Os mascarados

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 02 de dezembro de 2020

É ela que permite que dois conhecidos que se desconhecem troquem palavras cordiais ao se encontrarem por acaso

Os mais moços talvez não conheçam a palavra nesse sentido, mas ela sobrevive nos dicionários, ainda que em estado vegetativo. Está lá no Michaelis: “Mascarado: Diz-se de ou indivíduo ou profissional muito convencido ou presunçoso”. De fato, quando antigamente se queria acusar alguém de vaidoso, pretensioso, metido a besta, podia-se dizer, por exemplo: "Bom jogador, mas muito mascarado", ou "Além de burro, é mascarado". Isso era no tempo da televisão à lenha, coisa muito antiga. Tempo em que bandido usava máscara, preferindo ser um cidadão anônimo e atuando sobretudo à noite. Atualmente eles querem mais é ser conhecidos e reconhecidos, não têm mais horário certo, atacam 24 horas por dia e de cara limpa, nem ligam para as câmeras que gravam suas ações, às vezes até dão adeusinho para elas.

Mas nem foram os bandidos que me lembraram do antigo uso do adjetivo mascarado. Para falar a verdade, foi um acontecimento honesto e banal. Estava eu caminhando quando uma senhora me cumprimentou com grande familiaridade. Não tinha dúvida: ali estava uma velha conhecida, conhecimento que lhe permitia, sem faltar com a boa educação, interromper o caminhante que ia absorto em seus pensamentos — graves ou insignificantes — para dois dedos de prosa matinal. Mais ou menos bem educado que sou, não deixei de levar a conversa adiante, a qual se encerrou com mútuas declarações de alegria pelo encontro.

Meu problema começou dois passos adiante: quem era aquela senhora tão atenciosa? Lembrei-me até de uns versinhos que ando repetindo há anos, sem saber se são meus ou se os copiei de alguém: "Vi meu amigo de longe, / ele também me reconheceu. / Quando nos aproximamos, / eu vi que não era ele, / ele viu que não era eu". Estivesse ela sem máscara, e provavelmente eu a teria identificado, ou pelo menos reduzido a variedade de tempos e espaços em que nos teríamos conhecido: no trabalho, na vizinhança, numa festa, num funeral? Mas assim, com metade do rosto escondido, era apenas um vulto, uma voz, um punhado de gestos. Nada suficiente para que eu lhe desse um nome, uma personalidade, enfim, uma identidade.

A pandemia do coronavírus, de tantas e tão trágicas consequências, tem, pelo menos para mim, essa gravidade adicional: dificulta a identificação das pessoas. Não que antes eu fosse capaz de reconhecer todo mundo com rapidez e precisão. Muitas e muitas vezes cumprimentei estranhos e em tantas outras passei por amigos como se nunca os tivesse visto (talvez por isso, quem sabe, alguém já tenha me chamado de mascarado). Mas agora o problema se complicou muito. Obrigados a andar somente com meia cara de fora para não contrairmos o vírus ou para não transmiti-los aos outros, ficamos todos meio irreconhecíveis.

Sim, a máscara é necessária e bem merece ser chamado de mascarado quem não a usa. Mas tem seus efeitos colaterais, alguns bons, outros ruins. De ruim tem isso de não sabermos a quem estamos cumprimentando ou quem está acenando para nós. Às vezes também oculta o rosto de uma moça bonita ou de uma criança alegre. Mas é ela que nos protege contra esse bichinho que tão cruelmente ataca a humanidade. E é ela que permite que dois conhecidos que se desconhecem troquem palavras cordiais ao se encontrarem por acaso, durante uma caminhada matinal.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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