O armário e a nota de duzentos

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A mãe, que até então vinha se saindo bem, vacilou por alguns demoradíssimos segundos

Estou na fila, um pouco atrás deles. O menino não para: levanta um refrigerante que está no carrinho, puxa a blusa da mãe, pergunta se pode abrir o pacote de biscoito, pede para ir ao banheiro, tudo isso ao mesmo tempo. Quando há somente um freguês à sua frente, ela começa a abrir a carteira, não sem que o pixote tente puxar uma nota. “É aquela do cachorro?”, pergunta ele, com certeza se referindo à nota de duzentos reais, que ainda não foi vista ao vivo por ninguém, mas já há algum tempo é anunciada na TV como mais uma gloriosa obra do governo para alavancar a economia nacional.

Se bem que não é totalmente verdadeiro dizer que ninguém tenha visto a tal nota, que traz impressa o lobo guará, o qual veio inflacionar a fauna das moedas nacionais. Antecederam-no beija-flores, garças, araras, micos e garoupas. Ou seja, uma bicharada heterogênea, ao mesmo tempo monetária e zoológica. Mas o fato é que o lobo guará não é de todo inédito na mão dos brasileiros. Isso porque a criatividade do nosso povo mais uma vez falou mais alto e se antecipou ao governo. Mal a Casa da Moeda começou a imprimir a nota de duzentos, e a plebe apenas a conhecia pela propaganda oficial, e já os falsários trabalhavam para abastecer o mercado, fabricando dinheiro com a serenidade de quem imprime santinhos para distribuir nas igrejas.

Posta em circulação, a esmerada produção caseira não contou com a simpatia da polícia, que logo começou a recolher a grana e a perseguir seus criadores.  Foi uma verdadeira caçada ao pobre do lobo guará. Aqueles patriotas, que apenas desejavam auxiliar o governo na dura tarefa de colocar milhões de reais em circulação, não tiveram sua boa intenção compreendida e recolheram as impressoras, aguardando um momento mais oportuno para voltar à ativa. Talvez também tenham desanimado do meritoso trabalho que realizavam ao perceber que o povão preferia que o arisco lobo guará fosse substituído pelo seu primo pobre, o simpático vira-lata, o mais nacional de todos os cachorros, talvez o mais brasileiro dentre todos os nossos bichos.

Pois não é que a nova nota me desviou do que, de verdade, me chamou a atenção no diálogo do menino com a mãe? Ela, pacientemente, ia respondendo e contendo o filho, enquanto tirava as mercadorias do carrinho. Só mesmo mãe para fazer essas três coisas ao mesmo tempo! E o que mais me fez alongar as orelhas foi o anjinho ter perguntado, em voz bem alta, se era verdade que o tio fulano tinha saído do armário. Tem coisas que atrapalham até mesmo as mães mais experientes.

— Qual armário que ele tava, mãe? Aquele grandão do quarto, mãe? Deve ser, do jeito que titio é gordo! Ele tava fazendo o quê dentro do armário, mãe? Por que que ele saiu do armário, mãe? Aquele moço que anda com ele ajudou ele a sair do armário, mãe? Eles tavam brincando de quê, mãe? De esconde-esconde, mãe? Gente grande também brinca de esconde-esconde, mãe?

Eis que não apenas eu, mas também a funcionária do caixa e um freguês do outro lado tinham alongado as orelhas.  Todos queriam saber como a jovem mãe ia responder a tantas e tão embaraçosas perguntas. Porque, apesar de atualmente tanta gente estar saindo do armário, o assunto ainda é delicado, principalmente quando levantado por uma criança, na fila do supermercado, e tendo um tio como personagem central.

A mãe, que até então vinha se saindo bem, vacilou por alguns demoradíssimos segundos, enquanto o moleque olhava para cima e a puxava pela manga. Mas ela logo se recuperou e deu uma resposta bastante sensata e quase verdadeira.

— Seu tio estava consertando o armário. É isso aí, filho. Aí seu tio ficou preso lá dentro, entendeu? Aí o amigo dele foi ajudar e ele saiu do armário. Entendeu? Agora para de fazer pergunta e me ajuda a tirar as compras do carrinho!

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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