A operária do crime

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 04 de maio de 2022

Bem tranquilos estavam todos da casa, quando a polícia bateu à porta

O jornal garante que a velhinha tem 89 anos, é bisavó, e está em plena forma. Condenada a 32 anos de prisão, não se deu por achada, não deixou que a polícia a achasse e por muitos anos continuou trabalhando no que melhor sabia fazer: roubos e furtos, que são sua especialidade desde jovem. Não que ela fuja de tarefas mais pesadas, se a situação assim o exigir. Aos 80 anos namorava um ex-PM, mas tendo o bravo militar cometido a imprudência de juntar algum dinheiro, ela resolveu se ressarcir do tempo perdido com aquele romance e rompeu o relacionamento da forma mais radical possível: matou o desafortunado companheiro (desafortunado nos dois sentidos: ficou sem a fortuna e sem a vida). Nessa empreitada, no entanto, precisou recorrer à ajuda do filho. Este, menos competente do que a mãe, foi parar na cadeia, enquanto ela saiu por aí batendo asas e carteiras, para grande desassossego da população.

Mas quem desconfia de uma velhinha que se chama Socorro, tem os cabelos brancos e aquele doce olhar que é a maior doçura de toda vovozinha, até mesmo a de Chapeuzinho Vermelho? De nada desconfiou a família que a empregou como cuidadora, nada menos do que cuidadora! Bem tranquilos estavam todos da casa, quando a polícia bateu à porta, não por causa daquela veneranda senhora, que, apesar da idade, ainda se esfalfava amparando quem mais do que ela precisava de ajuda para ir vivendo. É que, por acaso, mero acaso, os roubos na região de repente haviam aumentado exponencialmente.

O azar da ilustre dama foi, portanto, ter arrumado um trabalho honesto, ainda que com desonestas intenções. Tinha naquele lar um pouso certo e seguro, uma base de operações a partir da qual podia exercer sua atividade laboral nos prédios circunvizinhos, sem as amolações e contratempos comuns a outros trabalhadores que moram em bairros pobres, desses que a polícia visita com regularidade. Só foi descoberta porque os investigadores, ao entrarem no apartamento para as perguntas de praxe, levaram o maior susto: “A senhora por aqui!”. Estava esclarecida a onda de roubos que obrigara a polícia a elaborar as mais variadas explicações, quando a explicação era tão simples e ao mesmo tempo tão inacreditável. A família empregadora não desconfiava de nada e estava bem satisfeita com o seu trabalho. Mas, por via das dúvidas, foi conferir as joias da casa. Não faltava um só botão. A empregada cumprira fielmente o que prometera ao ser contratada: não mexer em nada que não lhe pertencesse.

Ainda agora o STF está analisando a tal “revisão da vida toda”. Trata-se de saber se a aposentadoria do trabalhador brasileiro deve ser calculada pelo que ele recebia a partir de 1994, ano do Plano Real, ou se desde que ele começou a contribuir para o INSS, caso tenha sido antes daquela data. Na avançada idade em que se encontra, e estando em atividade a tanto tempo, sem nunca ter tirado férias, a dedicada operária do crime certamente tem direito a um salário a altura de sua longa dedicação à profissão que abraçou. Alguém dirá que ela não contribuía com a Previdência, muito pelo contrário. É verdade, mas não será a única dentre os nossos compatriotas a viver às custas da nação sem ter contribuído para a sua riqueza.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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