Coração em chamas

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 29 de junho de 2024

Depois não me acuse de dormir sonhando. Entre seus braços, vou sonhar sorrindo. Por que é tão bom? Por que é estranho? Assustador, insano… Mas coerente. 

Te vi sentado na mesa, sob a luz do abajur. Indecente. Não por estar pelado, mas por estar nu. Com alma livre. Com o rosto sem maquiagem ou máscara. Com o coração à mostra em deliciosos mistérios. Você, ali, com seus defeitos, lágrimas e marcas exibidos sem pudor. Com seus costumes, rebeldias e manias manifestas. Expostas, sem determinar a obrigação de eu estar também exposto. Mas livremente me exponho. 

E te levo para casa no corpo. Te sinto. Almejo mais do que os cinco minutos que me pede para ficar a mais. E os cinco viram dez, vinte minutos, cinco horas. Mais uma música, um vinil inteiro. Dos dois lados. A e B. Eu e você. 

Marina Lima canta que “Não Sei Dançar”. Eu não sei. Você sabe. Do seu modo. Fuma mais um cigarro. Faz malabarismo com o tabaco enrolado, que incendeia, invade, não incomoda. Ficam tão charmosos os seus vícios. Não sei dizer. 

Apenas beijo o tempo como se pudesse conter os minutos, esses instantes em que se revela sentado sobre as próprias pernas, cruzadas como em meditação, na mesa. Não no banco rústico, mas na mesa de madeira de lei, subvertendo as regras, confundindo lógicas, quebrando parâmetros. Não consigo parar de te olhar e, ao mesmo tempo, que tento conter o tempo, quero consumi-lo com voracidade, com a intensidade dos sagitarianos.

Inteligências sagazes me tiram do prumo. Voar é o que tenho. Sei do risco da queda, conheço as impossibilidades, reconheço minhas tragédias, mas as experiências anteriores não se enfileiram diante desse espaço de pinturas, música e fumaça. Seu olhar sereno e instigante me convoca a descobertas. Acalmas minhas ansiedades. Apenas saboreio. 

Coração em chamas em pleno inverno. Na troca de suas estações. Quanto vai durar esse abraço? Já são três noites seguidas, quatro madrugadas adentro e um ano inteiro por vir.

Dirão que coração gelado pulsa. Retruco: coração frio só sobrevive morto. Vivo mais do que nunca. Que se permita a aventura, a invasão do desconhecido, a finitude das coisas e, por isso mesmo, a entrega enquanto acesa a chama. 

Não demore a voltar. Sequer vá. Nesses dias de temperaturas baixas é necessário, nos dias de quentura é essencial. Coração em chamas não queima em fagulhas, incendeia o dia de vivacidade e invade o corpo inteiro, os pensamentos, os desejos, que consumados, querem se repetir e se repetir mil vezes mais. 

Difícil ter o coração em chamas e querer deixar o coração em outro estado. Difícil sair assim e não olhar para trás. Não faça isso… Toda essa música, essa pele nos vestindo, um ao outro. Esse beijo, esse inusitado esbanjado a nossa frente. 

Só peço: não me acuse de dormir sonhando. Ou simplesmente não me acorde dessa realidade de suas cidades imaginárias de traços abstratos.

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