Micronarrativas

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 28 de março de 2023

Escrever pouco e, ainda assim, dizer algo

”Inutilia Truncat”, recomendavam os poetas árcades. Cortar o inútil é sempre um bom conselho, tanto na vida quanto na literatura. Esquecer aquela mágoa tão antiga, livrar-se das roupas há muito penduradas nos cabides, tirar do texto as palavras inutilmente penduradas nas frases. Como tão bem fazia Graciliano Ramos, como fez sobretudo em “Vidas Secas”. Bem sei que há obras, como as de Guimarães Rosa, que são oceanos de palavras, mas só quando se é Guimarães Rosa é que se pode navegar pelos mares e dicionários conhecidos e ainda inventar outros tantos. Nos demais casos, é uma grande qualidade ser econômico e mesmo avarento ao escrever (e não menos ao falar). Além do que, como ensinou Winston Churchill, “das palavras, a menor; das menores, a mais simples”.

Um exercício interessante para ir-se libertando do palavrório é dedicar-se à criação das chamadas micronarrativas: nanocontos, microcontos, minicontos. São contos, como o nome indica, mas geralmente limitados a 50, 150, 300 caracteres respectivamente, considerando-se como tal não apenas as letras, mas também a pontuação e os espaços, ou seja: qualquer toque no teclado. É um desafio sintetizar em poucas palavras uma ideia, uma emoção, um sentimento. A partir de um estímulo ocasional, contar uma história. Ou, na verdade, apenas lançar uma isca, convidando o leitor a usar a imaginação e a criatividade para mentalmente concluir o que no texto é sugestão e lacuna.

Ultimamente tenho feito esse desafio a mim mesmo. E hoje convido você a ser coautor/a dessas tentativas de escrever pouco e, ainda assim, dizer algo que mereça a atenção e a reflexão dos leitores. Eis aí alguns dos meus microcontos. Conto com a sua parceria para que eles, afinal, “digam” alguma coisa que valha o tempo de terem sido lidos.

CONTRATEMPO - Homem segurando a mão da mulher:

─ Mas o Flamengo atrapalha em quê?

─ O Alfredo não vai sair de casa hoje. Vai ficar vendo o jogo pela TV.

DESCUIDO - Contemplei admirado a madeira maciça da porta que meu amigo fechava. No hospital, lamentei gemendo não ter tirado a mão a tempo.

TREVAS - Emocionado, abraçou a filhinha e suavemente tocou em seu rosto. Todos diziam que ela era linda. Queria tanto não ser cego!

SINA - Desde criança tinha um medo horrível de morrer engasgado. Até o dia em que um caroço de azeitona pôs fim a todos os seus medos.

DESCOBERTA - Tinham sido namorados. Ao reencontrá-la dez anos depois, olhou o menino que estava com ela e compreendeu que era pai.

GATILHO - Ele sabia por quem os sinos dobram e que o sol também se levanta. Mas, apesar de ter dado adeus às armas, pegou a espingarda e a colocou sob o queixo.

VOO - A estrada era muito sinuosa. “Não corra tanto”, ela pediu. Mas ele não lhe deu ouvidos e na curva seguinte as palavras dela caíram no vazio.

SURPRESA - Voltou mais cedo, disposto surpreender a mulher e levá-la para o quarto. Quase enfartou ao constatar que os dois lugares da cama já estavam ocupados.

PÁ DE CAL - Devia ter feito as pazes com o pai, ia pensando enquanto Segurava a alça do caixão.

PÊNALTI - O Saci Pererê chutou a bola e fez o gol, mas levou o maior tombo.

ROMANCE - Era um homem bonito, apaixonado e ... solteiro. Tereza viveu feliz com ele, até o dia em que uma mulher com duas crianças bateu na porta da casa dela.

PRIMAVERA - Luisinho apaixonou-se pela prima Vera. O parentesco não era problema. O problema era ele ter oito anos, ela ter vinte e cinco e ser noiva do Marcão.

RIQUEZA - Gouveia era um sujeito que vivia para juntar dinheiro. Aos trinta, já possuía uma fortuna que dava para ele viver 200 anos. Morreu aos trinta e dois.

LOUCURA - Na família, só ele são. Pai, Getúlio Vargas; irmã, Princesa Isabel. Após visitá-los no hospício, saiu decidido a proclamar a Independência do Brasil.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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