poderia facilmente estrelar um filme de horror sem precisar de maquiagem. Sim, é bom e justo tentarmos evitar as marcas do tempo, mas sabendo que, 

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Leituras e releituras

quarta-feira, 01 de abril de 2020

A ira, o único pecado que, segundo o narrador, Deus se permite cometer

O grande poeta João Cabral de Mello Neto disse que estava velho demais para se arriscar com leituras novas, que poderiam não valer a pena, e que por isso não lia mais, só relia. Eu ainda não abri mão de leituras novas, mas sempre tive o hábito de revisitar livros que me ficaram na memória e na emoção. E agora, que um vírus, essa porcaria tão pequena que nem se pode enxergar, está nos assustando e nos obrigando a ficar em casa, tenho dedicado ainda mais tempo à releitura.

A ira, o único pecado que, segundo o narrador, Deus se permite cometer

O grande poeta João Cabral de Mello Neto disse que estava velho demais para se arriscar com leituras novas, que poderiam não valer a pena, e que por isso não lia mais, só relia. Eu ainda não abri mão de leituras novas, mas sempre tive o hábito de revisitar livros que me ficaram na memória e na emoção. E agora, que um vírus, essa porcaria tão pequena que nem se pode enxergar, está nos assustando e nos obrigando a ficar em casa, tenho dedicado ainda mais tempo à releitura.

De Machado de Assis, reli a obra-prima ”Quincas Borba”, prima de outros personagens de primeira, principalmente de seus primos Dom Casmurro e Brás Cubas. Na trama, o modesto e ingênuo professor Rubião fica milionário, ao se tornar herdeiro de Quincas Borba. Não convém dizer mais do que isso, talvez apenas acrescentar que Rubião vai conquistar a (falsa) amizade do casal Palha e apaixonar-se por Sofia, esposa do (falso) amigo. Amor de enlouquecer, como se verá ao longo do desenrolar dos acontecimentos. Não sendo possível nem conveniente contar aqui a história toda, transcrevo a única piada explícita desse livro cheio de humor tão amargo e irônico.

“Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona — um triste molambo de mulher, — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.

“ —  É minha, meu senhor; isto é tudo que eu possuía neste mundo.

“ — Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?”

Reli também “Xadrez, truco e outras guerras”, de José Roberto Torero. Narrativa que, com humor sutil e corrosivo, revela o quanto a ambição e vaidade dos poderosos podem custar caro, a cara e a vida dos humildes, que são esses que vão para a guerra, morrer no lugar dos que têm poder. Mais ou menos inspirado na Guerra do Paraguai, o livro trata da ira, o único pecado que, segundo o narrador, Deus se permite cometer.

Ambição, violência, amor e morte se misturam desde o palácio do rei até os campos de batalha, onde soldados dos dois lados se atacam irados, sem saber por que morrem e sem saber por que matam. Só como aperitivo, aí vão alguns trechos colhidos ao acaso durante a leitura:

“A vitória tem muitas mães, mas a derrota é sempre órfã”.

— Coronel, a ira é para o soldado o que o capim é para o jumento.

— Devo-lhe a vida./ — Então não me deves nada.

— Tens a língua afiada demais. / — Sempre é bom, se nos falta a faca.

— E quem será o novo inimigo?/ — O país do Leste./ — É um país pequeno e fraco./ — Eu sei. Por isso vou atacá-lo”.

— Se nos contentarmos em sermos como somos, nunca seremos o que poderíamos ser.

Agora tenho nas mãos “As coisas boas da vida”, de Rubem Braga, o “inimitável sabiá da crônica”, como o chamou Paulo Mendes Campos. Basta esse apelido para se perceber o cronista inigualável que Rubem Braga foi. Do livro, limito-me a transcrever esse trechinho em que ele lamenta o estado a que ficou reduzido o riacho que, quando menino, ele via passar ao lado de sua casa: “Não, esta crônica não pretende salvar o Brasil. Vem apenas dar um testemunho, perante a História, a Geografia e a Nação de uma agonia humilde: um córrego está morrendo. E ele foi o mais querido, o mais alegre, o mais terno amigo de minha infância”.

Bem, creio que os leitores, inteligentes como são, perceberam que, por falta de assunto, vali-me de autores que andei relendo nesses dias de reclusão forçada. Posso não ter sido muito criativo, mas o leitor não tem do que se queixar, porque, ao menos dessa vez, dei-lhe a oportunidade de ler textos de qualidade nesta coluna.

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Em off

quarta-feira, 18 de março de 2020

Vamos nos consolando com a versão nacional do american way of life

Vamos nos consolando com a versão nacional do american way of life

Muitos brasileiros (a maioria, talvez) gostariam mesmo era de ser americanos e falar inglês. As lojas, nas promoções, poderiam colocar nas vitrines “Menos 50%”, ou “50% fora”, mas isso nos pareceria de uma extrema vulgaridade, se comparado com o elegantíssimo “Off”. Veja a diferença de nível entre um bar que ostente o glorioso nome de Night Star, e outro pobremente chamado Estrela da Noite. São dois pés-sujos, mas uma placa em inglês eleva qualquer estabelecimento a outro nível, a “otro patamá”, como agora se diz do time do Flamengo.

Pena que não imitemos os americanos também na mania que os ricos de lá têm de doar dinheiro, sobretudo às instituições científicas e de ensino.  Agora mesmo um deles, que ganha anualmente quatro milhões e quinhentos mil... e você dirá que quatro milhões e quinhentos mil reais é muito dinheiro. Pois não é de reais que estamos falando, e sim de dólares. Esse empresário estava conversando com uma jovem funcionária de sua empresa e ela confessou o sonho de comprar uma casa, mas tinha dificuldade até mesmo para pagar o aluguel mensal de US$ 200, pois ganhava apenas US$ 40.000 por ano. Como eu sei que você é pior de conta do que eu, vou dar uma ajuda: o patrão faturava mais de 20 milhões de reais por ano — só de salários. A empregada recebia, convertido em dinheiro de pobre, a merreca anual de R$ 180.000,00.

O tal milionário teve então uma ideia que bem podia ser imitada pelos ricaços brasileiros. Incomodado com os quilômetros de distância entre seus ganhos e o da moça, decidiu encurtar a desigualdade, cortando um milhão de dólares do próprio salário e em seguida multiplicando o contracheque de seus empregados. Todos passaram a receber pelo menos 70 mil dólares por ano (cerca de 315 mil reais).

Cinco anos após a implantação do novo mínimo, ele garante que sua empresa só prosperou e que até o número de bebês entre seus empregados aumentou. E a razão provável é que, ganhando bem, os casais podiam ir para a cama sem outras preocupações e a consequência, já sabemos: mais filhos. Podendo criar a ninhada sem apertos, viviam mais felizes; vivendo mais felizes, trabalhavam melhor e produziam mais.

Agora você imagine se pegasse entre nós a mania de imitar o tal mister. Imagine se os figurões da República e os demais milionários que pairam soberanos sobre a nossa pobreza geral resolvessem diminuir um pouquinho do que ganham e doar a sobra. Dava para melhorar bem a vida de seu Armelindo, que mora num barraco e num barranco, ambos prestes a desabar. Nem por isso o senador Coriolano atrasaria as prestações do jatinho que comprou (e se humilha pagando o jatinho à prestação para poder trocar o iate atual por outro mais moderno).

Mas, falando sinceramente, acho que nem vale a pena levar a ideia à frente. Uma coisa é imitar os gringos na hora de fazer liquidação nas lojas, outra coisa é tirar dinheiro do bolso para ver o trabalhador brasileiro engordando seus vencimentos, que na verdade nem são vencimentos, são derrotas mensais. 

Mas, enquanto não podemos todos morar em Nova York e fazer compras nas mesmas lojas que Angelina Jolie, vamos nos consolando com a versão nacional do american way of life, que consiste em imitar nossos “irmãos” do norte e tanto quanto possível usar as palavras que eles usam. Certa vez um político brasileiro disse que “tudo que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Talvez seja bom para aqueles brasileiros que têm tanto dinheiro que os bancos nacionais não dão conta de guardar e alguns milhões precisam ser mandados para os paraísos fiscais, de preferência sem que ninguém saiba.

Segundo Ariano Suassuna, Cervantes teria dito que o português é a língua mais bonita e sonora do mundo. Bem, pode ser que o tal de Cervantes fosse um analfabeto, desses que vivem dizendo besteiras quixotescas, ou maluco, como aquele patrão quixotesco, que resolveu dar dinheiro aos empregados!

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Problemas e soluções japonesas

quarta-feira, 04 de março de 2020

Não é à toa que eles têm aqueles olhinhos fechados de quem está sempre olhando além das aparências

Não é à toa que eles têm aqueles olhinhos fechados de quem está sempre olhando além das aparências

Se você é cronista e está sem assunto, volte-se para o Japão, cuja cultura é tão diferente da nossa que frequentemente nos surpreende. Em geral, para nos deixar humilhados com a superioridade deles, que não falam alto em público, caminham sobre calçadas que brilham de tão limpas e constroem um hospital em dez dias. O mais espantoso de tudo é que falam o idioma japonês desde criança, coisa que marmanjo brasileiro nem se atreve a tentar e ainda acha que gueixa é um tipo de fruta, haicai é uma luta marcial e samurai é nome de um poeta.

Eu já contei para vocês a história das velhinhas viúvas e solitárias que roubavam descarada e repetidamente nas lojas, até que a justiça, cansada de repreendê-las, manda prendê-las. Era tudo que elas queriam. Na prisão elas têm boa alimentação, um quarto confortável, atendimento médico permanente e muita companhia, que era o que mais lhes faltava lá fora. Difícil é convencer as velhinhas que a pena delas já terminou e elas têm que sair. Liberdade é muito bom, mas não se compara a uma prisão cinco estrelas.

Mas nisso não precisamos invejar os nipônicos, que nossas cadeias também são um luxo, contanto que o condenado seja rico, famoso, ou poderoso. Se for as três coisas juntas, aí então é que estar preso é um repouso glorioso e uma glória repousante. Agora mesmo está circulando nas redes sociais o vídeo de um ex-governador fluminense que, condenado por corrupção, ficou uns mesezinhos na cadeia e logo mereceu desfrutar do regime semiaberto. Ou seja, trabalhar de dia e voltar para a cela à noite. Pois no vídeo, Sua Ex-Excelência está curtindo um belo churrasco com os amigos em plena luz do dia. Bem, talvez ele seja churrasqueiro e estivesse trabalhando.

Também já lhes contei que, nos tempos idos, quando um cidadão japonês fazia cem anos, recebia do governo uma taça de prata. Mas cresceu tanto o número de centenários, tanto são os japoneses e japonesas que insistem em continuar respirando depois dos cem, que o governo reduziu o brinde a uma miniatura. Sem essa providência, a mania nipônica de nunca morrer acabaria levando a economia do país à falência, tantas eram as taças a serem distribuídas.

Pois bem, foi justamente o envelhecimento da população da Terra do Sol Nascente que me chamou a atenção. Ou, mais propriamente, os planos do governo para atenuar essa situação. Com um terço da população em idade avançada, a perspectiva é que dentro de poucos anos o número de idosos seja tão grande que não haverá bastante gente em condições de tocar a economia do país e, dentre outros desafios, sustentar os velhinhos. A permanecerem os japoneses tão ineficientes no campo reprodutivo (logo eles, que são tanto eficientes no campo produtivo), o Japão continuará perdendo nada menos que um milhão de habitantes por ano. Verdade que japonês vive muito, mas também morre, ainda que seja depois dos cem.

Pois aí é que entra a criatividade japonesa. Não é à toa que eles têm aqueles olhinhos fechados de quem está sempre olhando além das aparências. A solução, meus amigos, os brasileiros conhecem bem. É, dito de uma maneira pouco poética, fazer filhos. As autoridades daquele país promovem excursões para moças e rapazes viajarem juntos, criaram o Centro de Suporte ao Casamento e um aplicativo na internet que significa algo como “procura-se um parceiro”. Enfim, o governo quer que os jovens se casem e se multipliquem, e para isso está fazendo a sua parte. O resto compete aos jovens, que precisam parar de estudar e trabalhar até altas horas da noite e ir para o quarto cumprir o dever patriótico de rejuvenescer a população do país.

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Amor de carnaval

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Clotilde,

 Aqui quem lhe manda estas mal traçadas linhas é a tua irmã Finoca. Estou te escrevendo para você sossegar papai e mamãe, acho que eles ficaram uma fera porque eu saí de casa no sábado de carnaval com a nossa tia Josefa e até hoje não voltei. Coitada da tia, já velhinha, e deixei ela no meio do povo e sumi, nem sei se a velhota conseguiu achar o caminho de casa de novo.

Clotilde,

 Aqui quem lhe manda estas mal traçadas linhas é a tua irmã Finoca. Estou te escrevendo para você sossegar papai e mamãe, acho que eles ficaram uma fera porque eu saí de casa no sábado de carnaval com a nossa tia Josefa e até hoje não voltei. Coitada da tia, já velhinha, e deixei ela no meio do povo e sumi, nem sei se a velhota conseguiu achar o caminho de casa de novo.

Eu sei que você vai me entender, Clotilde. Um dia você também saiu de casa pra comprar pão e voltou dez meses depois, trazendo um embrulho nos braços. A mãe chorou, o pai gritou. Mas o embrulho tinha um menininho e o menininho levava o nome do avô e já vinha com a camisa do Flamengo, que é a paixão do nosso velho, e você acabou perdoada. É verdade que eles queriam saber quem era o pai da criança e você nunca que chegava à conclusão, uma hora era do presidente do Bloco Carnavalesco Tamos Aí, outra hora era do Tonico Quitandeiro e depois podia ser que fosse do teu ex-namorado Alberico. Se você não põe na menina o nome da avó e a camisa da Vilage do Samba, escola que ela adora tanto, nem sei se te safavas dessa segunda trapalhada.

O que me aconteceu, só quem passou por isso sabe o que é. Eu ali calmamente, donzelamente, vendo o Bloco dos Bichos, sem pensar em nenhuma maldade, de repente veio o boi e começou a fazer umas gracinhas pra mim. No começo eu até dei o desprezo, mas o danado era tão simpático, me disse umas coisas tão engraçadas bem pertinho do ouvido, me tremi toda! Nunca tinha visto um boi tão jeitoso! Quando dei por mim, ia caminhando com as rédeas na mão, subindo o morro, já de madrugada. Eu ia voltar, nem ia até o fim da viagem, te juro. Mas você sabe como o boi anda devagar, ainda mais esse, que é cheio de histórias. Depois, boi tem sede, paramos pra tomar umas cachaças; boi sente fome e ruminamos um pastel aqui, um quibe ali. Até parar atrás de uma árvore ele parou, que até boi de Carnaval tem dessas necessidades.

Pois é, mana, você já entendeu: fui na conversa do boi. Quando acordei, já era de manhã e por isso e por outros motivos que você sabe, não pude voltar para casa. Me lembro que a gente vinha subindo o morro, Vitalino (é esse o nome do boi) deixou de lado o Carnaval, atacou de Roberto Carlos pra cima de mim, até em língua estrangeira cantou. Tinha tanta estrela no céu, maninha! Pelo menos eu andei vendo estrelas. Há quem diga que não, que até choveu naquela noite. Sei mesmo é que acordei no barraco, a carcaça do boi de um lado, o dito cujo do outro, dormindo feito boi na sombra, o sol se rindo lá no céu.

Papai e mamãe também não foi assim, Clotilde? A tia Josefa me contou uma vez: foi depois de um ensaio. Papai era sambista da gema, de sair em comissão de frente. Pois, olha, acho até que você já sabe, dizem que mamãe enrabichou por ele que foi uma coisa, virou até letra de música que ele fez: “Meu peito é chão de avenida/ Onde teus encantos desfilam/ campeã no carnaval de minha vida”. Não é lindo? Tia Josefa, num dia de raiva, me atirou na cara: “Tu não é gente, ô praga, tu é o samba que passou da conta, o ensaio que não parou a tempo”.

Pode dizer pra eles, Clotilde: assim que passar a lua de mel eu apareço, sou até capaz de ficar, porque Vitalino anda desempregado. A gente tem vivido com o dinheiro do bloco, nem sei na hora de prestar contas como vai ser. Vitalino ri e diz que no Bloco dos Bichos também dá zebra. Ele é pescador, mas Friburgo não tem onde se pescar, aí ele fica desocupado, esperando as autoridades tomarem uma atitude, que também não é certo uma cidade como essa, que tem até teleférico, não possuir um só rio que dê peixe, um pescador não podendo ter seu sustento garantido. É o que ele tem me explicado com toda a paciência: não trabalha por falta de condições ambientais, ecológicas e outras palavras difíceis que ele sabe. Mas vagabundo não é, tanto que sempre foi pescador, num lugar onde nunca houve o que pescar. É ou não é uma barra?

Não tendo o que fazer, Vitalino fica em casa, imagine fazendo o quê! Diz que precisa de um bezerrinho pra sair com ele ano que vem, vê só, Clotilde! Eu começo rindo, mas dali a pouco a maluquice vira uma coisa tão certa e justa que eu acabo concordando em trabalhar para o aumento do Bloco dos Bichos.

Clotilde, irmãzinha querida, vou terminar por aqui porque já ouço o meu boi que vem chegando, na ponta do assobio um samba cheio de alegria e vontade de amar. Ai, Clotilde, não sei o que você vai pensar de mim, mas sou obrigada a confessar: o mugido desse boi me avacalha.

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