Um homem bonito

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Nascido em 1995 e falecido em 2024, com 100 anos de idade

Sammy Basso morreu e, para falar a verdade, foi justamente por causa de sua morte que eu fiquei sabendo que ele tinha existido. É estranho como, sendo a coisa mais previsível da vida, a morte sempre nos pega de surpresa. Ou quase sempre. Basso é uma das raras exceções. Já nasceu com prazo bem limitado de validade: treze anos. Viveu 28 e, apesar de tudo, viveu feliz e assim o declarou numa carta que deixou para ser lida no seu funeral.

O Basso era portador de uma doença cujo nome é por si mesmo de meter medo: progéria. O corpo humano não foi feito para durar muito. As peças vão falhando à medida que funcionam, até que um dia dizem “chega” e vão descansar da humana lida. E a tal progéria faz com que o corpo envelheça ainda mais aceleradamente. É como se um carro fabricado para andar a 100 quilômetros disparasse a mil, dois mil por hora.

Foi o que aconteceu com esse italiano nascido em 1995 e falecido em 2024, com cem anos de idade. Era especialmente feio e, sem querer ser cruel, ao ver sua foto imediatamente me lembrei do ET do filme de Spielberg. Basso era ainda mais estranho. Careca, orelhudo e narigudo, tinha o pescoço comprido e fino. Usava óculos e seu sorriso mostrava dentes maiores que a boca.

Nisso está a grandeza desse homem tão jovem e ao mesmo tempo tão consumido pelo tempo. Ele sorria! E, na carta de despedida, escreveu: “Quero que saibam, antes de mais nada, que vivi a minha vida feliz”. Além dessa frase, muitas outras revelam um ser humano tranquilo, generoso, que soube conviver com a adversidade. Da doença, ele disse que tinha sido “apenas uma parte muito pequena” de sua vida, embora admitisse que ela tinha influenciado o seu cotidiano e as suas escolhas. Um trecho desse comovente adeus merece ser transcrito: “Certamente muitos dirão que perdi a minha batalha contra a doença. Não ouçam! Nunca houve uma batalha a travar, havia apenas uma vida a abraçar tal como era, com as suas dificuldades, mas ainda assim maravilhosa, ainda assim fantástica, nem recompensa nem condenação, simplesmente uma dádiva que me foi dada por Deus"

Especialmente nestes tempos em que estamos vivendo, a beleza física parece ser para muita gente a mais alta preocupação, a maior das prioridades, o mais definitivo sentido da existência. Mais facilidade encontra um safado bonito do que um honrado feio. Mas a mosca que pousa no caixão não se importa se quem está ali deitado é feio ou bonito, e a terra ou o fogo a ambos consomem com igual indiferença.

Aos que iriam dele se despedir, Basso deixou estas palavras: “Quero estar convosco neste momento e dizer-vos que é normal. Para aqueles que vão chorar, saibam que é normal estar triste. Para os que querem festejar, saibam que é normal festejar. Chorem e festejem, façam-no em minha honra".

Em sua feiura, quantas lições de vida nos deixou este homem tão bonito. 

Publicidade
TAGS:

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.