Notícias de Nova Friburgo e Região Serrana
Livros e piolhos
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
No Brasil de então, livro era coisa mais rara do que índio de gravata ou índia de sutiã
Não é que os portugueses fossem medrosos, mas encarar Napoleão não era brincadeira, o homem vinha arrasando tudo que encontrava pela frente. Assim, mui sabiamente, a família real se mandou para o Brasil, criando a situação, única na História, de um império cujo governo estava na colônia e não na metrópole. Até aí, nada que a gente não tenha aprendido no colégio, contanto que não tenha matado a aula nesse dia.
Mas às vezes a gente não pensa em algumas consequências prosaicas desse acontecimento histórico. Por exemplo: com a chegada de tantos visitantes, todos eles acostumados a uma boa e farta mesa, o frango tornou-se para o povão do Rio de Janeiro uma saudade, uma vaga lembrança, um cacarejo longínquo, pois da cabeça aos pés todos os galináceos voaram para os pratos da elite esfomeada que se instalou na cidade. Também as melhores residências foram tomadas para acomodar a comitiva real, que andava aí por perto de 15.000 almas lusitanas. Nas portas das casas a serem desocupadas, foram pintadas as letras PR, que pretendiam significar Príncipe Regente. No entanto os cariocas, já na época capazes de rir da própria desgraça, traduziam o PR pelo que ele mais verdadeiramente significava: Ponha-se na Rua.
Os navios chegaram cheios de novidades, dentre as quais uma boa população de piolhos. Tantos eram os bichinhos a bordo que as mulheres amarravam panos na cabeça, na vã tentativa de matá-los por sufocamento. E foi assim enfeitadas que aqui desembarcaram. As cariocas, vendo as visitantes com aqueles turbantes improvisados, julgaram que aquilo era a mais fina flor da elegância europeia e, tivessem ou não piolhos passeando pelo cocoruto, passaram a também usar os cabelos ocultos sob panos coloridos. Por aí se vê que vem de longe essa nossa mania de imitar tudo que é estrangeiro, na suposição de que, se é estrangeiro, é melhor.
Mas a maioria das consequências foi positiva e os historiadores concordam que só a partir de 1808 é que o Brasil começou a tomar cara de nação minimamente civilizada. Um dos grandes benefícios, dos maiores talvez, foi terem vindo no embrulho os milhares de livros da Real Biblioteca Portuguesa. No Brasil de então, livro era coisa mais rara do que índio de gravata ou índia de sutiã. Ora, o que mais do que o livro pode mudar um homem ou um povo? Como de maneira tão feliz sentenciou o escritor argentino Jorge Luís Borges: “De todos os instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro”. E ele explica por quê. “Tudo o mais é extensão do corpo: o arado é extensão da braço: o microscópio, dos olhos; o telefone, da voz”. Mas o livro, esse é “Extensão da memória e da imaginação”.
De vez em quando se diz que o livro vai morrer ou sobreviver apenas na forma digital. Mas o livro, desde a Bíblia de Guttenberg, é um objeto mágico, que recolhe, guarda, amplia e distribui tudo que a inteligência e a sensibilidade humanas podem criar. E, nos seus variados formatos, é prático, disponível, revisitável a qualquer hora e em qualquer lugar, sem depender de outra bateria que não seja a vontade do leitor. Sempre de braços abertos, ou melhor, de páginas abertas para quem busca sua companhia.
Se os portugueses não nos tiverem feito outro bem, ao menos esse não se lhes pode negar: trouxeram-nos os primeiros livros. E como disse o padre Antônio Vieira, “O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive”. Ou, lembrando Monteiro Lobato: “Um país se faz com homens e livros”.
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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