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E por que não tapar os buracos da sola daquele sapato que nos calça os pés tão bem?

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Ontem, conversando com mamãe e uma amiga dela, ambas longevas, falamos que o ano começa depois do carnaval. Olhei para as duas, que tinham mais de oitenta anos, minha mãe, 91, e vi que ambas estavam empertigadas, olhando para os dias futuros com altivez. O momento ficou na minha cabeça, sendo embalado pela melodia de Ivan Lins, “Começar de Novo”. Com uma letra forte e poética, a música fez grande sucesso quando foi lançada em 1979 pelo grito de enfrentamento ante as situações difíceis da vida conjugal que desencadeiam a separação. 

Ontem, conversando com mamãe e uma amiga dela, ambas longevas, falamos que o ano começa depois do carnaval. Olhei para as duas, que tinham mais de oitenta anos, minha mãe, 91, e vi que ambas estavam empertigadas, olhando para os dias futuros com altivez. O momento ficou na minha cabeça, sendo embalado pela melodia de Ivan Lins, “Começar de Novo”. Com uma letra forte e poética, a música fez grande sucesso quando foi lançada em 1979 pelo grito de enfrentamento ante as situações difíceis da vida conjugal que desencadeiam a separação. 

Hoje, mais de 40 anos depois, vejo que a primeira estrofe pode ser aplicada a qualquer situação. Ora pois, os caminhos que trilhamos ao longo dos anos não são desafiadores? Às vezes até chegamos a suspirar ao pensar o que temos pela frente. Como Carlos Drummond de Andrade sabia disso quando escreveu o verso “No meio do caminho tinha uma pedra”, primeira estrofe do poema “No Meio do Caminho”. 

Em “Começar de Novo” os versos iniciais nos acionam a recomeçar a viver dando as mãos e abrindo os braços para nós mesmo. Mostra-nos que vale a pena poder continuar a providenciar os meios para pagar as contas, cuidar da casa, da família e dos amigos, enfrentar os problemas de saúde. Dos animais de estimação. E por que não tapar os buracos da sola daquele sapato que nos calça os pés tão bem? É apaziguador reconhecermos a força que temos para resolver problemas, realizar novos sonhos e mudar o rumo das coisas.

O Dr. Jadyr de Araújo Goes, médico psiquiatra, amigo do meu padrasto, também médico, sempre que conversávamos, o que acontecia com frequência, me dizia que o corpo e a mente precisam de movimento, que todas as células são pulsantes e nos alicerçam. Ainda enfatizava que cada dia deve ser encarado como o mais importante de todos porque a vida é única e finda.  O tempo não nos cede um segundo sequer; é rigorosamente inflexível, dentro do qual envelhecemos, mesmo que nossas mentes mantenham a esperança da juventude.

 Acordamos para um dia novo e diferente, nada se repete, mesmo na mais enfadonha rotina. No caminho da casa da mamãe para minha casa, olhando para as ruas, os carros, os pedestres, os cachorros, repentinamente, parei e me perguntei: “Por que olho para fora e não para dentro da minha pessoa?” Aí uma senti fome imensa de mim, uma vontade de eu mesma me degustar para sentir o gosto que tenho neste momento de existência, quando estou perto dos setenta anos. Cheguei em casa e fiquei só, em total estado de privacidade. Sem me sentir isolada e reclusa, deixei a vontade de estar comigo ter dominância sobre aquele momento.

“Começar de novo e estar comigo. Vai valer a pena ter amanhecido”.

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Cada um deve cuidar das suas moscas depois do carnaval

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Hoje é tempo de trilhar caminhos do imaginário para recomeçar o ano, depois da grande festa que veio de longe e de longo tempo, tomou conta das cidades do Brasil, transformando os dias em movimento, liberdade e criatividade. Quando o povo, sem timidez e com abundante energia, se jogou na folia, brindou a vida com festejos barulhentos e ritmados. Quando as pessoas se permitiram ser elas mesmas e não as serem! 

“Naquele carnaval, pois, pela primeira vez eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.”

Hoje é tempo de trilhar caminhos do imaginário para recomeçar o ano, depois da grande festa que veio de longe e de longo tempo, tomou conta das cidades do Brasil, transformando os dias em movimento, liberdade e criatividade. Quando o povo, sem timidez e com abundante energia, se jogou na folia, brindou a vida com festejos barulhentos e ritmados. Quando as pessoas se permitiram ser elas mesmas e não as serem! 

“Naquele carnaval, pois, pela primeira vez eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.”

               Clarice Linspector, em Felicidade Clandestina

 

O que me chama a atenção no carnaval é que além de produzir grandes festas, são dias do nós. Seja nas cidades ao som dos batuques e na dança dos pés, seja na praia diante da beleza do mar ou nos braços do campo, tivemos um tempo em que se compartilhou a descontração e as sensações que não há em outros dias do ano. De alguma forma há sempre a vontade de se encontrar o mais impossível possível que cada um guarda em si. 

Custei a compreender que fantasia/ É um troço que o cara tira no carnaval/ E usa nos outros dias por toda a vida”

Aldir Blanc e João Bosco, em Fantasia

 

Desfilou-se junto de foliões, descansou-se ao lado de pessoas de quem gostamos, divertiu-se com quem nem conhecemos. De todos os modos, o que se fez nos dias de carnaval ficou preservado nas lembranças leves ou neuróticas, ajustadas ou desconcertadas, felizes ou ilusórias. Esse carnaval, mais uma vez, nos mostrou que a “vida é bela”, conforme disse a Zuleica, a mosca cor-de-rosa-choque, personagem do livro “Um cão Cheio de Ideias”, de minha autoria.

Meu fumo e minha yoga/ Você é minha droga/ Paixão e carnaval/ Meu zen, meu bem, meu mal”

                                           Caetano Veloso, em Meu bem, meu mal

 

Será que as máscaras que os foliões usaram no carnaval foram mais criativas das que usam na vida diária?  Usam-se tantas, que, às vezes, pode-se pensar que o carnaval acontece em todos os dias do ano. Ora pois, não somos personagens que criamos com tamanha convicção que chegamos a pensar que os somos? Todavia as máscaras são importantes para nossa sobrevivência no universo civilizado para afastar, para não dizer espantar, pessoas que não nos fazem bem e que fazem nosso “eu profundo”, como apontou Fernando Pessoa, ficar tão distante. Quem ainda não experimentou lúcidas mentiras?

“A vida é uma tremenda bebedeira./  Eu nunca tiro dela outra impressão./ Passo nas ruas, tenho a sensação/ De um carnaval cheio de cor e poeira.

(...)

Só é decente ser outra pessoa/ Mas isso é porque a gente se vê por fora.../ Qualquer coisa em mim parece agora

Alberto de Campos (Fernando Pessoa), em Carnaval

 

Depois do carnaval, cada um volta à sua rotina, é o agora que vamos poder realizar. Entretanto, amigo leitor, se fazendo contas, cuidado da casa e do corpo, trabalhando em casa ou escritório, não deixe de cuidar das suas moscas!

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Escritores com veias científicas afloradas e cientistas com veias literárias manifestas

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Não tive como deixar de dar continuidade à coluna anterior pelas questões que não me deixaram aquietar, principalmente depois que José Huguenin, autor do livro “Vidas Sertanejas”, me enviou o texto de João Zanetic, “Física e literatura: construindo uma ponte entre as duas culturas”, publicado no livro “História, Ciências e Saúde – Manguinhos”, publicado pela Casa Oswaldo Cruz. 

Não tive como deixar de dar continuidade à coluna anterior pelas questões que não me deixaram aquietar, principalmente depois que José Huguenin, autor do livro “Vidas Sertanejas”, me enviou o texto de João Zanetic, “Física e literatura: construindo uma ponte entre as duas culturas”, publicado no livro “História, Ciências e Saúde – Manguinhos”, publicado pela Casa Oswaldo Cruz. 

Tenho algum aprendizado em epistemologia, que é o estudo do conhecimento, adquirido durante o Curso de Pedagogia e o Mestrado em Educação. Por vezes é interessante adentrarmos em temas mais áridos, como esse, porque estão presentes em nossa vida e não nos damos conta disso. Até hoje me pergunto por que a física e a química não são estudadas desde o maternal, dado que estão intrinsicamente presentes no cotidiano. Aliás, estamos mergulhados nas palavras, nos números, nos fenômenos naturais, nas composições e reações químicas existentes nos seres vivos e brutos.

A aproximação entre as ciências e a literatura nos vai permitir melhor conhecer o mundo. O conhecimento científico está fundamentado na reflexão criteriosa e objetiva de fenômenos da natureza. É criteriosa porque se baseia em estudos metódicos de acordo com a área da ciência a que se refere. É objetivo porque é delimitada a um determinado tema a partir de um ponto de vista. Já a literatura pode nascer no conhecimento empírico, ou seja, aquele adquirido na experiência individual, no saber popular e na intuição. Como também ser inspirada pelos conhecimentos oferecidos pelas ciências.

Os romances, os contos, a poesia emergem no imaginário de pessoas que experimentam a aventura humana. A ciência surge da dúvida e da necessidade de dominar, através do conhecimento, os fenômenos naturais e humanos. Somos seres pensantes e precisamos do conhecimento para sobreviver, evoluir, viver com melhor qualidade e conquistar a felicidade. Tanto a literatura, especialmente as obras clássicas, como a ciência são fontes de saber. Uma reflexão moveu João Zanetic a produzir o texto sobre as relações entre a física e a literatura:  as obras clássicas, sejam filosóficas, textos científicos, poesias, contos e romances, foram construídas a partir da extrema sensibilidade dos seus autores que nos permitem estabelecer um diálogo inteligente com o espaço-tempo em que vivemos.

O intercâmbio entre a literatura e as diversas áreas do conhecimento seria de grande utilidade para interpretar o mundo, como também para transformá-lo. “O Capote, de Nicolai Gogol, une a literatura, com a filosofia, a sociologia, economia, a química, a física e tantas outras ciências. A delimitação espaço-tempo, o ponto de partida de todo texto, já traz um princípio físico por excelência.

Quando lemos um clássico da literatura Russa, por exemplo, como “Ana Karênina”, de Liev Tolstói, publicado há mais de cem anos, nos permite fazer uma viagem na dimensão espaço-tempo.

Está no imaginário o grande elo entre ciências e a literatura. Segundo Jacob Bronowski, em sua obra O Olho do Visionário”, A imaginação nos tinge de formas diferentes na ciência e na poesia. Na ciência ela organiza nossa experiência em leis, sobre as quais baseamos nossas experiências futuras. A poesia, porém, é outro modo de conhecimento, em que comungamos com o poeta, penetrando diretamente na sua experiência e na totalidade da experiência humana.”

 Ao se utilizarem de caminhos específicos e diferenciados, a ciência e a literatura nos oferecem conhecimentos universais. Eu tenho a ligeira impressão, como deseja João Zanetic, que, em breve, o mundo seja presenteado com escritores com veias científicas afloradas e cientistas com veias literárias manifestas, uma vez que cientistas e escritores são massivos querentes de conhecimentos porque não lhes bastam o que a vida lhes apresenta e oferece, querem ir além. São insatisfeitos. Procuram motivos que justifiquem a existência humana na Terra, inclusive a deles. Buscam entender as relações entre o humano com o Universo. Buscam ultrapassar os limites do conhecimento.

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Haverá entre a matemática e a literatura um encontro com o divino?

segunda-feira, 06 de fevereiro de 2023

Certa vez, já há alguns bons anos, quando fui à escola Municipal George Pfisterer, no Rio de Janeiro, falar com os alunos sobre um livro meu, conversei com um professor de matemática sobre religião na sala dos professores, que me disse que através da matemática era possível chegar a Deus. Nunca me esqueci dessa afirmação e sempre me pus a refletir a respeito. De todo modo, como educadora e escritora, só posso constatar que tudo o que vivo envolve palavras e números.

Certa vez, já há alguns bons anos, quando fui à escola Municipal George Pfisterer, no Rio de Janeiro, falar com os alunos sobre um livro meu, conversei com um professor de matemática sobre religião na sala dos professores, que me disse que através da matemática era possível chegar a Deus. Nunca me esqueci dessa afirmação e sempre me pus a refletir a respeito. De todo modo, como educadora e escritora, só posso constatar que tudo o que vivo envolve palavras e números. A meu ver, muito aquém do conhecimento das teorias matemáticas, os cálculos fazem parte dos processos mentais, como a força que devemos colocar nos pés para subir uma escada, digamos assim. Até o ato de consultar as horas envolve o pensamento matemático que está intrincado na cognição de tal maneira que nem percebemos as operações que fazemos, às vezes bem complexas. Se observamos um passe a gol, feito por um jogador de futebol durante uma partida, podemos concluir que o sucesso da jogada depende do pensamento matemático. Quantas equações e cálculos geométricos ele precisa fazer para que seu chute coloque a bola nos pés de outro jogador distante alguns metros?

Lemos, no Clube de Leituras Vivências, o livro “Vidas Sertanejas” de José Huguenin, editado pela Outramargem, em 2021. O autor, pessoa de simplicidade e tranquilidade admirável, é doutor em Física e professor universitário em Volta Redonda. Durante a leitura, eu não parava de me perguntar, como um físico pode adentrar na vida do sertanejo? Ser capaz de narrar com sensibilidade e realismo o sofrimento de quem viveu no sertão nos finais do século XIX. Essa pergunta também cutucou várias amigas do Clube que participavam da conversa com o autor no final da leitura do livro.

Ele nasceu em Cantagalo, terra de Euclides da Cunha e, por esse escritor, foi influenciado. Nosso Brasil tem histórias que nos machucam pela crueldade, injustiça e violência sofrida pelos povos do Norte e Nordeste. A sobrevivência do homem, especialmente com relação às mulheres, idosos e as crianças, surge como uma finalidade primeira para conquistar a dignidade do viver.

Mas, então, como um matemático, estudioso das ciências exatas, consegue tornar-se um escritor com a capacidade para entrar nos bosques da ficção e narrar a História do Brasil, para envolver e tocar um leitor, como eu, que não vive e nunca experimentou a severidade da dor causada pela impiedade de outros e pela aridez da natureza dos sertões brasileiros?

Quem escreve contos, romances, poesias penetra sem timidez nesses bosques, ambiente regido pelo imaginário. Por mais verossimilhança que exista com os fatos, o que se escreve jamais será exatamente tal qual o acontecer porque o texto é irreal por excelência, jamais ultrapassará os limites do papel ou da tela do computador. A literatura está no plano abstrato, e os fatos estão na concreticidade da vida.

Será que quem lida com os números tem a mesma sensibilidade de quem lida com palavras? Será que a exatidão das ciências matemáticas finca os pés do escritor na realidade, de modo a fazê-lo imaginar e criar ficção com fidedignidade aos fatos? Ou será que a matemática é a arte dos números, da mesma forma que a literatura é das palavras?

Ou será que o matemático que se torna escritor quer se encontrar com Deus?

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Entre palavra reduzidas, memes e emojis, cadê a Língua Portuguesa?

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A Professora Eunice Nóbrega Portela, doutora em Educação pela Universidade de Brasília, apontou que alguns cientistas têm alertado para o fato de o QI médio da população mundial estar diminuindo desde 1990. Uma das hipóteses apresentadas é o empobrecimento da linguagem, que abrange a busca pela simplicidade das expressões escritas e orais, o abandono de palavras e de figuras de linguagem, como as metáforas, e o emprego reduzido dos tempos e modos verbais.

A Professora Eunice Nóbrega Portela, doutora em Educação pela Universidade de Brasília, apontou que alguns cientistas têm alertado para o fato de o QI médio da população mundial estar diminuindo desde 1990. Uma das hipóteses apresentadas é o empobrecimento da linguagem, que abrange a busca pela simplicidade das expressões escritas e orais, o abandono de palavras e de figuras de linguagem, como as metáforas, e o emprego reduzido dos tempos e modos verbais. Com o empobrecimento da fala, as expressões orais não se baseiam no entendimento dos fatos, mas em expressões mais fortes, como usadas na linguagem grosseira e rude, pela incapacidade de compreensão das circunstâncias e pela dificuldade de interpretação de mensagens. A linguagem empobrecida prejudica as capacidades perceptivas das relações de semelhança e diferença, que ficam centralizadas na pessoa que se expressa. Dessa forma, os níveis reflexivos ficam limitados e as circunstâncias tendem a se manter como estão, dado que os níveis de diálogo não abrangem níveis maiores de negociação. As expressões tendem a ser apaixonadas, subjetivas e imaginativas em detrimento do desenvolvimento dos raciocínios indutivo e dedutivo. Sim senhor, será que atualmente se considera que o domínio da língua materna seja uma dignidade? As comunicações verbal e escrita são capacidades que construímos ao longo da vida, começando pela convivência com o ambiente familiar e social e pelo aprendizado escolar. A cultura imediatista, o excesso de informação e o princípio da rapidez que rege o cotidiano trazem prejuízos ao nosso bem maior: a Língua Portuguesa. É certo que a comunicação é prioridade no quotidiano. Comunica-se de diversas formas; a virtual tem sido contundente e vem substituindo outros modos. A comunicação virtual escrita, para agilizar a troca de mensagens, utiliza-se das palavras mais comuns, inclusive, são reduzidas quando, comumente, suas vogais são retiradas. Os tempos verbais mais complexos, como o subjuntivo, as formas compostas do passado e do futuro estão cada vez menos usadas. As sensações de afeto, de alegria, de dúvida, de negação, dentre tantas outras expressões estão sendo substituídas por emojis, memes e símbolos. Além do que a pontuação tem sido suprimida. Quem usa o ponto e vírgula? Como o pensamento é estruturado através de palavras, os processos cognitivos também acabam sendo simplificados. A criança, desde cedo, aprende a pensar com limitações, dado que a exteriorização do conteúdo não é estimulada a dar amplitude aos processos perceptivos, descritivos e conclusivos. A língua explode através do falar e do escrever como uma porta-voz do pensamento. Pensando, somos capazes de compreender, criticar e, especialmente, construir os significados de tudo o que nos rodeia. Com a viralização dos memes, emojis e símbolos, principalmente entre as crianças e adolescentes, a manifestação de ideias, opiniões e expressões afetivas são substituídas por esses mecanismos, fazendo com que a Língua Portuguesa caia num processo de empobrecimento rápido e crescente. Nós, os brasileiros, habitamos na Língua Portuguesa, a casa que nos faz humanos e ser o que somos. Brasileiros, inclusive. Falando, lendo e ouvindo apreendemos o conhecimento, compartilhamos da cultura e o mundo se aproxima das nossas mãos. “Só a natureza é divina, e ela não é divina... Se falo dela como um ente É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens Que dá personalidade às cousas, E impõe nome às cousas.” Fernando Pessoa, Alberto Caieiro A fluência com a língua amplia nossas possibilidades para interagirmos nas situações. Não ficamos restritos a espaços, nem com problemas guardados nos bolsos. Até encontramos mais facilidade para aprender outras línguas. Além do mais, a nossa língua é romântica... É a língua de Camões, Guimarães Rosa, Monteiro Lobato e de tantos escritores, pessoas que souberam usá-la com genialidade e arte. Ultrapassaram o tempo. Se empobrecemos a modo como usamos a Língua Portuguesa por preguiça, comodidade, impaciência e desconhecimento desse patrimônio linguístico, a Língua continua inteira e viva, porém em desuso. Usá-la em sua plenitude é uma decisão pessoal. Não a usar também o é, entretanto é uma escolha em parcializar o contato com o mundo, diminuir as possibilidades de adquirir conhecimentos que vão engrandecer os modos de olhar e lidar com a vida. A leitura é um grande trunfo ao domínio da língua. Mas será que todos têm acesso ao livro? Os que têm, será que encontram o prazer de ler e ampliar suas possibilidades de interação com o mundo? Ler é uma decisão inteligente.
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O primor de ser amigo

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

“De um amigo ninguém se livra fácil. A amizade, além de contagiosa, é totalmente incurável.”

                                             Vinícius de Moraes

“De um amigo ninguém se livra fácil. A amizade, além de contagiosa, é totalmente incurável.”

                                             Vinícius de Moraes

Na semana passada fui ao aniversário de 80 anos de uma amiga, aquela pessoa de quem gosto escutar dizer meu nome e que tem um modo de ser unicamente especial que tanto me sensibiliza. Lá me encontrei com outras duas antigas amigas. Conversamos, rimos e tiramos fotos. Numa das fotografias nós quatro estávamos abraçadas, expressando o prazer de nos ter guardado vida afora. De repente, uma delas me disse: “não cobramos nada uma das outras, nós nos aceitamos do jeito que somos.” Eu concordei, quase num momento de Aleph, revendo tudo o que vivemos.

Trouxe esse encontro para minha coluna literária porque escrevo sobre aquele momento divino com alma, fazendo da literatura um louvor à amizade. Guardar um amigo é ter simplicidade e delicadeza com que cuidamos dele e de nós. Sim, de nós. Será que quem pouco ou não se ama consegue cultivar amigos? Aquele que os cultua sabe farejar estados de espírito e perceber o outro com plenitude num piscar de olhos. Nada é mais primoroso do que torná-lo importante em nossa vida. Da mesma forma fazê-lo nos gostar como uma pessoa amiga. 

Quando escrevi o livro infantil “Um Cão Cheio de Ideias” contei a história da amizade entre um cachorro com poucos meses de vida, Labareda, e Chama, um coelho-do-mato, que desafiava o filhote e o fazia de bobo todos os dias com sua agilidade e velocidade. Mas houve um incêndio na mata e Labareda o salvou. O coelho-do-mato ficou com a pata ferida e não pode mais correr. Os dois, então, reconstruíram a relação quando o cachorro, solidário, passou a fazer companhia ao coelho, e eles foram buscando outras formas de brincar. Ao escrever a história, fui percebendo os valores contidos no primor, enquanto cuidado, delicadeza e entendimento das limitações do outro.  Labareda não quis brincar com outro coelho, foi descobrindo, dia a dia, o prazer em estar ao lado de Chama debaixo das árvores, sentindo o cheiro da natureza e curtindo a presença do amigo.

Agora, mais uma vez, vejo que a amizade é alimentada pelas atitudes primorosas. Vinícius de Moraes, o eterno mestre do amor, soube construir uma ideia criativa e sutil para defini-la. Depois de mergulhar nas palavras dele, concluo que a amizade é uma afeição que pode ser considerada uma eficiente vitamina existencial; o amigo é um bom ouvinte, médico e parceiro, que não precisa estar diariamente ao nosso lado, basta sabermos que ele está vivendo no mesmo tempo que nós e que, a qualquer momento, podemos lhe dar um alô para saber como está e dizer como estamos. É um trunfo do destino ao nos oferecer uma pessoa de quem espontaneamente gostamos e nos acolhe com o calor do afeto, principalmente quando as lágrimas caem sobre nossos pés. Uma amizade, quando nasce, pulsa em nós como um coração.

No aniversário da dessa minha amiga Glória, tive a sensação da reciprocidade. Um sentimento que anda rareando por aí.  Não sei se posso afirmar isso com veemência, mas os sentimentos estão sendo tocados pelo imediatismo e sobrevoam nossos dias com a velocidade dos supersônicos.

Para terminar, deixo uma afirmação simples e verdadeira de Mário Quintana: “A amizade é um amor que nunca morre.”

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Olha a chuva!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Ora pois, não é que há sempre há motivos para escrever? Que podem nascer nas costas que coçam, no sono que não vem, até no bater do martelo que chega aos ouvidos sem harmonia. Hoje, por me aquietar em casa, por ontem tanto abrir o guarda-chuva, correr para não me molhar e me assustar, vou olhar para a natureza. 

Ora pois, não é que há sempre há motivos para escrever? Que podem nascer nas costas que coçam, no sono que não vem, até no bater do martelo que chega aos ouvidos sem harmonia. Hoje, por me aquietar em casa, por ontem tanto abrir o guarda-chuva, correr para não me molhar e me assustar, vou olhar para a natureza. 

Não repentinamente a vontade de escrever sobre as águas que vêm do alto cresceu em meus pensamentos, tão ávidos de sugestões. Para falar da chuva, que rega a terra e revigora a vida, vou buscar inspiração em Fernando Pessoa, o mestre da literatura, que bem fazia suas ideias escorrerem sobre o papel, através de palavras que nos tocam, tais quais os dias de chuva e de sol.

“Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol./ Ambos existem, cada um como é.” (Poemas Inconjuntos)

A chuva nunca nos pega desprevenidos, avisa com nuvens carregadas, com o barulho dos trovões que tocam como os tambores das orquestras e o brilho dos raios que rasgam os horizontes com energia.

“Cai chuva do céu cinzento/Que não tem razão de ser. /Até meu pensamento/ Tem chuva nele a escorrer.” (Cai Chuva do Céu Cinzento)

Intensa e forte, a água faz uma cortina na minha varanda. É incansável e ruidosa, como se quisesse falar da coragem que tem para sobreviver milhares de anos através de ciclos contínuos. A natureza é inteligente a ponto de fazer com que nos chega de chuva, depois de penetrar no solo, ressurja em nascentes, capaz de refletir, em agitados espelhos, o sol, a lua e a luz artificial. 

A chuva é divina, inspira a arte, o amor, o descanso. Em Friburgo, chove e chove; a vida fica mais lenta. Úmida. Chove devagar, molhando a rua com pingos irreverentes que descem pelo nariz e caem sobre os pés. Sem pedir licença, escorrem pelos sapatos e se misturam a tantos outros em poças de lama, que ficam quietos até evaporarem, subirem encantados para as nuvens. Aos poucos, vão caindo, retornando ao solo. Tudo na mais perfeita rotina, até o tempo envelhecer.

“Sofremos? Os versos pecam. / Mentimos? Os versos falham. / E tudo é chuvas que orvalham/ Folhas caídas que secam.” (Às Vezes Entre a Tormenta)

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A vida brasileira acontece; a arte vai junto!

segunda-feira, 09 de janeiro de 2023

Sim, Senhor!, a vida brasileira acontece, e a arte vai junto. Sempre. Sem limites e pudor. Com criatividade. É elaborada pela força das emoções e externa os sentimentos do artista, que, por sua vez, reflete as manifestações da brasilidade e as pulsões do povo. A literatura vai junto, atrás, ao lado ou entremeando o acontecer, usando palavras para criar histórias, informações, argumentações, registros e crônicas.

Sim, Senhor!, a vida brasileira acontece, e a arte vai junto. Sempre. Sem limites e pudor. Com criatividade. É elaborada pela força das emoções e externa os sentimentos do artista, que, por sua vez, reflete as manifestações da brasilidade e as pulsões do povo. A literatura vai junto, atrás, ao lado ou entremeando o acontecer, usando palavras para criar histórias, informações, argumentações, registros e crônicas.

A arte é inspirada em narrativas reais e imaginadas. Seria ousado arriscar, mas vou fazê-lo por ímpeto: toda a arte emerge da palavra pensada, falada e representada. Assim sendo, se observarmos de modo mais cuidadoso, as expressões artísticas, como a pintura, a fotografia e a escultura, saberemos que revelam histórias, que nascem no imaginário do artista, constituído por sensações e pensamentos, representados por imagens e palavras. 

Esta coluna é iluminada pela exposição “Histórias Brasileiras” realizada no MASP (Museu de Arte Moderna de São Paulo), de 26 de agosto a 30 de outubro. A exposição foi motivada pela comemoração do bicentenário da Independência do Brasil e dos centenários da Semana de Arte Moderna e da morte do escritor Lima Barreto. É um evento cultural que revisa a vida brasileira através de objetos, pinturas, desenhos, esculturas, fotografias, vídeos, livros, jornais, revistas, documentos, bandeiras e mapas.

A História do Brasil é plural, fonte de inspiração abundante e inesgotável para a criação artística. Nada escapa da arte, que tem olhos atentos para os hábitos e costumes, para o cotidiano que abraça diferenças sociais, econômicas e culturais, para a vida urbana, interiorana e sertaneja. Para o esplendor da diversidade natural do Brasil. 

A pintura, a fotografia e a escultura retratam   a vida contextualizada na realidade concreta e totalmente diversificada nas dimensões temporal e espacial. Até mesmo as expressões artísticas abstratas contêm significados que emergem do acontecer de todo ou qualquer modo. Será que as cores e as formas usadas por pintores brasileiros são semelhantes à dos estrangeiros? 

Para o observador a contemplação de um quadro pode lhe aguçar a imaginação. O escritor que se senta à frente de uma fotografia de Sebastião Salgado, por exemplo, pode se deixar penetrar na imagem e lá, absorvido, é capaz de encontrar razões para construir textos em vários estilos literários. 

A arte, mesmo criada em tempos passados, apresenta ideias que podem ser interpretadas e compreendidas em qualquer tempo futuro. Tem atualidade. Na verdade, o tempo para a arte possui um conceito especial. 

Na reportagem apresentada pelo jornal “A Relíquia”, em setembro de 2022, observei que os visitantes da exposição “Histórias Brasileiras” caminhavam pelos corredores, admirando os quadros expostos e tendo a oportunidade de entrar em contato com visões diferentes do nosso povo e da nossa história. 

Será que havia algum escritor com um caderninho de anotações no bolso?

Diante do “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, eu começaria um texto assim: Sob a guarda silenciosa do sol...

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2023 e o Aleph

segunda-feira, 02 de janeiro de 2023

Quando escrevi a coluna sobre os escritores cegos, na qual me referi ao escritor argentino Jorge Luis Borges (1899 – 1986), uma vontade inquieta de conhecer sua obra tomou conta de mim. Busquei o livro de contos, “O Aleph”, considerado uma das maiores obras literárias do Ocidente. Recorrendo a uma literatura fantástica, o livro, publicado em 1949, tem a grandiosidade e a complexidade literária esculpida por um gênio. Com uma cultura universal admirável, Borges está no rol dos autores mais importantes do século XX.

Quando escrevi a coluna sobre os escritores cegos, na qual me referi ao escritor argentino Jorge Luis Borges (1899 – 1986), uma vontade inquieta de conhecer sua obra tomou conta de mim. Busquei o livro de contos, “O Aleph”, considerado uma das maiores obras literárias do Ocidente. Recorrendo a uma literatura fantástica, o livro, publicado em 1949, tem a grandiosidade e a complexidade literária esculpida por um gênio. Com uma cultura universal admirável, Borges está no rol dos autores mais importantes do século XX.

Ele adentra no âmago dos personagens e dos fatos de modo a fazer com que o leitor perceba e sinta a história, cheia de peripécias, contrastes e embates, com plenitude. Com maestria, retrata o movimento dos fatos e dos personagens, motivando a reflexão sobre diferentes pontos de vista, na medida em que realça as incertezas, as incongruências, os embates, os ciclos da vida e da natureza em suas narrativas.

Para compreender os textos, tive que relê-los algumas vezes. Quando conseguia interpretá-los, eu me maravilhava, preenchia os hiatos da minha vida com as ideias expostas, mesmo que extravagantes, e abria outras fendas dado que suas ideias tinham o poder de enfraquecer algumas convicções. Cada frase me oferecia um campo aberto para a análise de questões importantes, que todos nós precisamos fazer para ter ciência das coisas. Quem é o herói? Quem é o traidor? Será o herói o maior traidor da história?

Diante de Borges, meu olhar é inocente, apequenado e infantil!

Em o conto “O Aleph”, o personagem tem o privilégio de se defrontar com o espaço cósmico, um lugar onde estão todos os lugares, vistos de todos os ângulos, através de um ponto de dois ou três centímetros, situado no 19º. degrau de uma escada, no porão de uma casa velha. O espaço, como a lâmina do espelho, mostrava infinitas coisas e que lhe permitia ver claramente todos os pontos do universo, como o mar, as multidões, a rua Soles com as mesmas lajotas de 30 anos atrás, um câncer no peito, cavalos, jardins-de-inverno, todas as formigas, cartas obscenas, as vísceras e o rosto do personagem. E muito mais. 

Naquele instante, clarividente e imaginário, quase louco, o personagem tomava conhecimento do mundo exterior e interior por inteiro. Um momento implacável que lhe permitiu o mais profundo encontro com a natureza de todas as coisas. Inclusive com a dele próprio.

Quem pode ver o Aleph?

Estará numa pedra? No teto? Na tampa de uma caneta?

Será um privilégio, uma aptidão ou uma vontade de encontrar o Aleph e adentrá-lo sem cerimônia. Só quem está vivo pode vivenciar tal momento sublime e de interação plena, de reconstrução da identidade individual, tornando-a integrada e integral, a parte mais e menos significativa de um todo maior. 

Em 2023, a pessoa, depois de se deparar com o Aleph, quem será e como viverá o ano?

“Quero acrescentar duas observações: uma, sobre a natureza do Aleph; outra sobre o nome dele. Como se sabe, essa é a primeira letra do alfabeto da língua sagrada. Sua aplicação ao centro da minha história não parece casual. Para a cabala, a letra significa o Em Soph, a iluminada e pura divindade; também se disse que tem a forma de um homem que aponta para o céu e para a terra, indicando que o mundo inferior é espelho e o mapa do superior; para Mengenlehre, é o símbolo dos números transfinitos, em que o todo não é maior do que uma das partes.” (Jorge Luis Borges)

 

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A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.

É tempo de finalizar o ano

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Aqui vou colocar meu afeto nas linhas desta coluna como forma de abraçar os leitores do jornal A Voz da Serra e todos aqueles que trabalham para produzi-lo. Há palavras que guardamos para expressar esse momento de finalização, de um tempo em que vivemos com intensidade. O ano de 2022 foi especial tanto quanto os que já vivemos, com desafios, conquistas, perdas e ganhos. A grande vitória desses dias finais é que podemos estar aqui para verbalizar nossos sentimentos e desejos.

Aqui vou colocar meu afeto nas linhas desta coluna como forma de abraçar os leitores do jornal A Voz da Serra e todos aqueles que trabalham para produzi-lo. Há palavras que guardamos para expressar esse momento de finalização, de um tempo em que vivemos com intensidade. O ano de 2022 foi especial tanto quanto os que já vivemos, com desafios, conquistas, perdas e ganhos. A grande vitória desses dias finais é que podemos estar aqui para verbalizar nossos sentimentos e desejos. Penso que a melhor vontade que agora posso ter é, apenas, querer estar no final de 2023, escrevendo uma mensagem para 2024 e reconhecendo que fiz o que me foi possível realizar. O grande trunfo que poderemos esperar dos dias que estão por vir são rotinas movimentadas, construídas com inteligência e vigor. 

Estamos nos trilhos da existência, que, através do sentir, pensar e fazer, vão nos transformando em pessoas melhores. Pelo menos é o que esperamos para nós, para quem nos rodeia e para os demais.

Somos resultantes das forças do universo, da divindade da vida e do desejo individual, enquanto seiva que corre em nossas veias, nas águas dos rios e oceanos, na terra que nos sustenta. É preciso prosseguir para viver o dia seguinte, admirar os nasceres e pores do sol. É preciso saber que vamos recomeçar todos os dias preparados para ler as entrelinhas dos fatos e saber como agir. 

Viver é desejar e realizar, enquanto dinâmica constante da força que nos energiza. É ter coragem para agradecer, dignidade para respeitar o que nos é diferente, amar o próximo sem pieguismos. É ter coragem para perdoar, inclusive e principalmente, a nós mesmos.

Que 2023 seja um tempo a ser vivido com criatividade e genuinidade.

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