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Diferentes e diferenciados
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
Eu tenho um amigo que se orgulha de ter recebido propina em Portugal
Você tem a vaidade de se considerar uma pessoa diferente? Pois fique sabendo que você está muito desatualizado. Atualmente nada ou ninguém é diferente. Para estar na moda é preciso ser, isto sim, “diferenciado”. Pelé foi um jogador muito diferenciado, angu à baiana é um prato diferenciado à beça. Roberto Carlos continua diferenciado, diferenciada é a cidade do Rio de Janeiro. Ser diferente é coisa pouca, não distingue nem valoriza ninguém: ser diferenciado é que tem valor.
Até recentemente, uma viagem podia ser adiada “por causa” do mau tempo, agora, porém, isso não acontece mais: adia-se uma viagem “por conta” do mau tempo. João e José se desentenderam por conta de uma música de Gilberto Gil, o Flamengo perdeu por conta de uma decisão errada do técnico. “Por conta de”, sempre cumpriu com modéstia e eficiência a função de indicar o que estava sob a responsabilidade de ou à custa de: A obra ficou por conta da prefeitura. O colégio dos filhos é por conta do pai. De uns tempos para cá, no entanto, passou a se meter no lugar de “por causa de”.
No futebol, desde que o homem primitivo aprendeu a se divertir chutando o crânio dos adversários abatidos nas batalhas, passar a bola (ou o crânio) para um companheiro era uma jogada conhecida como “passe”: Júnior deu um passe perfeito para o Zico. De uns tempos para cá, passou a ser denominada “assistência”. Tem jogador que não faz gol, mas dá assistências perfeitas e para isso ganha milhões. (Tão bom seria se, seguindo esse exemplo, também os ricos dessem assistência aos pobres; a Justiça, aos desvalidos; os adultos às crianças...).
Vivemos em meio a coisas mutáveis e provisórias. Já dizia Camões que “Todo o Mundo é composto de mudanças”. Por que não haveria de ser assim com as palavras? Às vezes elas sofrem tantos trambolhões ao vagar pelos séculos, passar de um continente para outro e rolar de boca em boca que acabam dizendo coisas opostas ao que diziam ao nascer. “Manco”, por exemplo, deriva da palavra latina para “mão”. E como é que Neymar, ao levar um chute na canela, sai de campo “mancando”? Sacudindo as mãos para o alto?
Eu tenho um amigo que se orgulha de ter recebido propina em Portugal. Corrupto, ele? Não! É que a palavra entre nós cheira à corrupção, mas lá na terra dos camões, dos pessoas e dos saramagos significa apenas “mensalidade escolar”. Ou seja, meu amigo era bolsista na faculdade, não pagava propina, ao contrário: recebia.
A verdade é que toda língua se transforma incessantemente e sem que percebamos. Não fosse assim, e estaríamos falando igualzinho aos marujos que aqui chegaram com Cabral em 1500. Ou escrevendo versos de amor como este: “No mundo no me sei parelha/ Mientres me for como me vay./Cá já moiro por vós – e ay”/ Mia senhor”, ou seja: “No mundo não conheço quem se compare/ A mim enquanto eu viver como vivo/ Pois eu morro por vós – aí!/ Minha senhora”. (Canção da Ribeirinha, de Paio Soares de Taveiró. 1189. Primeiro texto literário em língua portuguesa (galaico-português) de que se tem registro).
Essas coisas acontecem por conta da... Ops! Essas coisas acontecem por causa da infidelidade dos falantes. Porque também as palavras são vítimas da humana inconstância. Embora o dicionário as tente preservar, o povo usa e abusa delas, torce e distorce, abandona e troca uma por outra, como faz qualquer amante infiel. Sim, as palavras mudam, e tão sutilmente, e tão devagar, e tão tenazmente que nunca percebemos essa mudança. Mas nem por isso precisamos aderir apressados a todas as novidades. Resistamos, sejamos diferentes. Ou diferenciados, sei lá!
Robério Canto
Escrevivendo
No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.
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