Histórias dos outros

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 11 de julho de 2023

“Pior do que isso eu não sei fazer!”

Uma é a do escritor Otto Lara Rezende. Estava ele datilografando sua matéria para o jornal, quando um contínuo entrou na sala. Ao ver que Otto não estava copiando, mas tirando as palavras da própria cabeça, o rapaz exclamou admirado: “O senhor tem redação própria?!” Tanto Otto era capaz de redação própria que entre seus admiradores estava Nélson Rodrigues, que até o transformava em título ou personagem de suas obras, como em “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária”. Às vezes Otto ficava tão chateado com as “homenagens” que confessou ter vacilado entre o homicídio e a indiferença.  “Mas como o homicídio é punido pelo código penal, optei pela indiferença”, declarou. Apesar desses desentendimentos, foram amigos e mútuos admiradores até o fim da vida.

A outra é contada por Álvaro Ottoni de Menezes, autor de sucessos da literatura infantojuvenil, como “A árvore que fugiu do quintal”. Álvaro era o redator em algum órgão do governo, no qual trabalhava também Vicente, flamenguista doente e semianalfabeto por nascimento e formação, para quem, falar “a gente somos” era o fino do português. Pela cara com que Vicente chegava na repartição, era possível saber o resultado do jogo do Flamengo no dia anterior.

Após um domingo em que o rubro-negro goleou o adversário, assim que Vicente chegou com a bandeja de café, Álvaro, querendo fazer humor às custas do colega, perguntou: “E aí, Vicente, o pessoal gostaram do jogo?” Vicente fez a maior cara de espanto e retrucou: “Me admiro o senhor, um homem de estudo, que tem redação própria, que escreve documentos, falar o “o pessoal gostaram, professor!” Álvaro quase caiu da cadeira, ao ver a desastrosa consequência de sua brincadeira. Muito envergonhado, já ia pedir desculpas, quando Vicente acrescentou: “O pessoal não gostaram, professor. O pessoal adoraram!”

O terceiro caso atribui-se a Antônio Maria, cronista e compositor, autor entre outras belezas de “Manhã de Carnaval”. Encarregado de escrever uma notícia para o jornal, entregou seu texto, que foi recusado sobre o argumento de que era muito sofisticado para o leitor comum. Pediram-lhe que simplificasse a redação. Antônio Maria fez uma segunda tentativa, mais uma vez considerada muito difícil. Ele então voltou com uma terceira versão, jogou-a sobre a mesa e declarou: “Pior do que isso eu não sei fazer!”

Ter redação própria, eis uma raridade, porque não se trata apenas de não copiar, mas de evitar escrever o que já tenha sido escrito milhões de vezes, ainda que por outras palavras. Li certa vez a diferença entre texto com autor e sem leitor e, ao contrário, texto com leitor e sem autor.

O primeiro é aquele que, por sua originalidade, novidade e às vezes complexidade, exige do leitor algum esforço de compreensão e aí, preguiçosos que somos, preferimos não ler. Ou seja: saiu de uma cabeça pensante, mas pouca gente se dispõe a pensar para entendê-lo. O segundo, ao contrário, não passa de um apanhado de ideias que estão soltas no ar, que de alguma forma todo mundo já leu ou ouviu, e que o escritor alinhava sem gastar muita massa cinzenta, e que por isso mesmo pouco ou nenhum esforço mental exige para ser assimilado. Assim se explica o porquê de muitas obras de grande valor serem evitadas, e o sucesso de tanto romance medíocre, de tanta poesia de má qualidade, de tanta música vulgar.

Publicidade
TAGS:

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.