Presente de Natal

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Eu estava num quiosque em Copacabana, tomando uma caipirinha atrás da outra, esperando Juliana e pressentindo que Juliana não viria. Tinha chovido durante o dia, a tarde estava cinzenta, o mar vinha que parecia querer engolir a cidade, mas de repente mudava de ideia e estancava na beira da praia. Eu fazia força para não pensar em nada, mas a Ju também era uma onda que ia e voltava sem cessar.

Foi aí que dois meninos passaram na frente do quiosque, chutando uma bola já meio gasta de tanto levar pontapé. Fiquei me perguntado onde, naquela tarde feiosa, eles iriam jogar, a areia ainda encharcada não era uma opção. Mal eles saíram do meu campo de visão e eu já tinha me esquecido de como eles eram, se eram brancos ou negros, se vestiam camisa de algum time de futebol ou uniforme escolar. Somente a bola ficou, quicando na minha memória.

... O mais importante era a bola. Na ruazinha obscura em que a gente morava, um menino tinha bicicleta — velha, mas tinha —. E o Gutemberg (a mãe dele brigava se a gente chamava ele de Guto), o Gutemberg até estudava em escola particular. Nada disso me doía. Mas quase todos tinham bola de couro, presente de Natais passados. E a minha era uma porcaria de borracha, a única vez que eu levei ela pra pelada foi a maior vaia, voltei pra casa chorando.

Era dezembro de novo. Eu não pensava em bicicleta, ou em passeio ao Rio de Janeiro. Gutemberg já tinha ido e dizia ser muito maior e mais bonita do que nossa cidade, com prédios que raspavam nas nuvens. Eu queria era uma bola de couro. Uma vez sonhei que estava entrando no campinho de terra, a bola apertada embaixo do braço, brilhando que nem que fosse de ouro.

Mamãe quase não saía mais da cama, vovó tinha vindo de Campos tomar conta da casa e atazanar a minha vida. Mal eu botava o pé na rua, e ela já estava na janela gritando: “Entra pra dentro menino!” Mas foi bom, porque papai não precisava mais pagar empregada. Além disso, eu vi ele falando com mamãe que as coisas estavam melhorando na oficina.

Os dois meninos passaram de volta. Reparei que estavam com camisa do Flamengo. Parece que tinham desistido de bater bola e iam fazer qualquer outra coisa enquanto a noite não chegava. Eu é que não desistia. Naquele Natal, vovó ajudando em casa, a oficina com mais serviço, eu podia enfim pedir uma bola de couro. Na vida toda, foi o único bilhete que escrevi pro meu pai.  Botei num envelope e enfiei no bolso do macacão dele. Não tive resposta, mas tive certeza. No dia 25 ia sair de casa bem cedo, chutando uma bola de couro novinha. A rua inteira ia ficar parada, me admirando dar chutinhos pra lá e pra cá, driblando a mim mesmo.

Vinte e quatro chegou, vovó fez rabanada e doce de abóbora. De noite papai saiu todo contente, todo mundo na casa parecia contente, até mamãe, que veio pra sala e ficou olhando a televisão velha que vovô tinha mandado lá de Campos.

Eu esperei até tarde. Mas depois pensei que era melhor dormir, para aumentar a emoção do presente quando acordasse. Levantei antes de todo mundo, corri para a sala e vi a sacola com meu nome. O coração disparou... A mão tremia enquanto eu rasgava o papel ...

Tomei mais uma caipirinha e fui me arrastando em direção ao apartamento. Juliana não viria mesmo. Há muito tempo eu já devia ter aprendido a não sonhar com coisas que não posso ter.

 

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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