Casos de desaparecimento

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 01 de dezembro de 2021

Quando o rio fica em situação de excesso ou miséria hídrica, pra que serve?

Um dos órgãos encarregados de fiscalizar o governo teve a gentileza de nos informar que milhares de obras no Brasil estão desaparecidas. Pois é, não se trata de estarem inacabadas, como tantas de suas irmãs pelo país afora. Simplesmente desapareceram. Não sei como ser mais claro do que isso. “Desapareceram”, ou seja, “sumiram”, “ninguém sabe onde estão”. Estima-se que só de hospitais são mais de mil. Essa notícia, que tanta surpresa e até indignação causou entre muitos dos que dela tomaram conhecimento é, no entanto, perfeitamente explicável.

Porque, veja bem, o governo manda construir uma ponte. O que é uma ponte? Ensina o Michaellis que é “Obra construída (...) suspensa sobre um curso d´água”. A palavra ponte pode significar muitas outras coisas, desde pulo do goleiro de futebol até prótese dentária, todas elas sujeitas a desastres. A ponte do goleiro pode terminar com a cara na trave e a bola nas redes, a prótese dentária pode escapulir da boca e cair no colo da senhora sentada na primeira fila da plateia, justamente na hora em que o orador toma a palavra Aliás, isso me lembra... mas eu já contei essa história antes!

Bom, vou contar de novo, quem não leu que leia (ou não), quem leu que releia (ou não). O caso é que, quando criança, tive um vizinho que fumava muito e fumava especialmente sentado no vaso sanitário, enquanto fazia aquilo a que se destinam todos os vasos sanitários, seja no barraco da favela, seja no Palácio de Buckingham. Um dia, estava ele ali, soltando fumaça pelo nariz feito dragão de desenho animado, quando teve um ataque de tosse daqueles de estourar os pulmões do tabagista e os ouvidos da vizinhança.

Na ânsia de puxar algum arzinho para os pulmões, o homem deixou que a prótese voasse para dentro do vaso e lá ficasse nadando na pior companhia possível. Quando recuperado da tosse, viu-se o nosso anti-herói no dilema de pescar ou não seus belos dentes artificiais e voltar a usá-los, ou dar-lhes adeus para sempre. Enquanto pensava, deu a descarga, à qual a prótese sobreviveu valentemente. Bem diz a antiga marchinha de Carnaval: “A água lava, lava, lava tudo. A água só não lava a língua dessa gente...” Assim pensando, e pensando no tempo e no dinheiro necessários para recriar aquela valiosa peça, prudentemente pescou a prótese que, recuperada, lavada e escovada, voltou a iluminar o sorriso do seu dono.

Mas voltemos às obras desaparecidas. Não há o que estranhar. No caso da ponte... Bem sabemos como são inconfiáveis os rios brasileiros: vão e voltam, enchem e esvaziam, dependendo dos sol, das chuvas e da irresponsabilidade humana. Às vezes são tão férteis que até lembram a passagem bíblica em que Jesus ordena “Lançai de novo as redes”, e as redes voltaram rebentando de tão cheias, outras vezes viram lama, ou terra esturricada. Pois quando o rio fica em situação de excesso ou miséria hídrica, pra que serve? E pra que serveria uma ponte sobre ele? Aí a ponte desaparece, sem a menor consideração pelo dinheirão gasto para que ela fosse construída. Como são milhares os inconstantes rios nacionais, muitas são as pontes que com eles secam, ou por eles são levadas na enxurrada. Ou seja: desaparecem.

O que acontece com os rios nacionais com outras obras nacionais acontece. Estradas, por exemplo. As estradas são danadas pra desaparecer. O governo diz que abriu uma delas, asfaltou e inaugurou. O caminhoneiro chega lá, cadê a estrada? você viu? Nem ele, que só encontrou lama e buraco. Contudo, o que muito nos consola é que o citado órgão fiscalizatório explicou que não é bem assim. As obras existem, o que sumiu, perdidos nos desvãos da burocracia, foram os papeis que as tornariam visíveis para a fiscalização, pois no Brasil mais vale o papel do que a realidade.

Tomemos por exemplo o caso ocorrido numa cidade mineira. Um vereador morreu em plena sessão e na sessão seguinte o suplente se apresentou para tomar posse. Foi impedido pelo presidente da casa com o argumento de que ainda não tinha recebido o atestado de óbito.

— Mas o homem morreu na sua frente, Senhor Presidente!

— Não interessa. Sem o devido papel, nada feito. Volte Vossa Excelência na próxima semana e tomará posse. Se o atestado já tiver chegado!

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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