São dias estranhos. A Monte Líbano que estaria lotada - vazia. Cada cantinho do bom furdunço - idem. O Bolero sem o costumeiro formigueiro de gente, tal qual os bares de Olaria e Conselheiro. A festa de gente não se faz, porque gente não pode se ver, tocar, se reunir.
São dias estranhos. A Monte Líbano que estaria lotada - vazia. Cada cantinho do bom furdunço - idem. O Bolero sem o costumeiro formigueiro de gente, tal qual os bares de Olaria e Conselheiro. A festa de gente não se faz, porque gente não pode se ver, tocar, se reunir.
Uma conhecida morreu. Não foi Covid-19. Sei que o velório foi vazio. Não porque não era querida. Pelo contrário. Até a despedida a um ente querido foi limitada. Não se pode se aglomerar. O choro e a oração foram no silêncio de casa para amigos e até familiares. Ela entendeu. Ouvi de uma enfermeira que é muito triste morrer sozinho, como os tantos que ela assistiu. Um curado contou que a sensação é de afogamento, só não há rio ou mar. Apenas a solidão do lençol. Se afoga no ar da perplexidade. Outro camarada resumiu bem o que acontece: as pessoas não morrem, desaparecem!
Um casal de amigos ganhou um filho. Davi nasceu antes do que se previa. A orientação foi adiantar o parto, porque o futuro é muito incerto nas unidades hospitalares. Deu tudo certo. Ainda não o conheci, a não ser por fotos. O costumeiro xixi do bebê foi adiado para quando pudermos nos encontrar. Tios, avós, padrinhos não puderam testemunhar o milagre do nascimento. Há oito meses, quando, naturalmente, seriam nove, ninguém podia imaginar a falta de festa ainda que de regozijo ao ariano que se previa taurino. O pai médico não poderá curtir o pequeno em seus primeiros dias. Por estar exposto pela missão da cura, certa distância física para proteger os amores maiores: esposa e filho.
Querer encontrar Deus é pedir que os fiéis fiquem em casa. O resto é charlatanismo. Mas por mais que ouça atento o que espiritualistas proferem, meus pelos não arrepiam, meu coração não sangra como na energia da oração em comunhão. Certo de que eu e nem ninguém precisa de interventor para falar com Deus, o auxílio da orientação segue pertinente à fé. Mas fé maior é dar exemplo de amor ao próximo e protegê-los.
Aqui no congelador de casa tem uma peça de contrafilé. Comprei para um churrasco desses avulsos. Mas churrasco sem amigos, não é churrasco. Eu, por exemplo, não gosto de beber cerveja sozinho. Preciso do brinde, ter companhia é a razão da gelada. Entende? É também assim com o café. Tem café em casa, mas não é igual ao do fim de tarde no trabalho ou naquela lanchonete que tem pingado e que se joga conversa fora com o balconista, um estranho qualquer ou com o colega de trabalho. Sinto falta até dos estranhos. Qual seu nome? Oi, me chamo Wanderson.
Sábado estranho. Dias estranhos esses. Por mais que nas redes sociais exista o movimento de show ao vivo, não sei. Sinto falta da música, do violão arranhando bem próximo ao meu ouvido. Gosto de quando o músico escapa a mão e seus dedos tocam, sem querer, a madeira do violão. Traz sentido. O bafo, fazer dos meus olhos câmera para captar o detalhe que me vier. Sinto falta de ver gente, de cruzar olhares, de abraços, tocar mãos. Preguiça dessa preguiça de casa.
Ainda que seja invisível, minúsculo, nano, o que nos causa essa separação, sabemos seu efeito. Por dentro, a prece é não ter medo. O medo é contaminar o próximo, ferir alguém. Coragem para ficar no reservado da solidão coletiva que se torna até suave diante do perigo da dor de perder alguém. Logo, logo estaremos juntos de novo. Precisamos fazer nossa parte por todos e para voltarmos o quanto antes. Quanto mais se desobedece ao desconhecido, mais demorada será a volta.
O adeus não se dá, o bem-vindo também não. Tudo o que estamos acostumados a desprezar - o cotidiano - ganha importância, pela ausência, por faltar. Vai passar. Mas quando passar, como será? Vamos apenas celebrar o dia seguinte como se fosse uma final de Copa do Mundo? Finais de campeonato passam tão rápido quanto carnaval. Será que vamos viver a catarse de se ver e se tocar de novo por um, dois dias, uma semana e só? O mundo precisa mudar, nós precisamos mudar. Essa força imensa que é o amor, que até faz a gente respeitar o se isolar, esse amor incondicional, precisa se estender sem ser por obrigação ou urgência. Respeito a saudade que sinto para exatamente ter a chance de exterminá-la quando tudo isso acabar. Saudade assim é melhor do que a eterna. Mas eu também não quero acumular saudade e depois extravasar essa saudade em segundos. Eu me recuso a esquecer o que estamos passando. A inércia acabou. O planeta, esse pequeno belo planeta, está nos devolvendo humanidade e não podemos deixa-la escapar de novo. O convite é na verdade um chamado, um grito, uma convocação.
Eu sei. Sei que a ganância de alguns é covarde e insistente. Mas a solidariedade é sólida e persistente. Não precisemos mais desses impactos para nutrir empatia. Se as circunstâncias causam cicatrizes, que não sejam remendos na pele, mas memórias tatuadas na alma. Os seus efeitos estão aí e já alteraram o rumo da história. O que faremos disso?
Quando esses dias estranhos passarem e as ruas estiverem cheias de novo, que não seja euforia vazia.... consumo insano, brigas por nada, efemérides, superficialidade... Que a fragilidade de viver nos faça perceber a força do nosso querer bem ao próximo e ao lugar que adoramos compartilhar nossas existências. Que todo esse sentimento também não seja de culpa ou responsabilidade vil, mas de libertação do aguçar da nossa sensibilidade em cuidar melhor de si, dos nossos, dos outros e do planeta. Que consigamos nos despir do egoísmo e da arrogância e nos vistamos do amor incondicional que nos merecemos e dele iluminamos e nos iluminaremos...
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