Questão de fé

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Se duvidar, cura também dor de cotovelo, corações partidos e versos de pé quebrado

Tem horas em que a gente, por mais boa vontade que tenha, se cansa dessa tal de espécie humana. Não raramente concluímos que, tirando nós mesmos, nossos parentes e alguns poucos amigos, a humanidade não passa de um punhado de pessoas imprestáveis, pra não dizer francamente desprezíveis. Verdade que a espécie humana está pouco se lixando para a nossa opinião, mas isso não nos impede da falar mal dela (como se dela não fizéssemos parte).

Apesar disso, de vez em quando constatamos que ainda há neste mundo muitos corações generosos. Gente que nunca ouviu falar em nós e nem desconfia de nossa existência e que, no entanto, vive pensando em nós e por nossa causa morre de preocupação. Por exemplo: há poucos dias recebi uma mensagem de uma dessas almas caridosas (para as quais desde já as portas dos céus se encontram abertas) me oferecendo uma pulseira que cura todas as dores musculares. Ou, pelo menos, todas aquelas que me afligem e muitas outras das quais eu mesmo nem desconfiava que sofria.

São tais as maravilhas da dita pulseira que até pensei em voltar aos meus tempos de atleta, atividade que abandonei há tantos anos, para o bem do meu joelho e do futebol nacional. Pois fui daqueles jogadores que chutam a bola na direção que o nariz aponta, sendo que, no meu caso, frequentemente essa direção era a do gol da minha própria equipe. Em virtude do que, dei muita volta olímpica nos gramados, correndo tanto quanto possível à frente de nossos goalkeepers. Também isso contribuiu para que eu abandonasse a bola em favor das letras, atividade esta em que acabei me revelando tão genial quanto nos campos de futebol.

Contudo, houvesse nos meus tempos de lateral esquerdo a milagrosa pulseira de que ora vos falo, bem outra poderia ter sido a minha história. Porque essa grande contribuição da ciência brasileira aos atletas de todas as modalidades e nacionalidades significa o fim dos sofrimentos físicos que a prática esportiva costuma acarretar. E não só a prática esportiva, mas também as mais comezinhas das ações humanas, tais como subir escada ou correr da polícia. E se o prezado leitor também padece de algum desconforto na região situada entre o dedão do pé e a raiz do cabelo, deve logo se informar sobre o assunto, pois o uso desse maravilhoso invento da ciência brasileira elimina desde torcicolo a unha encravada. Se duvidar, cura também dor de cotovelo, corações partidos e versos de pé quebrado.

Não sejamos tão crédulos quanto aquele soldado americano que, ao voltar ao seu país depois de anos de ausência, encontrou em casa um recém-nascido. Tendo a esposa lhe garantido que engravidara pensando nele enquanto assistia a filmes pornográficos, o bravo guerreiro tanto acreditou que até transmitiu ao bebê o seu próprio nome, acrescido de Júnior. Mas também não sejamos desconfiados demais. A pulseira mágica pode não curar coisa nenhuma, não tendo outra vantagem além de botar dinheiro no bolso do espertalhão que a está vendendo. Mas quantos males e quantas dores não deixaram de existir em doentes que só tomaram placebo ou ouviram do médico de confiança: “Isso não é nada, rapaz!”

O que me lembra da velha história do sujeito que recebeu de um amigo chegado da Terra Santa uma lasca da madeira da Cruz de Cristo, lasca que, por sinal, o dito amigo tinha arrancado naquele mesmo dia de uma árvore do quintal de sua casa. Pois o doente ficou rapidamente curado de várias moléstias, algumas das quais já vinham pesando em suas costas há longos anos. Esse é o episódio que explica e justifica o antigo ditado segundo o qual “mais cura a fé do que o pau da cruz”.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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