Fazendo cera

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Sim, já fomos piores do que somos!

A Fifa decidiu que seja punido com um escanteio o time cujo goleiro retiver a bola por mais de oito segundos. A regra já existia, mas o tempo era menor e quase nunca aplicada. Enquanto o juiz botava a boca no trombone, ou melhor, o apito na boca, o goleiro já tinha se livrado da bola e ficava impune. Pode ser que agora essa prática antijogo seja eliminada ou ao menos reduzida. Em oito segundos até quem não entende de futebol é capaz de tomar a decisão de apontar para uma das quatro esquinas do gramado.

Mas o que me chamou a atenção nem foi essa oportuna providência da Fifa. Foi a expressão usada por quem redigiu a notícia: “fazer cera”. Eu pensava que ninguém mais no mundo falasse e menos ainda que escrevesse coisa tão antiga. Acho que no velho Egito, quando um escravo custava a levantar uma pedra da pirâmide, lá vinha o soldado dando chibatadas e gritando: Para de fazer cera! Ou seja, é dos tempos em que nem existia futebol. Se bem que bater bola chutando o crânio dos inimigos mortos em batalha é coisa do tempo dos faraós. Até porque na época a criançada não tinha muitos brinquedos e uma cabeça humana era perfeita para uma pelada, mesmo que ainda estivesse cabeluda. Sim, já fomos piores do que somos!

“Fazer cera” me fez lembrar palavras que antigamente tinham lugar de destaque na fala das pessoas e que caíram no esquecimento, mudaram de sentido ou que ainda são usadas quando um coroa de cabelo branco (ou pintado) abre a boca. Por exemplo, de uma pessoa atraente se dizia que era boa pinta, o tipo que onde chegasse botava pra quebrar. Um broto era uma garota bonita, se tivesse borogodó, aí mesmo é que ninguém resistia. Não sei como atualmente se elogia uma jovem bonita, há muito ando afastado desses galanteios. A verdade é que estou boiando nesse assunto. Ou, dizendo de outra forma: não saco patavinas dessas coisas do arco da velha. Bulhufas!

Enfim, tudo muda. As palavras, então, não se pode confiar nelas! Mal a gente se acostuma com o significado de uma e esse significado já significa outra coisa. Tomemos a palavra “manco”, que no uso geral significa coxo, ou seja, aquele que, como ensinam os dicionários, “caminha apoiando-se mais em uma das pernas”. Pois Cervantes, o grande gênio da literatura universal, era conhecido como “O Manco de Lepanto”, por ter perdido, durante uma batalha naval, uma das... pernas? Não! Uma das mãos. Aliás, só de olhar já dá para desconfiar que “manco” vem de “mão”. De como essa palavra caiu das mãos para os pés, eis aí uma tarefa para os etimologistas.

Outro dia encontrei um conhecido que há muito não via, e a primeira coisa que ele me disse foi “mas você não mudou nada!” A princípio, pensei que ele estava me confundindo com outra pessoa, naturalmente mais jovem. Depois pensei que estivesse sendo irônico, como se quisesse dizer: “Caramba, você está um caco!” Mas seu sorriso cordial me convenceu de que era apenas uma gentileza. Mas nem esse tipo de gentileza é totalmente isento de perigo. Imagine a reação de uma senhora que tenha feito plástica e ouça “você não mudou nada”, quando na verdade esperava ouvir: “A cada dia você está mais jovem e mais bonita!” Bem, aí o jeito é começar a fazer cera!

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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