Sem desperdício

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 27 de junho de 2023

Cada cômodo é um brechó enlouquecido

Outro dia li que a prefeitura do Rio recebe centenas de reclamações contra guardadores. A princípio pensei que fossem contra os chamados guardadores de carros, que não guardam nada, mas são assim chamados e acatados. Começaram conhecidos como flanelinhas, por causa do pedaço de pano que usavam para esfregar os vidros dos carros em troca de uma gorjeta, mais ou menos espontânea. Aos poucos foram se profissionalizando, e hoje melhor seria que os intitulássemos “os donos do pedaço”. Privatizaram as ruas, cada trecho tem seu titular que, com ares de quem comanda o tráfego e a cidade, indica onde o motorista pode passar ou parar. Mostra a guia pintada de amarelo e faz sinal para que o carro seja estacionado ali mesmo, com a explicação mais suscinta e definitiva possível: o polegar levantado, como quem diz: “Deixa comigo, aqui mando eu”.

Mas não era de guardadores de carros que a notícia falava. As reclamações ─ certamente de vizinhos ─ são contra pessoas que guardam em casa tudo quanto podem, todo tipo de velharia, porcaria e inutilidade. Já tem inclusive diaristas especializadas no que denominam “limpeza do bem”, ou coisa parecida. São experts em jogar lixo fora, às vezes enfrentando a cara amarrada, quando não as lágrimas da dona da casa. Parênteses para explicar que digo “donas da casa”, e não “donos”, porque os imóveis a serem desentupidos geralmente são capitaneados por mulheres que, como se sabe, desde Adão e Eva são mais afetivas e mais apegadas às coisas do lar.

Tem de tudo para todos os gostos. Cada cômodo é um brechó enlouquecido. Panelas sem cabo e sem tampa (e eventualmente sem fundo); pé esquerdo de chinelo sem o seu companheiro de andanças; cadeiras sem assento; livros com acentos usados em 1940; vidros de remédios vazios, uma boneca sem cabeça e outra tão suja que é quase impossível descobrir onde ficam os braços e onde ficam os pés. Sem falar na foto de Carlos Gardel, que ninguém sabe como foi parar ali.

Numa das casas visitadas a “limpadora do bem” encontrou dezenas de caixas de papelão, de todos os tamanhos e formatos. “Eu tive que almoçar no corredor, porque as caixas ocupavam as mesas, cadeiras e sofás. Até para usar o vaso sanitário era preciso antes tirar algumas caixas do caminho”.  A explicação da moradora, mutatis mutandis, foi a mesma de todos (bem, a tal esquesitice não é exclusividade feminina) os guardadores. Acham que em algum momento futuro vão necessitar daquilo que agora é tido como inútil. Uma delas confessou que diversas vezes enfiou tudo em sacos para pôr no lixo, mas depois ficou com medo de precisar de alguma coisa do que ia jogar fora.  Desfez o saco e de novo entulhou armários e gavetas, embaixo da cama e em cima do guarda-roupas, para alegria das baratas e desespero do marido e dos filhos.

A prefeitura carioca garante que oferece, além da remoção do entulho, assistência psicológica aos guardadores, para que, assim orientados, parem de guardar. Ainda se guardassem dinheiro! Mas, mesmo que tivessem dinheiro, onde achariam espaço em casa para guardá-lo?

É um distúrbio psicológico, sem dúvida. Mas também nós, que não guardamos panelas furadas, se não nos cuidarmos, aos poucos vamos estocando velhos ressentimentos, mágoas injustificadas, ideias pregadas na mente e despregadas da realidade, conceitos e preconceitos do tempo do onça, medos que vieram lá da infância e que nunca conseguimos jogar na lixeira do esquecimento. Felizmente existem faxineiras do bem inclusive para esses casos, e pode ser que uma delas esteja bem ao nosso lado. Diz o ditado que cabeça vazia é oficina do diabo. Pior ainda é a cabeça cheia de porcarias: aí mesmo é que o diabo deita e rola.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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