Os noivos

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 01 de maio de 2024

O passado existe, e a literatura é capaz de torná-lo presente

O poeta João Cabral de Mello Neto disse que estava velho demais para ler, pois o livro podia não compensar o tempo gasto na leitura. Por isso, só relia, e assim tinha a certeza de não desperdiçar o tempo que ainda lhe restava. Comigo aconteceu que li muitas coisas prematuramente, isto é, quando minha capacidade de compreensão das obras era ainda menor do que hoje, e para falar a verdade, mesmo essa é bem pequena. Para remediar tamanha falha, tenho relido mais do que lido.

É comum dizer-se que, no mundo atual, até o passado é incerto. Ou que, quando muito, só existe como lembrança, na qual não se pode confiar. Até me recordo daquele político que, acusado de possuir uma fazenda de valor muito acima do que seus vencimentos permitiriam, negou ser o proprietário. Confrontado com os documentos que provavam a posse, declarou serenamente: “Ué, não é que tinha me esquecido!”

Seja lá como for, o passado existe. E a literatura, é a melhor maneira de visitá-lo, entendê-lo e aprender com ele. Mais uma vez acabo de constatar isso, relendo o romance “Os Noivos”. O autor, Alessandro Manzoni nasceu em 1785, na cidade italiana de Milão. Inicialmente tido como pouco inteligente, a partir dos 15 anos começou a revelar seu talento para as letras e veio a tornar-se um dos maiores nomes de literatura italiana.

“Os noivos” é a história de amor entre dois jovens humildes e o desejo de um homem poderoso pela moça. Tem personagens de uma grandeza moral admirável, e outros de comportamento violento e desprezível. Aos dramas pessoais, soma-se o drama de uma população faminta e desesperada, que invade as padarias gritando pão! pão! pão!  Não pretendo fazer resenha do livro, mas me deter em um de seus aspectos mais marcantes: o período da narrativa em que Milão é atingida por uma peste que diariamente mata centenas de pessoas. As mortes são tantas que surge uma nova categoria profissional, os “monatti”, encarregados de recolher os corpos nas casas e nas ruas.

Lendo essa passagem da obra de Manzoni, fiquei pensando em como tudo muda, mas o ser humano é sempre o mesmo, é sempre igual o drama humano. Pois, apesar de a peste ter sido uma cruel e avassaladora realidade, muitos negaram sua existência até o momento em que carroças conduzidas pelos monatti tornaram-se parte da paisagem. Não era possível manter os olhos fechados diante do amontoado de corpos nus a caminho do cemitério.

Também muitos de nós, em pleno século XXI, tal e qual tantos milaneses do século 18, só abrimos os olhos para a covid 19 quando os hospitais estavam abarrotados, e os sepultamentos às centenas nos obrigaram a reconhecer a epidemia. Sim, o passado existe e a literatura é capaz de torná-lo presente. Ela nos permite viver em tempos longínquos e, se quisermos, aprender com eles, para não repetirmos os mesmos erros.

Porque a sabedoria está em aprendermos com os erros passados e a burrice, em repeti-los.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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