Pandemias

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Essa mixórdia de lives, news e fakenews com que somos bombardeados diariamente

Estes tempos de pandemia são como uma árvore gigantesca em que o próprio exagero do seu tamanho às vezes nos impede de reparar nos muitos galhos que se prendem ao tronco. E, no entanto, esses galhos, se empilhados, formam outro mal, senão igual, ao menos parecido com o próprio mal de onde brotam.

Além de uma das maiores tragédias humanas de que se tem notícia, precisamos enfrentar a desinformação que governantes, cientistas, médicos, jornalistas e palpiteiros em geral nos proporcionam. Cada qual dando sua contribuição à nuvem de gafanhotos em que se transformaram as recomendações sobre o que devemos fazer ou o que não fazer para escapar do inimigo. O que ninguém nos ensina é como distinguir o que é fato, o que é boato, o que é pura e simples mistificação nesse amontoado de lives, news e fakenews com que somos bombardeados diariamente.

Limão com água mineral cura? Casca de abacate fortalece as defesas naturais do organismo? Quem manda: o presidente, o governador ou o prefeito? Dexametasona, cloroquina, hidroxicloroquina, palavrões que antes não ousaríamos falar diante das crianças são agora parte inevitável do noticiário. É só uma gripezinha que vai passar logo, ou é uma praga bíblica com que os céus vêm nos punir pelos nossos pecados? Tem gente recomendando ficar em casa para não espalhar o vírus, tem gente mandando bater rua para que o vírus ataque quem tem que atacar e depois, cansado de tanta trabalheira, nos deixe sossegados. Um religioso garante a cura a quem adquirir um miraculoso caroço de feijão que ele oferece a preço de ocasião. Laboratórios correm para criar o medicamento que encare esse monstro a um tempo tão enorme que assusta o planeta e tão pequeno que não podemos vê-lo. A vacina, essa vaca sagrada, pode ficar pronta no mês que vem ou dentro de dez anos.

Em meio a essa batalha global, uma outra, particular, desafia cada um de nós: aquela que o poeta chamou de "A dificílima dangerosíssima viagem/ De si a si mesmo". Ela nos obriga a sermos nossa mais inevitável e constante companhia, mas também a estarmos mais demorada e profundamente com aqueles que compartilham conosco o mesmo teto.  Resta a esperança de que esse confinamento leve o ser humano, para usar outra vez as palavras do poeta, a ir "Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas / A perene, insuspeitada alegria / De con-viver".

Viver, conviver, viver com, eis a questão. Não falta quem, diante desse desafio, fortaleça o companheirismo, o afeto, a divisão das preocupações, alegrias e tristezas. A palavra doce que dá outro sabor ao café da manhã, o gesto de carinho que antecede ao sono. Mas sabemos que outros tantos conseguem fazer doer ainda mais o que já é por si só tão doido e tão doído. A violência doméstica, as crianças maltratadas, as secretarias de saúde que mais parecem trabalhar em favor da doença, a roubalheira de sempre, desemprego e fome que se generalizam.

Diante da feiura desse momento, encontraremos consolo e conservaremos a esperança se continuarmos acreditando que a vida, apesar de tudo, "é bonita, é bonita e é bonita", como diz a canção de Gonzaguinha.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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