É uma fria!

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Já comemorou cinquenta vezes o aniversário de falecimento

Não sei se você sabe o que é criogenia, ou mesmo se está interessado no assunto. Pode ser até que você já tenha feito uma encomenda ou, melhor dizendo, que você já tenha “se encomendado”. Em qualquer dos casos, vou passar algumas informações a respeito que poderão ser úteis, se não a você, talvez a algum outro leitor que sonhe com a imortalidade, não da alma e na eternidade, mas do próprio corpo e aqui na Terra mesmo.

A criogenia é, se assim se pode dizer, uma ciência, mas há quem ache que não passa de charlatanice ou, na melhor das hipóteses, de uma ilusão. Porque bem espantoso é o objetivo dessa pseudociência: conservar corpos humanos a uma temperatura tão baixa (- 1960. C) que ele não se desfaça com o tempo. Naturalmente, é necessário que o indivíduo, antes de mergulhar nessa friagem, esteja devidamente morto e que tenha manifestado em vida seu desejo de virar picolé.

Também é necessário que disponha de uma boa reserva de dólares, porque ficar dormindo num dos laboratórios que prestam esse serviço custa, nos Estados Unidos, duzentos mil dólares, para o corpo inteiro, e oitenta mil dólares somente para a cabeça ─ caso o freguês considere que já não vale mais a pena investir no corpo e queira preservar somente sua parte pensante, com tudo o que nela acumulou enquanto vivia. Na Rússia o serviço completo pode ser feito por modestos oitenta mil dólares, mas, como diria algum ucraniano, vá lá confiar na Rússia. Com um pequeno acréscimo é possível levar junto seu cão ou gato de estimação. Ninguém ainda manifestou o desejo de que venham a renascer também o patrão, o cunhado ou a sogra.

Se alguém acha que isso é uma loucura, fique sabendo que já existem 350 corpos congelados, à espera do dia feliz em que a medicina tenha encontrado um jeito de ressuscitar a matéria e trazer seu dono novamente à vida. Um desses terráqueos esperançosos já descansa agasalhado no gelo há cinco décadas. Ou seja, já comemorou cinquenta vezes o aniversário de falecimento.

As dúvidas ainda existentes não são apenas quanto ao retorno do corpo para o mundo dos vivos, mas também como será esse camarada que vier a ocupar novamente um lugar no planeta, depois de ter estado sabe-se lá onde, dormindo à espera da palavra mágica que o traga de volta. Será que ele reconheceria o mundo e as pessoas ou, mais grave ainda, será que ele reconheceria a si mesmo? Por outro lado, já imaginou se um dia for possível dar outra chance a um bilhão e duzentos milhões de chineses e a outro tanto de indianos? Vai faltar espaço para a entrada de gente nova.

         Quanto a mim, prefiro deixar a questão da morte nas mãos de Deus que, ao contrário dos criogenistas, sabe o que faz. E depois, é como escreveu o poeta Paulo Leminski:

“Vida e morte/ amor e dúvida/ dor e sorte/ quem for louco/ que volte.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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