Milagre policial

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Para a polícia, esse silêncio em si mesmo já era uma confissão de culpa

Não podemos deixar de admirar a eficiência da nossa polícia e, se dos muitos crimes cometidos apenas uns poucos chegam a ser resolvidos, isso se deve à falta de colaboração dos criminosos, que têm o mau hábito de não deixar provas ou ao menos indícios que facilitem os trabalhos de investigação. Além do mais, quando questionados, negam com a cara mais limpa: “Que isso, doutor, nesse dia eu tava pescando em alto mar, o Zé do Anzol e minha mãe são testemunhas”. Enfim, ninguém tem a gentileza de deixar um recibo quando, por exemplo, saca dinheiro numa agência bancária com a apresentação não de um cheque, mas de um fuzil ou de outros artefatos semelhantes, que estes sim estão em grande evidência na vida e na morte do cidadão brasileiro.

  Além do mais, os bandidos têm uma atividade muito diversificada, atuando não só no sistema bancário, mas também nos transportes de mercadorias, nos golpes financeiros, no confisco de celulares, no contrabando de cigarros, na falsificação de remédios e até modestamente fazendo saques no caixa de lojas e restaurante. Mesmo aqueles bandidos contra os quais existe um amontoado de evidências não se pode fazer muita coisa, porque nunca lhes faltam álibis, sem falar que há também aspectos políticos, econômicos, sociais e outras relevantes razões que impedem uma boa e isenta investigação policial.

Mas recentemente tivemos uma mostra de como a polícia às vezes consegue agir com rapidez e eficiência. Se bem que, no presente caso, os homens da lei tenham contado com a ajuda de populares. Explico: enquanto as autoridades não chegavam, a população tratou de ir dando uns chutes, empurrões e sopapos no suspeito, que, aliás, apanhou em silêncio. Sim, suspeito de ter roubado o celular de uma dessas pessoas que andam pelas calçadas distraídas, mais preocupadas em ouvir, falar e digitar do que em olhar em volta para ver se alguém está se aproximando com intenções duvidosas. Com a chegada da polícia, o homem foi entregue à Justiça, ou à justiça, e levado para a delegacia.

Num instante, lá estavam parentes, vizinhos, amigos e curiosos a chorar e a gritar que o rapaz era inocente. A mãe, em prantos, jurou que o filho era incapaz de fazer mal a uma humilde mosca, de pisar numa barata tonta ou tirar o doce que uma formiga estivesse laboriosamente carregando. O acusado tinha, diziam todos, um coração infantil, até porque, era dotado de acentuado nível de limitação intelectual. Ou seja, não era mais do que uma cabeça de criança num corpo de adulto.

O delegado, no entanto, matou a conversa apresentando o relato do interrogatório, segundo o qual o acusado se recusara a dar esclarecimentos e apenas se manifestara para alegar seu direito constitucional de ficar calado. É o exemplo que nos dão os poderosos da República quando apanhados enfiando no próprio bolso alguns trocados do dinheiro público. Sendo a justiça brasileira igual para todos, embora nem todos sejam igualmente iguais, também o suspeito de roubar um celular pôde valer-se do direito constitucional de ficar calado. Para a polícia, esse silêncio em si mesmo já era uma confissão de culpa.

O que prejudicou um pouco a credibilidade do documento assinado e apresentado pela egrégia autoridade foi a comprovação posterior de que o suposto autor do roubo, além de não ter a cabeça boa, era surdo-mudo. Nessa condição, convenhamos, teria um pouco de dificuldade para se expressar e de invocar seu direito constitucional de permanecer calado, até porque desde que nascera não tinha feito outra coisa na vida senão ficar em silêncio.

Que o roubo tenha acontecido está ainda por ser provado. Mas não há dúvida de que o surdo-mudo ouviu e falou. Não duvidemos, pois milagres ainda mais extraordinários têm acontecido em muitas delegacias brasileiras.

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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