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Coração em chamas

sábado, 29 de junho de 2024

Depois não me acuse de dormir sonhando. Entre seus braços, vou sonhar sorrindo. Por que é tão bom? Por que é estranho? Assustador, insano… Mas coerente. 

Te vi sentado na mesa, sob a luz do abajur. Indecente. Não por estar pelado, mas por estar nu. Com alma livre. Com o rosto sem maquiagem ou máscara. Com o coração à mostra em deliciosos mistérios. Você, ali, com seus defeitos, lágrimas e marcas exibidos sem pudor. Com seus costumes, rebeldias e manias manifestas. Expostas, sem determinar a obrigação de eu estar também exposto. Mas livremente me exponho. 

Depois não me acuse de dormir sonhando. Entre seus braços, vou sonhar sorrindo. Por que é tão bom? Por que é estranho? Assustador, insano… Mas coerente. 

Te vi sentado na mesa, sob a luz do abajur. Indecente. Não por estar pelado, mas por estar nu. Com alma livre. Com o rosto sem maquiagem ou máscara. Com o coração à mostra em deliciosos mistérios. Você, ali, com seus defeitos, lágrimas e marcas exibidos sem pudor. Com seus costumes, rebeldias e manias manifestas. Expostas, sem determinar a obrigação de eu estar também exposto. Mas livremente me exponho. 

E te levo para casa no corpo. Te sinto. Almejo mais do que os cinco minutos que me pede para ficar a mais. E os cinco viram dez, vinte minutos, cinco horas. Mais uma música, um vinil inteiro. Dos dois lados. A e B. Eu e você. 

Marina Lima canta que “Não Sei Dançar”. Eu não sei. Você sabe. Do seu modo. Fuma mais um cigarro. Faz malabarismo com o tabaco enrolado, que incendeia, invade, não incomoda. Ficam tão charmosos os seus vícios. Não sei dizer. 

Apenas beijo o tempo como se pudesse conter os minutos, esses instantes em que se revela sentado sobre as próprias pernas, cruzadas como em meditação, na mesa. Não no banco rústico, mas na mesa de madeira de lei, subvertendo as regras, confundindo lógicas, quebrando parâmetros. Não consigo parar de te olhar e, ao mesmo tempo, que tento conter o tempo, quero consumi-lo com voracidade, com a intensidade dos sagitarianos.

Inteligências sagazes me tiram do prumo. Voar é o que tenho. Sei do risco da queda, conheço as impossibilidades, reconheço minhas tragédias, mas as experiências anteriores não se enfileiram diante desse espaço de pinturas, música e fumaça. Seu olhar sereno e instigante me convoca a descobertas. Acalmas minhas ansiedades. Apenas saboreio. 

Coração em chamas em pleno inverno. Na troca de suas estações. Quanto vai durar esse abraço? Já são três noites seguidas, quatro madrugadas adentro e um ano inteiro por vir.

Dirão que coração gelado pulsa. Retruco: coração frio só sobrevive morto. Vivo mais do que nunca. Que se permita a aventura, a invasão do desconhecido, a finitude das coisas e, por isso mesmo, a entrega enquanto acesa a chama. 

Não demore a voltar. Sequer vá. Nesses dias de temperaturas baixas é necessário, nos dias de quentura é essencial. Coração em chamas não queima em fagulhas, incendeia o dia de vivacidade e invade o corpo inteiro, os pensamentos, os desejos, que consumados, querem se repetir e se repetir mil vezes mais. 

Difícil ter o coração em chamas e querer deixar o coração em outro estado. Difícil sair assim e não olhar para trás. Não faça isso… Toda essa música, essa pele nos vestindo, um ao outro. Esse beijo, esse inusitado esbanjado a nossa frente. 

Só peço: não me acuse de dormir sonhando. Ou simplesmente não me acorde dessa realidade de suas cidades imaginárias de traços abstratos.

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Correio do amor

sábado, 15 de junho de 2024
Foto de capa
(Foto: Freepik)

O que dirão no correio do amor? Serão correspondidos os seus autores? Haverá disputa pelo mesmo beijo? Deixarão os corações procurados tocados pelas mensagens recebidas? 

Em tempos de aplicativos de relacionamento de todos os tipos e objetivos, resiste o recado em papel anunciado pelo locutor da festa em meio a toda dança de quadrilha. 

O que dirão no correio do amor? Serão correspondidos os seus autores? Haverá disputa pelo mesmo beijo? Deixarão os corações procurados tocados pelas mensagens recebidas? 

Em tempos de aplicativos de relacionamento de todos os tipos e objetivos, resiste o recado em papel anunciado pelo locutor da festa em meio a toda dança de quadrilha. 

Na barraquinha do correio do amor, teima-se no amor à moda antiga, do tal amor genuíno, quase infantil, que nunca sai de moda: o que se entrega, o que ruboriza o rosto e faz tremer as pernas. Da vontade de se mostrar, mas que o medo causa receio. Espanta ou aproxima? Conquista. 

O correio do amor são mensagens que não chegam pelo celular. Se manifesta no meio de toda multidão, onde ocupam no mesmo espaço físico o desejo e o desejado. Tão perto, ainda que possivelmente longe. Será tocado o coração da menina? Será o flerte desavergonhado a melhor tática para se revelar? Há um momento certo de se mostrar? 

No meio da Festa Junina, em que o arraial se monta em dança, em que se casa e a noiva pode ser roubada ou mesmo se deixar roubar, se confrontam as relações futuristas influenciadas a serem líquidas com as histórias que se iniciam buscando perdurar em devaneios de infinitude. Resiste o correio do amor que persiste nesse jeito de ver e fazer a vida para além dos algoritmos. Sem eles, melhor ainda. A gente se encontra no fim da dança ou durante ela mesma. 

O ritmo é real e leal é cada passo ao som de sanfona e viola. Tremulam as bandeirinhas coloridas que festejam o campo e celebram mais do que São João, mas essa alegria de se encontrar em comunidade, de dar as mãos, de bailar, de brincar, de rir, de ser parte da coreografia, de fantasiar mais do que o corpo com roupas caipiras, do cangaço ou de cowboy, mas dar fantasia à vida. 

A roça que nos habita é a simplicidade que nos grita, convoca a sermos simples, até para mandar recados de amor, anônimos ou não. Na festa, no meio de toda gente, ainda que voltado exclusivamente para aquela ou aquele. Porque o que se sente não deve ficar preso na gente. E quando é paixão, amor, ainda que prudente, deve nos mobilizar e mover ao redor todo carrossel de sentimentos de remetente, destinatário e testemunhas. O amor merece toda a publicidade. Contagia.

E mesmo que não correspondido sempre será apreciado como ato de coragem, ainda que apontado, por alguns, como fragilidade. Mas em qualquer circunstância o amor revela a força que temos e a recusa em apenas sobreviver ou passar pelos dias. 

Intensidade, de dança de festa junina, de fogueira que ilumina, de fé no santo ou em si mesmo, de fé na vida. Que a poeira não esconda o brilho no olhar que espelha a noite de São João. Que a festa tenha grandeza independente de ser grande ou pequena. Que tenha comilança, música, dança e correio de amor — esse singelo instrumento travestido de flecha que sonha em ser bumerangue.

 

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Coração alegre

sábado, 08 de junho de 2024

Como pode um sorriso resplandecer tanto ao ponto de alegrar seu coração? É tão lindo quando acontece. E o acontecimento é fruto de rara sincronia, próximo do que se chama de divino. Sobrenatural é tal encontro que se pode, diante dele, afirmar a felicidade. Ela existe e só nos convoca a perceber sua visita. 

Como pode um sorriso resplandecer tanto ao ponto de alegrar seu coração? É tão lindo quando acontece. E o acontecimento é fruto de rara sincronia, próximo do que se chama de divino. Sobrenatural é tal encontro que se pode, diante dele, afirmar a felicidade. Ela existe e só nos convoca a perceber sua visita. 

Por que não se entregar? Mergulha na intensidade, sem se importar com o que vem depois. Pois, vivido se sabe, que sorriso que alegra o coração é como marca na linha do tempo, tatuagem na alma, leveza que faz sustentar história. Carícia sem toque, mas que faz festa na pele, nos pelos, no peito. Mais do que desejo, vontade em ser e estar em tal encantamento, prosseguir nele… Envolto em fadas, cantar para o sol que ilumina, seja dia ou noite. Gozo do rosto virar espelho para sorrisos assim.  

Nem é preciso estar tão atento, porque quando vem arrebata e apenas se muito descuidado se deixa passar sem louvar. Pois, junta as mãos em agradecimento, deixa invadir o ambiente e brilhar os olhos. Olhos que brilham são tão autênticos. Olhos que brilham fazem corpo e espírito fortes e difíceis de derrubar. Nunca duvide da autoridade que exerce sobre nós a paixão. A paixão move o apaixonado e, de repente, pode fazê-lo também apaixonante. 

Não se assuste. Não se prostre em medo ou receio, ainda que admita a existência de ambos. Mas admita também a provocação da coragem e provocado se deixe ir. Por minutos, horas, dias ou meses. Quem sabe o que vem depois? Quem quer saber, se é tão bom descobrir?

Um sorriso visitou e te fez sorrir também? Inesperado quando de um até então desconhecido, mas que no fundo parece já conhecer. Desde que nasceu espera por isso. E se conecta e se apruma para fazer ponte com o olhar na magnitude de se pasmar em fascínio. Fascinado deixa fluir e essa fluidez toma conta também tomado pelo outro e, ambos, preenchem o espaço-tempo daquele instante em que sorrir-se basta.

Coração alegre contagia e chama a vida para dançar em passos desburocratizados. Não há um só jeito de dançar ou um movimento obrigatório. A liberdade nos faz criativos. Desprendidos. A dança que se inventa é a partir também de experiências anteriores que, na verdade, querem dizer: “você se trouxe até aqui e com tudo o que experimentou, pode ser esse alguém que merece ser feliz”!   

Se o sorriso te chama, devolve o sorriso. Que prova maior é preciso ter após um sorriso resplandecente que alegra o seu coração quase que instantaneamente? É se jogar, mergulhar, se permitir. Convidando um ao outro, ingresse nesse caminho, de se alegrar e de repente alegrar o coração do outro. Aonde vai dar? Será que é preciso saber mais do que se sabe neste agora tão bonito?

Coração alegre é inquebrantável. Sorriso resplandecente é convite à felicidade.

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Lágrimas de tempestade

sábado, 25 de maio de 2024

Toda água corre para o rio e todo rio vira mar. Até as lágrimas que se misturam às tempestades. Elas vão passar por essa correntezas de aflição e medo, mas também de esperança. A dor de ver esvair tudo o que se construiu ao longo de uma vida inteira de trabalho… Mas há a fé de resistir, sobreviver e de pé se reerguer.

Toda água corre para o rio e todo rio vira mar. Até as lágrimas que se misturam às tempestades. Elas vão passar por essa correntezas de aflição e medo, mas também de esperança. A dor de ver esvair tudo o que se construiu ao longo de uma vida inteira de trabalho… Mas há a fé de resistir, sobreviver e de pé se reerguer.

Somos tão pequenos, miúdos, diante da fúria da natureza. Tão iguais diante das nuvens que se derretem sobre as cidades, sobre nós. Rico ou pobre, ninguém pode deter a força da lama que se derrete e carrega anos e anos de negligência diante da necessidade de resiliência. Cidades sustentáveis, resilientes. 

Não cola a desculpa da falta de conhecimento para ressignificar nossas cidades. Somos sabedores do que é preciso ser feito e já. As tecnologias nos apontam o que precisa ser feito e já sentimos na pele a omissão contínua e desinibida de certos governos. Há exemplos mundo afora dos que não se omitem e os resultados são expressivos. Mas essa corrente precisa de mais do que ações isoladas.        

Há aqueles que dirão que as mudanças climáticas sempre existiram e existirão, mas até os que negam terão que ceder à clara percepção de que a velocidade das mudanças está em estágio incontível.      

A cada tragédia, acende o farol da solidariedade. Causa empatia e ânimo essa grande rede de ajuda ao próximo, que recupera a fé na humanidade. Mas essa solidariedade não pode emergir apenas em resposta às catástrofes, deve ser permanente. Solidariedade nas nossas atitudes, inclusive nas pequenas, para garantir o planeta às gerações futuras.

Como você tem agido? Como você tem participado? Como você tem votado? Todos pagam por suas (nossas) escolhas. Estamos no mesmo barco. Barco furado não navega.  

Somos todos responsáveis e é preciso agir de forma ética com o planeta e com as pessoas que são o planeta e as que serão o planeta. Seus filhos, netos, bisnetos. Como sua família do futuro, que talvez você nem vá conhecer, olhará para você? Se orgulhará da própria ancestralidade ou será punida pela poluição desenfreada que você plantou? 

Plante árvores, espalhe o verde, diminua o consumo do que é fútil. Ninguém precisa de tanto. O planeta necessita de nosso cuidado. E se o Planeta parecer muito grande, lembre da sua horta, do seu quintal, da sua cidade. É na cidade que o planeta persiste e cada cidade sente o impacto do que fazem em todas as demais. Mas nem por isso e talvez ainda mais por isso, devemos fazer a nossa parte.   

Não basta olhar para trás e achar que nunca mais acontecerá um janeiro de 2011. Essa memória nos convoca a não se acomodar. É preciso visão de futuro e que só haverá futuro para nós e os nossos se agirmos no presente.      

Cuidar da terra, dos rios e nascentes, preservar o meio-ambiente, reflorestar, transformar o lixo, reciclar, promover a equidade enfrentando, inclusive, o racismo ambiental vigente. Varrer o egoísmo e a ganância. É o que está nos matando uns aos outros. Ser vigilante e desenvolver a cultura de prevenção. 

Prevenir ainda é o melhor remédio, mas ser amigo da natureza é a melhor maneira de adicionar décadas à vida coletiva. 

De nada adiantará essa perseguição insana por crescimento em cima de crescimento, lucro e mais lucro, se mais cedo ou mais tarde não haverá mais recurso e ninguém para consumir. Não é tanto altruísmo assim, apenas sobreviver e garantir sobrevida ao próximo. 

Será preciso apelar à consciência, o direito fundamental de respirar? Se o céu chora, cuidemos uns dos outros para que não choremos. A água vai baixar. A lama vai secar. A poeira vai passar. Será que a gente vai ficar? 

Não precisa morrer pra ver Deus, como diz Criolo. Não precisa ver nossa gente morrer e tudo se perder para começar a cuidar do planeta, diz, com certeza, o incerto. Talvez seja essa a solidariedade das solidariedades: cuidar do planeta é zelar por nós.

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Sem você, mãe

sábado, 11 de maio de 2024

Lá se vão dez anos, poderiam ser cem e presumo que o sentimento será o mesmo. Para muitos são décadas a mais do que meus dez anos sem você, mãe. Para outros, talvez, apenas o primeiro. Apenas? O primeiro dia das mães sem ter a sua mãe é doloroso e expõe ao máximo a fragilidade humana que é seguir sem o primeiro colo, o aconchego fixo na memória que se cria antes mesmo de sair da barriga. Vir à luz. À luz de fora do ventre. Mãe é luz.  

Lá se vão dez anos, poderiam ser cem e presumo que o sentimento será o mesmo. Para muitos são décadas a mais do que meus dez anos sem você, mãe. Para outros, talvez, apenas o primeiro. Apenas? O primeiro dia das mães sem ter a sua mãe é doloroso e expõe ao máximo a fragilidade humana que é seguir sem o primeiro colo, o aconchego fixo na memória que se cria antes mesmo de sair da barriga. Vir à luz. À luz de fora do ventre. Mãe é luz.  

Talvez o tempo aquiete. Mas fica lá esse sem você. Talvez os dias e os acontecimentos no dia a dia nos desviem da saudade materna. Casar, ter filhos, ser avô, os projetos, as viagens são distrações para essa saudade latente para além das efemérides. Mas lembro de meu pai — pai de sete filhos e avô de sete netos — relatar saudades de sua mãe. Mesmo muitos anos após sua partida. Eu sequer conheci a minha avó paterna. Mas, pelos olhos do meu pai, podia senti-la. 

Portanto, a sensação não é de ausência. Talvez presença na ausência. Não sei dizer bem, mas não é porque não sei dizer que não admita essa força estranha que nos faz vinculados a algo maior, muito próximo do divino ou divino mesmo. Mães são divinas. Para seus filhos, santas. E é um tanto cruel santificá-las, sob o risco de sacrificar suas incertezas humanas. Mas diante de um filho, mãe é sempre certeza. Porque a mãe pode até reconhecer os erros do filho, mas estará lá ao lado dele, como se fosse um próprio pedaço de si. E se pudesse, para amenizar a dor do filho, dar tudo que tem para o pedaço de si, sem titubear, daria. Pois mãe é esse altruísmo que assusta, é a doação plena, é esse exponencial amor que faz duvidar de todos os outros amores.

Então, não romantize a maternidade. Especialmente as mães solo, principalmente as mães que perderam seus filhos. Se a sequência da vida permite aos filhos distrações à ausência da mãe, não há mais nada que importe a uma mãe que tenha perdido um filho. Não é a ordem natural das coisas. Nessas horas tento engolir com saliva meu egoísmo. Quisera que as mães fossem eternas, desde que seus filhos também pudessem ser. Pois se é difícil sobreviver ao que ama, deve ser insuportável prosseguir sem um filho. Cabe compreender que nenhuma mãe merece esse sofrer. 

Deixei você ir, mesmo que não escondesse que queria muito que ficasse. Mãe, queria você aqui. Sei que sua luz segue a me guiar como uma bússola para a felicidade. Rio chorando de tantas histórias, aqueles almoços despretensiosos de domingo. Como aqueles almoços eram bons. Não só pelo seu tempero único ou invenções culinárias. Mas por cada palavra dita e por cada silêncio que tanto dizia. 

Falo para meus amigos que ainda têm suas mães: “Aproveite cada instante! Torne possível mais momentos com ela. Fabrique saudades futuras, sem o temor de saber que não vai tê-la para sempre, mas com a determinação de quem sabe que o tempo passa rápido demais”. 

Mãe, consigo sentir no rosto seu carinho, mas como desejo poder pegar suas mãos e dizer baixinho: muito obrigado. Muito obrigado por ser meu exemplo, por ser o meu equilíbrio entre o medo e a coragem, por ser minha consciência.  

No peito se costura seu nome, mas na memória passa esse filme de trilha sonora inconstante para sentimentos variados. Não há vazio, ainda que ausência. Não há plenitude, ainda que presença.

Mães são sempre presentes, mesmo quando não estão mais aqui. Mas se aqui, apenas reconheça-as. Você, minha mãe, nunca se foi, afinal.

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O trabalhador

sábado, 04 de maio de 2024

Não é de poesia o chão de fábrica. Dê valor ao trabalho árduo de quem deixa os seus e acorda cedo para prover os que ama. Não romantize o sol que queima os ombros do homem do campo que madruga para dar o que comer a quem nunca comeu poeira de roça. Arar a terra, molhar a horta, fazer brotar o alimento. Fazer as linhas virarem tecido, fazer o pano se tornar vestimenta. Transformar o trigo em pão. Dar forma ao aço que torna as moradas seguras.  

Não é de poesia o chão de fábrica. Dê valor ao trabalho árduo de quem deixa os seus e acorda cedo para prover os que ama. Não romantize o sol que queima os ombros do homem do campo que madruga para dar o que comer a quem nunca comeu poeira de roça. Arar a terra, molhar a horta, fazer brotar o alimento. Fazer as linhas virarem tecido, fazer o pano se tornar vestimenta. Transformar o trigo em pão. Dar forma ao aço que torna as moradas seguras.  

É árdua a jornada do trabalhador. É operária a cidade de confecções e fábricas metalúrgicas. Nem todos são donos, ainda que sócios minoritários de planos e sonhos. O que nos motiva é o que sempre nos moverá. Muitas vezes, até mover moinhos.

Na esperança de voltar para casa, o trabalhador sai cedo à labuta, sem a expectativa de enriquecer, mas na determinação de, ao retornar, levar o pão para casa. Cuidado de mãe e pai no esforço diário de, além de suprir aos filhos o sustento, lhes oferecer — ainda que tomados pelo cansaço — o carinho. 

O amor mora no esforço, que não é gratuito, tampouco produto da magia. O perfume do amor é muito deste suor dedicado que não aparece nos álbuns dos retratos que marcam a linha do tempo da vida. Mas é o que, nitidamente — nem sempre valorizado — permite esses destaques: festa da alfabetização, formatura, ver os filhos formados na universidade, casados, testemunhar a família crescer… De repente, apesar de tudo, ser feliz! 

No campo, no comércio, no canteiro de obras, na confecção, na fábrica, na sala de aula, nas redações dos jornais, os trabalhadores fazem a cidade acontecer. Por seus braços e mentes escrevem a história coletiva do que os livros podem chamar de povo ou nossa gente. Cada nome, cada identidade, cada pessoa, eu e você, somos esse tal de povo, essa tal de nossa gente. 

É o humilde passo de cada um que verdadeiramente faz o caminho de todos. Lugar só faz sentido com essa soma que permite a todos chamar o mesmo canto de nosso: nosso lugar, nossa cidade. Não tem dono, um único dono, para decepção de um e outro que esqueceu que o baronato acabou junto com a escravidão. 

Ensinar, aprender, produzir. Verbos transitivos, às vezes direto, por vezes relativo. Nascemos para nos relacionarmos, criarmos, cocriar. Somos por natureza inventivos e é da nossa natureza interferir no que alguns simplificam ao chamar apenas de destino. Quisera o trabalho de cada um ser simples. Pois nem sempre é fascinante, ainda que digno. Quisera o trabalho de todos ser devidamente valorizado e que o lucro fosse compartilhado de forma justa, tanto quanto reconhecido.    

Em tempos de inteligência artificial, não é artificial o que nos trouxe até aqui, mas um acúmulo coletivo do que esta geração e nossos antepassados produziram. O que se anuncia sobre grande parte das futuras profissões ainda não existirem e que muitas das atuais deixarão de existir, que o humano seja o protagonista. Para ter mais tempo livre para cuidar dos seus e de si mesmo. 

Que o trabalhador não seja um mero detalhe, pois sem ele não há quem possa consumir o que é produzido. Mas acima disso e para além do capital, que o prazer de viver mais e mais intensamente seja a consequência de todo trabalho empenhado ao longo da história por todos, mas que desta vez seja para todos. Pode parecer um ingênuo sonho de trabalhador, mas enquanto trabalha, por que não ter devaneios de igualdade?

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De quantos enquantos é feita a vida?

sábado, 27 de abril de 2024

De quantos enquantos é feita a vida? Enquanto se espera a chegada, de repente, chega. No choro que esbraveja: "não quero ser um normal nesse mundo de loucuras". O mundo já é uma prisão muito pequena para que se encarcerem os loucos. 

De quantos enquantos é feita a vida? Enquanto se espera a chegada, de repente, chega. No choro que esbraveja: "não quero ser um normal nesse mundo de loucuras". O mundo já é uma prisão muito pequena para que se encarcerem os loucos. 

Enquanto se busca a liberdade, preso estamos. De repente livres, presos nos deixamos livres de novo. Enquanto se espera um grande amor, o amor passeia diante de nós. Dança, faz careta e até piruetas. Chama a atenção, mas enquanto a nossa atenção está toda voltada para a procura, o que nos procura não nos acha. Enquanto indisponíveis, a disponibilidade disfarça não perceber que há alguém precisando de atenção.

De quantos enquantos é feita a vida? Do enquanto se nasce, se morre. Do enquanto se morre, se vive. Do enquanto se ama, se odeia. Do enquanto se odeia, o amor flutua. Do enquanto se torto, se endireita. Do enquanto se endireita, mais à esquerda. Ah! São tantos enquantos que não sei quanto se vale contar.

Deixa esse enquanto se esparramar. A felicidade alheia pode ficar. Convida a felicidade a entrar. Tan-tan-tan. Batem na porta. É mais um enquanto querendo entrar. Enquanto isso…

Enquanto a chuva cai, o sol espera. Enquanto o sol espera, a noite vem. Enquanto um ciclo se encerra, outro se inicia. Chega e achega no aconchego ininterrupto do tempo. Repetido e repetitivo talvez, mas jamais exatamente igual. 

Enquanto se pergunta o que é o tempo, o tempo passa. Quando o tempo acaba? Quando acabamos a tarefa de viver??? O tempo então se transforma em desconhecido que uns chamam de morte, outros de eternidade.

Enquanto se olha, há algo não sendo visto. Enquanto não se é visto, nem sempre se é esquecido. Aparece na janela, enquanto a banda passa, enquanto o pássaro canta, enquanto a moça samba, enquanto a flor desabrocha, enquanto a hora vagueia... Enquanto o mundo gira, a roda gigante também roda. Rogai aos céus!

De quantos enquantos é feita a vida? Enquanto sonha, realidade. Enquanto real, piedade. Enquanto voa, anda. Enquanto perturbação, acontecimento. Enquanto fé, milagre. Tudo pode ser um milagre, enquanto só o impossível é inacreditável. Enquanto crença, semente. Enquanto céu, terra. O que herdaremos, afinal? 

A vida é tanto quanto enquanto, ou melhor, encanto. Encantados, a vida ilumina mais do que passa. Há mais do que só sobreviver. Merecemos mais, mas temos o quanto achamos que merecemos. Enquanto jogamos o bumerangue, ele já se prepara para voltar. Lei da física é lei da selva humana, ação e reação. O que se dá se recebe, mais cedo ou mais tarde. Toda conta fecha, ainda que com números imprevisíveis. 

De quantos enquantos é feita a vida? Enquanto a partida se anuncia, de repente, adeus. No choro da despedida: "eu não sei viver sem você". Aprende, tanto quanto se arrepende. Não se aprende jamais. A calça comprida vira bermuda, os dias encurtam as coisas, tanto quanto alongam as histórias. A verdade só é um mistério para quem tem curiosidade. Desvendar mistérios, nem sempre é compreendê-los. 

Enquanto felicidade, alegria. Enquanto saudade, nostalgia. Tanto quanto mais feliz mais nostalgia para frente. Dá para ser feliz, enquanto nostálgico e vice-versa. A vida é verso do avesso e avesso do verso, nunca avesso ao verso que escrevemos com outras mãos, mas corações.

De quanto enquantos é feita a vida? A pergunta gira e se responde com novas respostas a cada enquanto. Porque é de enquanto que se faz o caminho e tantos quantos enquantos a mais — encantos em cada canto. Não esquece, no entanto, o canto e nada no canto... Somos fragmentos de possibilidades.

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Rua Juruá, 94, Olaria, Nova Friburgo

sábado, 20 de abril de 2024

Os olhos de um menino enxergam mais do que os de um adulto. Talvez, pela inocência de quem está experimentando o mundo, desvendando-o sem preconceitos. Possivelmente, pela ausência de circunstâncias avessas de quem pouco sabe diferir o bom do ruim. A ingenuidade, no entanto, não permite qualquer confusão na diferença entre o bem e o mal. Todos nós nascemos do bem! O dia-a-dia, pode ser, faça alguém se tornar mal.

Os olhos de um menino enxergam mais do que os de um adulto. Talvez, pela inocência de quem está experimentando o mundo, desvendando-o sem preconceitos. Possivelmente, pela ausência de circunstâncias avessas de quem pouco sabe diferir o bom do ruim. A ingenuidade, no entanto, não permite qualquer confusão na diferença entre o bem e o mal. Todos nós nascemos do bem! O dia-a-dia, pode ser, faça alguém se tornar mal.

Para a criança, o mundo é um lugar bem pequeno que cabe no seu campo de visão. É um quintal, uma calçada, uma rua, uma cidade. Meu quintal: Rua Juruá, no número 94. Minha calçada: uma floresta com cipós e trilhas. Minha cidade: Nova Friburgo.

Até hoje não sei se a mágica Rua Juruá é em Olaria ou no Alto de Olaria. Aliás, hoje sei que dão o nome de Loteamento Nosso Sonho. Naquela época, era o meu sonho que até hoje cheira a biscoito amanteigado. Cheiro de infância causa afeição na gente que nos transporta para um imaginário tão particular e de difícil descrição.

Meu terreiro, próximo ao Terreirão de quem preferia desobedecer às ordens dos pais e morar mais na rua do que em casa. Em casa, tinha o fantasma da mulher de branco. Para me proteger, quando estava sozinho em casa ou mesmo com meu irmão mais velho, eu me escondia na rua. As luzes dos postes iam acendendo ao escurecer e só entrava em casa quando minha mãe ou meu pai chegavam do trabalho.

Eu era muito pequeno, quando passei pela primeira mudança de casa na minha vida. Devia ter três, quatro anos, quando me despedi da vizinha de porta, Dona Antônia, no Perissê. Uma adorável senhora que peguei como avó emprestada. Ela cuidava de mim, enquanto meus pais iam para o trabalho. Chorava muito por ter que sair daquele aconchegante bairro em que fui atropelado por um Fusca azul. Foi a única vez que quebrei algo em mim: meu braço esquerdo. Aliás, são os dois primeiros choros que me lembro: quando quebrei o braço e quando deixei a Dona Antônia que viria a falecer alguns meses depois da minha mudança Perissê para Olaria. 

Era assustador, ainda que nutria certa ansiedade para descobrir o que me aguardava. Chegar naquele bairro novo, numa rua ainda de barro, em que de um lado tinham casas e do outro uma floresta. Não podia imaginar como seria tão feliz. A casa era muito maior, ainda que fosse de chapisco. Tinha uma horta gigante. O acesso ainda era difícil, com uma escada esculpida na terra sem muita simetria, própria de uma rua que ainda não era pavimentada. O que durou pouco. Logo depois de nossa mudança, a rua foi calçada e aproveitou-se para adequar o acesso à casa. 

A floresta ao lado era um parque de diversão. Próprio de crianças desprovidas de muitos brinquedos. Uma vantagem. Nascia ali minha imaginação fértil que criava mundos mágicos, cheios de personagens. Nunca precisei muito de brinquedos, na falta deles - a minha criatividade tratava de inventá-los. Se não tinha a floresta, tinha a horta. Se tinha floresta e horta, havia também os vizinhos. Todos mais velhos do que eu, o que me obrigava a descobrir cedo a minha alma antiga. Se não tinha ninguém, havia a laje, onde eu super-herói combatia os vilões com espada de bambu e capa de toalha de banho. 

Ir para a Escola Batista era festa. No caminho, caçava figurinhas do chiclete Ping-Pong no chão. Completava álbuns e álbuns assim. Catar latas pelo bairro - na época mais de óleo de soja do que de refrigerante - pode até parecer trabalho, mas para mim era como o dia de São Cosme e Damião. Latas e mais latas no saco que eu e meu irmão André vendíamos para um ferro-velho da rua de baixo. Juntava o dinheiro, gastava quase todo na bomboniére da Rua São Roque ou na venda do Seu Juarez da rua acima da Juruá. Comprava 100 gramas de belisque palitinho, muitos chicletes com figurinha, biscoitos e doces. Quando tinha um pouco mais, juntava parte com o meu irmão e até dava para comprar uma bijuteria para mamãe ou uma boneca barata para a irmã que acabara de nascer.    

Quando meus primos ou irmãos vinham, a Rua Juruá se tornava ainda mais mágica, tendo como testemunha a Pedra do Imperador, única montanha que pode ser vista de qualquer ponto da cidade, até mesmo do Loteamento Floresta, bairro que me abrigou após a minha infância em Olaria. Mas essa é outra história dentro do mesmo lugar: Nova Friburgo.

E a gente vai crescendo. Histórias e compromissos entram nos nossos compromissos e histórias. A memória vai se consumando sem jamais consumir as lembranças que nos fazem sentir saudades e nostalgias. Saudades de cheiros como o de biscoito amanteigado ou da comida de minha mãe. Saudades de sons como o da pedreira da Catarina que anunciava ser onze horas e cinco da tarde ou da floresta quando o vento fazia carinho em suas árvores. Saudades de pessoas como a Dona Laura que me dava salgadinho belisque, o Ricardo que pulava o muro da casa dele para ir na minha ou do meu pai que chegava de surpresa em casa e já colocava a mão pesada para ver se tínhamos ficado vendo televisão sem permissão.

Saudades de contatos como o da vizinha que vendia sacolé ou com a moça que costurava as roupas da família ou dos três irmãos que eram vizinhos e que apesar de lembrar deles não consigo recordar de seus nomes. Mas independente disso, todos estão resguardados no mesmo lugar, onde o número 94 continua lá: Rua Juruá, em Olaria.  

Uma rua de histórias, fascínios e dramas. Uma rua pavimentada por poesia numa cidade que é a própria poesia em si. A Juruá, Olaria, são apenas versos e estrofes de uma cidade cujo poema está sempre inacabado. Cabe a cada um de nós acrescentar em palavras, sorrisos, choros, sonhos e memórias o que Nova Friburgo causa na gente e a gente transforma nela. E o melhor: sempre estaremos por terminar. Há de se continuar!

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O mais friburguense dos friburguenses

sábado, 06 de abril de 2024

Há quem diga que não voltam mais aqueles tempos de Maria Fumaça subindo a serra, cortando a avenida principal da cidade, atravessando a estação Rio Grande. Vão dizer que se foram aqueles tempos de cinemas… Eldorado, Marabá, São José, Leal.  

Há quem diga que não voltam mais aqueles tempos de Maria Fumaça subindo a serra, cortando a avenida principal da cidade, atravessando a estação Rio Grande. Vão dizer que se foram aqueles tempos de cinemas… Eldorado, Marabá, São José, Leal.  

Haverá razão em dizer que já não temos e nem teremos os tantos campos de futebol, onde jogavam Esperança, Friburgo, Fluminense, Serrano, Conselheiro. Quantos craques desfilando talentos, de Paulo Banana a Miguel Ruiz, de Cabrita a Decache. Jogadores que viravam dirigentes e diretores líderes por natureza, Osvaldo Zarife, Laercio Ventura, Bachini. Se for falar de basquete, faltariam linhas, se for relembrar os Jogos dos Industriários então, faltariam páginas.  

Será apenas nostalgia os dias de comícios enormes dos Azevedistas e dos Bento de Mello. Registram-se os grandes nomes do PSD e da UDN. A força dos sindicatos perante a pujança de nossas indústrias. Quem viveu, nunca mais viverá as cenas das grandes fábricas, onde aos milhares entravam logo cedo e ao fim da tarde saíam pelos grandes portões da Filó, da Arp, da Ypú. 

Um enxame de gente que fazia compras parceladas de forma informal nos ambulantes que se aglomeravam nas ruas próximas às fábricas e vendiam de tudo, de doces a roupas, brinquedos e até material escolar.   

Livraria e em outra loja a Papelaria Simões. Eletrodomésticos na Yunes, Louback Magazine, Galeria Universal. Persiste firmemente a Gazzoni. Roupas nas Lojas Nader, na Francesa, A Vantajosa. Lojas Diegues… Das antigas, a Casa Libaneza, assim como a centenária Camisaria Friburgo resistem aos grandes conglomerados que invadiram também a cidade. A Bota Preta, na esquina da Oliveira Botelho, a Beto Calçados. Sonhos doces na Casa Branca, a São Jorge virou Superpão. Materiais de Construção na Miele, onde até hoje as pessoas usam como referência para o ponto de ônibus próximo ao extinto Cavalo Preto.  

Mas será mais do que trovas todas essas saudades de uma Nova Friburgo que ficou na memória e que terá saudades até aqueles que não viveram os tempos dos bailes do Xadrez, das festas do vinho e do chope do Country. 

O que todos, no entanto, podem seguramente dizer desses tempos de alvoradas é a certeza de que uma voz segue a reverberar e fazer mais do que ecos do ontem e do hoje para o futuro — A Voz da Serra. O maior biógrafo desta princesinha da serra, onde mora na fonte formosa a saudade, o ciúme e o amor. 

A saudade, o ciúme e o amor fazem parte da nossa gene coletiva, cujos DNAs são também transmitidos por A Voz da Serra. Testemunha dos feitos de seus filhos famosos e anônimos, eternizados por suas páginas em crônicas, notícias e artigos que resistem à ideia de ser apenas digital. Folhear páginas de um jornal seguem sendo ritual de quem gosta de ter tinta nos dedos como se o ato pudesse, e pode, capturar mais do que notícias efêmeras, mas notar a história em suas mãos. 

Em tempos que tentam impedir o amanhã, desrespeitam o passado que nos trouxe até aqui em nomes de personalismos narcisistas próximos de outras psicopatias, A Voz da Serra é suspiro de que as instituições sobrevivem aos ataques sorrateiros de gente passageira. 

O trem passou, as camisas dos grandes jogos de futebol que pelos nossos campos desfilavam ficaram apenas nas conversas de pai para filho. Lojas fecharam, novas indústrias surgiram e outras se reinventaram. Políticos vêm e vão, amigos e colegas de trabalho já não brilham mais aqui e cintilam no céu como guias para nossos enfrentamentos e encantamentos. 

Mas A Voz da Serra ficou, sendo o mais friburguense dos friburguenses, um resistente há 79 anos nos dando o privilégio de coexistir.

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Se querem nos matar em vida, prometemos não morrer

sexta-feira, 29 de março de 2024

Não. Não vou ficar aqui preenchendo linhas que tomem o seu tempo falando sobre o significado da Páscoa, os sentimentos que traz, o quanto podemos nos inspirar nessa data tão significativa para nossas vidas e relações. Também não vou repetir aquilo que dizem na missa, nos púlpitos de fé ou mesmo nos artigos de jornal. Você sabe o que representa a Páscoa. Cristão ou não, crescemos ouvindo sobre o calvário, a traição, a crucificação e a ressurreição.

Não. Não vou ficar aqui preenchendo linhas que tomem o seu tempo falando sobre o significado da Páscoa, os sentimentos que traz, o quanto podemos nos inspirar nessa data tão significativa para nossas vidas e relações. Também não vou repetir aquilo que dizem na missa, nos púlpitos de fé ou mesmo nos artigos de jornal. Você sabe o que representa a Páscoa. Cristão ou não, crescemos ouvindo sobre o calvário, a traição, a crucificação e a ressurreição.

A boa nova para a boa nova é que precisamos nos tocar, de uma vez por todas, que não basta teimar apenas em fé. Passou do tempo de arregaçar as mangas e fazer diferente para obter resultados diferentes. A não ser que haja plena satisfação com o que aí está. 

Certamente, satisfeitos estão aqueles que usurpam o poder, governam para seus egos e umbigos, se aproveitam da crença ingênua de mulheres e homens de bem, falando em nome de Deus. Falam - estes — em nome de qual Deus? O Deus criador de tudo ou o deus capital, do dinheiro, da ganância, da manipulação? Há o Deus da vida, mas há o deus destes que dizem ser intercessores e se guiam pelo poder pelo poder para causar benesses a si e aos seus, mas a todos os outros entregam miséria, fome e morte.

Diante de nossos olhos, em nome do bem, fazem o mal. Quem planta preconceito jamais verá colheita de amor. E, sabem disso e o fazem deliberadamente. Crucificam Jesus Cristo mais uma vez. Todos os dias. Caçam direitos e se dão privilégios. Nos matam e nos roubam o paraíso que deveria e pode ser aqui.

Mas o objetivo desta reflexão não é falar sobre fé ou crença e não se atreve a debater religião. Espiritualidade? Há ateus que têm mais sensibilidade do que pseudos sacerdotes e pastores. Talvez, ainda que bastante superficialmente, esta reflexão se apegue à história, mas não necessariamente sobre a cronologia da humanidade. 

Audácia alguma é falar sobre o hoje, sobre os fatos que estamos escrevendo há pouco e o que queremos do amanhã. Pois é isso que importa.

Se querem nos matar em vida, prometemos não morrer. E é daí que estas linhas tentam convocar a falar sobre esse viver junto e perto. Sobre como compartilhamos nossas ruas, bairros e cidades, nossos lugares. 

Que não admitimos crianças nas ruas, sem creche e escola. Queremos que nossos jovens possam empunhar violões e saxofones, ao invés de fuzis. Que não queremos ver nossos familiares e vizinhos adoecerem. Queremos um envelhecimento saudável, ao invés de frequentar filas de hospital. Que não queremos esperar horas e horas por um ônibus. Queremos levar o menor tempo possível para chegar em casa, ao invés de ter cerceado o direito de passar mais instantes com nossos amores. Que não queremos ver nossas casas serem levadas pelas chuvas e nossa paz carregada pelo medo. Queremos deixar de herança para as próximas gerações uma cidade verde, sustentável.  

De que adianta reclamar, constatar que a saúde não vai bem, que o trânsito não flui, que a crise na educação é uma construção sorrateiramente planejada se não alimentar a si mesmo de um verdadeiro desejo de mudança? Renovação. 

Renovação é saber também que se merece mais, muito mais, que todos nós podemos mais, porque a cidade pode muito mais. Nova Friburgo está com saudade de ser Nova Friburgo. Nova Friburgo precisa se reconhecer Nova Friburgo. Cheia de potenciais, pronta para entregar à sua gente a grandeza que tem para prosperar.                   

Todos estamos no mesmo jogo, sobre o mesmo campo. Quem está parado, também joga. Quem não se importa com quem está ao lado também se deixa violar. Deixar tudo como está, não pode nos servir mais, se o que nos é essencial não chega. Basta de se contentar com a mediocridade, de se fazer cego e no barulho das festas não perceber os que adoecem e morrem. Isso é tão cruel quanto cruéis são aqueles que produzem a mediocridade, a dor e a morte. Até quando?

De nada adianta a Páscoa, de nada conhecer a história, de nada adianta se dizer cristão se a dor alheia não incomoda. Que cidadania é essa que exclui? Que indignação é essa de ocasião, sua ocasião individual? Se importar apenas consigo mesmo e lavar as mãos para os que sofrem, padecem, que são perseguidos? 

Páscoa para quem? Espero que para você!

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