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O corpo feminino é um diamante a ser lapidado dia a dia

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Assisti, semana passada, a um filme na Netflix que me motivou a trazer aqui algumas reflexões sobre a mulher. Considerei trazê-lo posto que o roteiro é considerado um estilo literário. Além de elaborado por um escritor que visualiza imagens através de suas ideias e palavras. Trata-se de um texto que antecede a produção de um filme, tendo a finalidade de contar uma história, de organizar e estruturar as cenas através dos diálogos e da ação dos personagens.

Assisti, semana passada, a um filme na Netflix que me motivou a trazer aqui algumas reflexões sobre a mulher. Considerei trazê-lo posto que o roteiro é considerado um estilo literário. Além de elaborado por um escritor que visualiza imagens através de suas ideias e palavras. Trata-se de um texto que antecede a produção de um filme, tendo a finalidade de contar uma história, de organizar e estruturar as cenas através dos diálogos e da ação dos personagens. Tudo no roteiro está voltado para a produção do filme na medida em que o escritor oferece subsídios aos cenógrafos, figurinistas, aderecistas, iluminadores, sonoplastas e outros envolvidos no processo.

“O ano em que comecei a vibrar por mim”, lançado em 2022, é uma comédia romântica sueca, criada e dirigida por uma mulher, Érika Wasserman, que contou com a colaboração de Christin Magdu e Bahar Pars, também mulheres.

A maneira sutil e bem-humorada com que o filme aborda a vida da mulher me fez ser abraçada pela história. Senti vontade de contestar aquele modo de ser da mulher que vai se envolvendo nas teias da vida afetiva, com seus filhos, familiares, parceiros e trabalho, e acaba se vendo puxada por redemoinhos contínuos de situações e esquecendo de si. Apesar de todas as conquistas que a mulher fez, ainda há hiatos nas relações que ela estabelece consigo.

O conhecer-se é um processo de conquista da inteireza pessoal, que acontece ao longo da vida. Cada fase que vivemos nos deparamos com tantas questões; a mais significativa é o corpo. O espelho, muitas vezes, tem um olhar severo e não permite que nos aceitemos como somos. Não deixa que sintamos a sensibilidade de cada parte do nosso corpo. Na essência, somos, acima de sentimentos, espiritualidade, racionalidade, um corpo feminino, que abriga nossos órgãos, ossos e veias cheias de sangue. Sem ele não existiríamos. É a nossa casa primeira. A única verdadeira habitação que nos acolhe, acalenta e nos dá prazer.

Sendo a nossa maior riqueza e defesa, não damos a devida importância a ele. Qual a mulher que se preocupa com seu dedo mindinho. Ai dela se machucá-lo!

A mulher tem de ser inteligente, independente, exuberante e sensual. Porém tudo o que somos depende do corpo que temos. Precisamos cuidar dele, aprender a descobrir, em cada fase da vida, como ele pode estar bem e como é capaz de nos ser prazeroso. Ah, como o deleite saudável regenera nossas células!

Fatores sociais, econômicos, culturais e religiosos contribuem para que omitamos nossos corpos de nós. Tantas razões, alheias a nós, vindas do mundo exterior, dificultam o autoconhecimento corporal, tornando turva a autopercepção.

Temos cinco sentidos! Podemos usar todos para conhecer nossa estrutura corporal e saber o que ela precisa e o que pode nos disponibilizar. E, oferece-nos tanto! Nossos olhos, ouvidos, língua, nariz e pele têm potenciais que não conhecemos. O que podemos alcançar com nossos braços e pernas, mãos e pés? Como pode melhor nos satisfazer a sensibilidade das nossas partes íntimas? Nosso corpo nos pertence e nos é privativo. É um diamante a ser lapidado dia a dia.

E tem voz! Ele nos fala e sinaliza do que precisamos fazer para cuidar dele, valorizá-lo como ponto de partida da nossa sabedoria maior: eu sou. Não podemos nos perceber com vendas nos olhos e tampão de ouvidos. Precisamos nos apaixonar e amarmos como seres mais especiais que conhecemos. Somos, para nós, a pessoa com quem temos, ao mesmo tempo, a maior intimidade e a maior cerimônia.

De quem precisamos para nos conhecer, escutar nossos sons, cheiros, cores? Observar nossas imagens, imaginadas e refletidas? Somente nós. Exclusivamente nós e unicamente nós podemos fazê-lo.

O autoconhecimento é decorrente da vontade de querer saber ser mulher! 

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Poesia da madrugada

terça-feira, 03 de setembro de 2024

Noite dessas, céu escuro de inverno, tempo frio, acordei de madrugada com uma poesia nos meus ouvidos, ora no direito, ora no esquerdo. Poesia!? Nunca a escrevo porque minhas ideias vêm de todos os jeitos para a prosa, porém nunca em estilo poético. Naquela noite, se trazida por um anjo, se emergiu dos meandros do inconsciente ou se resolveu anarquizar meus pensamentos, a poesia — teimosa — veio me acordar, exatamente, naquela hora em que as energias divinas vêm pelo mundo. Para sossegá-lo ou não.

Ei-la!

Posto que

Noite dessas, céu escuro de inverno, tempo frio, acordei de madrugada com uma poesia nos meus ouvidos, ora no direito, ora no esquerdo. Poesia!? Nunca a escrevo porque minhas ideias vêm de todos os jeitos para a prosa, porém nunca em estilo poético. Naquela noite, se trazida por um anjo, se emergiu dos meandros do inconsciente ou se resolveu anarquizar meus pensamentos, a poesia — teimosa — veio me acordar, exatamente, naquela hora em que as energias divinas vêm pelo mundo. Para sossegá-lo ou não.

Ei-la!

Posto que

A minha poesia começa com palavras calmas—

Conversam à frente dos meus olhos

Falam do tempo em que sempre estou

Sim, do aqui e do agora!

 Das dores que flutuam nos meus sonhos.

Ah, estes meus versos não trazem serenas verdades,

me fazem levantar e caminhar

Sim! Movimentar meus braços e pernas.

Com passos pequenos, tropeço, tateio e esbarro nos móveis

Tudo escuro. Silêncio.

Desperto. Recomeço. Sinto e penso.

Escuto a noite sussurrar:

“Mesmo fazendo parte da loucura de todos,

ainda me permito ser absolutamente eu”.

 

Fiquei espantada por arriscar, justo aqui, na coluna deste jornal, um gesto solitário, contudo literário. Literatura é assim. Passei dois dias revendo a poesia que nasceu à toa, cheia de viço.  

Gosto da conjunção posto que. A conjunção conecta orações; é um elo.  Eu me sinto assim na vida, no meio de tudo e de todos. Como posto que é uma conjunção que concede ou explica, encontro nessa expressão poética um modo de gritar para mim: resguarde-se!

A vida está enlouquecendo, até os polos do Planeta Terra estão mudando de posição e fazendo um auê na natureza! E, aí emerge das minhas entranhas um “Posto que”. Que me belisca. Que me chama a atenção porque, somente eu, com minha totalidade, saberei lidar com “isso tudo”.

Além do mais, vou dizer: volta e meia encontro nas palavras mestras de Fernando Pessoa um “posto que”. Nunca perdido no meio da madrugada gelada.

Salve!

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O escritor e a suspensão da descrença

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Sim, senhor!, os escritores são aventureiros nos bosques feitos de ideias e palavras. Alice caiu num buraco, chegou ao fantástico País das Maravilhas e fez com que emergisse de Lewis Carroll a mais pura criatividade. Quem lê e aprecia a obra literária de qualidade tem a sensação de viver a realidade ficcional de forma parecida, não vou dizer semelhante, da que vive na realidade concreta na qual está inserido.

Sim, senhor!, os escritores são aventureiros nos bosques feitos de ideias e palavras. Alice caiu num buraco, chegou ao fantástico País das Maravilhas e fez com que emergisse de Lewis Carroll a mais pura criatividade. Quem lê e aprecia a obra literária de qualidade tem a sensação de viver a realidade ficcional de forma parecida, não vou dizer semelhante, da que vive na realidade concreta na qual está inserido. E aí está o grande desafio enfrentado pelo escritor: construir um texto ficcional de modo que o leitor não se sinta ultrajado de pensar que a leitura não ultrapassa os meandros da imaginação.

A literatura tem a expertise que deve ser considerada quando alguém decide se tornar escritor de ficção. Escrever não é magia. É trabalho sobre trabalho. É um processo de criatividade sério e responsável. Assim do nada, repentinamente, as ideias vão chegando, embaralhadas, tomando corpo no texto através de trilhas criativas, enfrentando o mais terrível inimigo invisível, que está esplendidamente deitado na página em branco, escondido nos espaços entre as palavras e linhas. Aquela pessoa que se quer fazer escritor, depois de avançar em bosques tortuosos, beber águas frescas e sofrer ataques de pouquidade imaginativa, consegue vislumbrar a arte literária, a beleza das palavras e a profundidade das ideias, enquanto expressão do seu pensamento imaginativo. Criar uma obra literária consistente, capaz de ser lida em qualquer tempo e lugar.

Escrever é imaginar com inteligência, é transpor para o papel e revisar, revisar e revisar. É cuidar da beleza das frases, da construção de um texto instigante e inédito. É pensar no leitor, naquele ser que vai perceber o escritor através dos personagens, penetrar nos âmbitos de sua alma como um convidado especial. É uma pessoa responsável pelas ideias que vai plantar no leitor, aquele que, num ato solitário, abandona os afazeres quotidianos, toma seu texto para se entreter. Para simplesmente ler e degustar uma realidade feita de palavras, pontos e vírgulas, totalmente irreal e abstrata.

A suspensão de descrença, de descrédito ou incredulidade refere-se à vontade do leitor ou espectador de aceitar como verdadeiras as premissas de um trabalho de ficção, mesmo que elas sejam fantásticas ou impossíveis. É a suspensão do julgamento em troca da premissa de entretenimento. Ao entrar nos bosques da ficção, o escritor precisa ter a ciência de que vai escrever uma fantasia verossímil. E o heterônimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares, pode ter lançado os princípios da ficção quando escreveu no “Livro do desassossego” “Nunca sabemos quando somos sinceros. Talvez nunca o sejamos hoje, amanhã podemos sê-lo por coisa contrária.” Eis, então, o terrível desafio que o escritor enfrenta, ser fiel à mais verdadeira mentira, fazendo o outro acreditar que o texto retrata o acontecer e que os personagens são reais. Precisa fazê-lo bem: com capacidade de comunicação e sutileza, com serenidade e coerência, sabendo ser sedutor para entreter e manter o leitor ali, mergulhado no texto que ele construiu.

Para finalizar, deixo o poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, que expressa o que eu quis dizer em todas as linhas desta crônica.

O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

 

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que ele não tem.

 

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.    

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Salve os cachorros! Serão anjos?

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Volta e meia reorganizo minhas estantes, três compridas prateleiras que vão de um lado a outro da parede, onde misturo livros, pastas, retratos e objetos de recordação. Mexendo aqui e ali, mudando um livro e outro de lugar, um caiu em minhas mãos, “Os colegas”, de Lygia Bojunga, obra ganhadora do Concurso de Literatura Infantil do Instituto Nacional do Livro, em 1971. Faz tempo que li esse livro da Lygia e adorei. “Os colegas” conta a história de um grupo de cães e outros bichos, como um coelho, que vivia na rua.

Volta e meia reorganizo minhas estantes, três compridas prateleiras que vão de um lado a outro da parede, onde misturo livros, pastas, retratos e objetos de recordação. Mexendo aqui e ali, mudando um livro e outro de lugar, um caiu em minhas mãos, “Os colegas”, de Lygia Bojunga, obra ganhadora do Concurso de Literatura Infantil do Instituto Nacional do Livro, em 1971. Faz tempo que li esse livro da Lygia e adorei. “Os colegas” conta a história de um grupo de cães e outros bichos, como um coelho, que vivia na rua. É um texto delicioso de ler, que aborda a amizade, a solidariedade e a felicidade. Para ser sincera, gosto de tudo o que se refere a animais, principalmente aos cães. Também, não é para menos, passei a vida inteira acompanhada por eles.

Quando a Vênus, minha cachorra com a qual estabeleci uma relação de amor profundo, faleceu, ganhei de presente de uma vizinha, também amante de cães, “Angel Dogs”, escrito por Allen e Linda Anderson, que mostra que os cachorros não são apenas amigos, possuem uma função espiritual para com seus donos. E, da mesma forma, nós por eles. Depois comprei “Todos os animais merecem o céu”, escrito pelo veterinário Marcel Benedeti, em que reúne histórias relacionadas à vida espiritual dos animais. 

Li os livros e tirei algumas conclusões. Todos os cachorros que tive vieram em épocas especiais da minha vida. Quando nasci, minha mãe tinha uma cachorrinha. Um dia, passeando com meu avô, ela se soltou da correia, foi atropelada e partiu. Como meu pai havia falecido tão logo nasci, a cachorrinha veio para acompanhar mamãe e a todos da família. Quando a família já estava superando a perda, ela cumpriu suas funções e retornou.    

A Vênus quando esteve conosco participou de momentos difíceis, como a partida do meu filho, e situações de doença grave, como o infarto do meu marido. Depois que a nossa vida estabilizou, chegou a hora da Vênus partir. Antes dela seguir a vida em outro plano, veio a Hyra, uma rottweiler meiga, que nos deu aconchego, preenchendo os espaços que ficaram vazios na casa.

Hoje temos duas cachorras de rua que adotamos. Acredito que, agora, temos uma função importante na vida delas. Aliás, todos os cachorros que tivemos evoluíram, chegando, a meu ver, a serem até humanizados.

Neste momento, a lembrança de São Francisco de Assis se aproxima de mim. Ao acaso, abro uma página de um dos livros e uma frase grita aos meus olhos: “São Francisco amou os animais como os nossos irmãos.”  

O friburguense demonstra estima pelos cachorros. Inclusive a pedra denominada Cão Sentado é um dos símbolos da cidade. No bairro onde moro, a Fazenda Bela Vista, deve ter mais cachorros do que moradores, que se preocupam com o bem-estar dos animais. Infelizmente, alguns são abandonados aqui, mas nenhum deles fica à própria sorte porque são acolhidos pelos moradores, tal qual fiz com as minhas.

Certa vez uma pessoa que trabalha em uma loja na Rua Monte Líbano, no Centro, me disse que há cachorros que percorrem um longo trajeto para se alimentar com a ração colocada na calçada pelas pessoas que trabalham nas lojas. Eles vêm com andar certeiro e donos de si. É emocionante vê-los.

Os cachorros, além de fazerem parte da nossa cultura, são anjos que nos acompanham. Minha mãe disse, certa vez, que latido de cachorro e voz de criança dão um toque especial a uma casa. Cães e gatos oferecem aos seus donos afeto incondicional, sem falar na relação que estabelecem com as crianças, tornando-se delas verdadeiros companheiros. O olhar do cão para seus donos é profundo, sincero e terno. Tenho a impressão de que as minhas cachorras me agradecem sempre que olham para mim.

Estou relendo os livros e concluindo que os cães possuem uma sabedoria que nós humanos não temos. Eles sabem dos nossos sentimentos, são intuitivos e nos ajudam a ser pessoas melhores.

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Tempo de abraçar os pais

terça-feira, 13 de agosto de 2024

No último domingo, 11, comemoramos o Dia dos Pais, data sensível para pais e filhos posto que a experiência afetiva é única. O mês de agosto é um tempo propício para cuidar dessa relação, tendo em vista a avaliação sobre a troca de afetos, reflexões a respeito das decisões que foram tomadas ou não e apaziguamentos. É um tempo de buscar encontros e superações, de resgatar momentos desejados, mas nunca vividos.

No último domingo, 11, comemoramos o Dia dos Pais, data sensível para pais e filhos posto que a experiência afetiva é única. O mês de agosto é um tempo propício para cuidar dessa relação, tendo em vista a avaliação sobre a troca de afetos, reflexões a respeito das decisões que foram tomadas ou não e apaziguamentos. É um tempo de buscar encontros e superações, de resgatar momentos desejados, mas nunca vividos.

Gosto de ver pais e filhos de mãos dadas andando na rua, compartilhando o afeto; o cuidado. De certo, nessa relação acontecem momentos inesquecíveis, que podem influenciá-los ao longo da vida.

A presença é essencial para ambos na medida em que as atitudes, as palavras e os modos de olhar de um para o outro sinalizam para novas maneiras de sentir, pensar e agir. Entre eles há um intenso processo de retroalimentação; a cada momento ambos vão descobrindo outros sentidos de ser pai e de ser filho. Não é uma relação estática, mas em constante processo de transformação.

O pai não é necessariamente o genitor, mas aquele que ocupa as funções paternas. Professores, avós, tios ou amigos também podem vestir os gestos e usar as palavras daquele homem que acolhe um outro ser mais jovem, que está chegando ao mundo e precisa de modelos e acolhimentos.

Ser pai é aprender a sentir e a expressar o amor paterno que é diferente de qualquer outro tipo de sentimento, como a amizade entre pessoas da mesma geração. Pais e filhos são amigos, sem dúvida, porém ser pai significa cuidar do filho para introduzi-lo na vida. Educar com afeto e responsabilidade não é simples, mas uma tarefa desafiadora, talvez uma das mais laboriosas e difíceis que um homem possa vir a ter.

Pais e filhos constroem uma história através da convivência. O homem depois que é pai não é mais o mesmo; experimenta perdas e ganhos, além de ver-se diante de atribuições a serem enfrentadas. Além do mais, assumir o papel de pai é um modo de estar na vida, cujas funções vão sendo exercidas ao fazer-se presente nas múltiplas etapas do processo de adultez vivenciado pelo filho. A adultez ocorre ao longo dos anos em que o sujeito vai adquirindo responsabilidades, referenciais de existencialidade, isto é, decorrentes das experiências e processos de entendimento nas diferentes etapas do viver. 

Não há receitas nem manuais para ser pai. O pai cultiva o filho com amor através da vida em comum, dos projetos compartilhados, dos valores e dignidade para viver cada dia do seu destino. É louvável que o pai considere que sua figura, a paterna, brilha nos processos perceptivos do filho.

  Que os pais recebam as melhores energias do universo!

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Beethoven, o mestre das superações

terça-feira, 06 de agosto de 2024

        A literatura mergulha na vida, e a vida abraça a literatura. É como se houvesse um bom intercâmbio entre uma instância abstrata que reflete a vida como um espelho e a realidade concreta da existência, enquanto palco de encenações e inspirações para um escritor atento e um vivente maduro.

        A literatura mergulha na vida, e a vida abraça a literatura. É como se houvesse um bom intercâmbio entre uma instância abstrata que reflete a vida como um espelho e a realidade concreta da existência, enquanto palco de encenações e inspirações para um escritor atento e um vivente maduro.

        “A pequena coreografia do adeus” (*), de Aline Bei, obra literária publicada pela Companhia das Letras, me tocou lá naquele fundo da gente que é macio e se modifica quando recebe um toque. Somos feitos de partes duras e moles que vão se entremeando de acordo com o que se vive. Nas partes duras estão os verdadeiros guerreiros, dotados de forças e espadas, que enfrentam guerras e batalhas. Enquanto as outras partes vão amolecendo, quase virando líquido, quando entram em contato com sensíveis afetos.

        Júlia, a personagem, recebe de sua mãe os piores maus-tratos desde os mais novos anos. E de seu pai, uma indiferença comprida que se estica pelos dias afora da sua infância. A autora realça na escrita, quer seja nas palavras, quer na formatação do texto, as emoções de Júlia. Vamos lendo com frases encurtadas e cortadas, letras em estilos e tamanhos diferentes, páginas escritas ou em branco. Os parágrafos são longos e ou curtos, feitos de uma só frase ou palavra. Ela escreve com divina criatividade de modo que o leitor se emociona junto com a autora, numa cadência literária definida e inteligente.

        A história acontece assim, encostando nas partes duras e moles de Júlia, que vai se acostumando a superar as tragédias diárias. E, aí, a cada página, corro para a janela da vida e começo a ver, como Aline Bei, as durezas com que as pessoas se deparam no dia a dia. O que me faz concluir que existe no fundo dos nossos poços o amor por nós que nos faz cantarolar a “Ave-Maria” de Schubert, tal qual eu fazia encostada no ombro do meu avô, às 18 horas, e escutar as poesias de Vinícius de Moraes através das suas músicas. É aconselhável cantar e recitar sempre que precisamos superar circunstâncias que nos machucam.

        Certa vez, assisti à palestra da médica e budista, Nazareth Solino, que publicou a crônica “O rabo da lagartixa” em 2006, contida no livro do mesmo título. Ela, com bom humor, fez uma exposição sobre o rabo do réptil e afirmou, com ênfase: quando decepado, cresce novamente com vigor. A seguir, ela completou que a maior luta que todos nós travamos é ao acordar: abrir os olhos, levantar da cama e jogar água no rosto para despertar com disposição.

        Pouco tempo depois, soube que Nazareth estava lutando com bravura contra um câncer, vindo a falecer. Naquela palestra ela estava altiva, animada e disposta a viver plenamente. E viveu até seus últimos dias, conforme uma amiga me disse.

A gente tem que aprender a superar as tantas perdas, mágoas, decepções e fracassos que experimentamos. A vida é assim. Não desfilamos em passarelas com beleza e juventude reluzente como pretendia Dorian Gray. Temos, posto que sim, a honra de estarmos vivos, trilhando trajetórias existenciais e tendo a ciência de que nascer é o maior presente que a natureza pode nos dar. Penso assim e com certeza crescente. Não perdemos mais de cem fios de cabelos todos os dias? Nós nos despedimos das pessoas que amamos, vivemos conflitos com quem convivemos, experimentamos necessidades não satisfeitas, desejamos e lutamos bravamente para realizar nossos propósitos, alguns deles não conquistados. Não esquecemos as chaves em casa?! Ou não perdemos cartões e documentos?!

        A verdade é que temos de aprender a surfar as ondas de nossas praias, principalmente quando o tempo das ressacas chega todos os anos com ondas imensas. Mas a praia, sempre bela, continua a receber o calor do sol e o brilho do luar.

        Se a vida nos maltrata e tira um filho dos nossos braços, como fez comigo, a gente tem que saber que vamos ter que acordar no dia seguinte porque outro filho vai nos chamar. Aí cantarolamos, versejamos o amor ao invés de bater no peito e bravejar. Ah, meu amigo, a inteligência emocional nos está disponível e pronta para ser usada.

        Beethoven pode nos ser um grande mestre!

        (*) Finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura de 2022.

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O arrependimento e a escova de dentes

terça-feira, 30 de julho de 2024

O modo como construímos a vida é decorrente das decisões que tomamos. Decidimos desde o momento em que acordamos e colocamos os pés no chão, se o direito ou o esquerdo, até deitarmos a cabeça no travesseiro à noite. Não damos um passo sem decidir, dado que somos seres de juízo com autoridade sobre nós mesmos. Essa é uma consciência que vamos construindo ao longo da vida, desde quando aprendemos a expressar o sim e o não. Simples assim? De certo que não.  

O modo como construímos a vida é decorrente das decisões que tomamos. Decidimos desde o momento em que acordamos e colocamos os pés no chão, se o direito ou o esquerdo, até deitarmos a cabeça no travesseiro à noite. Não damos um passo sem decidir, dado que somos seres de juízo com autoridade sobre nós mesmos. Essa é uma consciência que vamos construindo ao longo da vida, desde quando aprendemos a expressar o sim e o não. Simples assim? De certo que não.  

Se, por um lado, o medo de errar influencia a decisão que pretendemos tomar e no modo como fazê-la, principalmente quando o arrependimento pincela as sensações, por outro, as decisões impulsivas podem nos criar verdadeiras emboscadas. Aprender a tomar decisões é a mais longa escola que podemos cursar.

Estou lendo o livro “A Biblioteca da Meia-Noite”, do romancista e jornalista inglês Matt Haig. Uma história de ficção fantástica em que a protagonista, uma mulher de 35 anos depressiva e com pensamentos suicidas, abandona vários projetos que ela mesma criou. A cada dia a impressão de fracasso e inutilidade vai crescendo em suas sensações, até que pensa em dar um fim à sua existência quando seu gato morre atropelado porque ela havia deixado a porta aberta. Naquele estágio de dúvida entre a vida e a morte, vê-se numa biblioteca, onde há livros que contam histórias sobre as opções que abandonara e de como seriam realizadas.

É um livro impactante posto que a leitura nos faz refletir sobre as decisões que tomamos. De repente seguimos um rumo e abandonamos outro. Sabemos o que nos aconteceu em consequência do que decidimos, mas desconhecemos o que teria acontecido se houvesse outra opção. Em “A Biblioteca da Meia-Noite”, a personagem vai relembrando o que não viveu. A cada desistência é tomada de arrependimentos, como ter deixado a natação. Então, recebendo a atenção de uma bibliotecária, vai percorrendo os desafiadores caminhos que poderia ter percorrido, o que poderia ter conquistado ou perdido, os embates que teria de enfrentar, as felicidades e tristezas. Os encontros e desencontros.

Tenho o hábito de imaginar o que não vivi. Como estaria hoje?  Teria sido melhor face às dificuldades que enfrento em decorrência das decisões que tomei? É uma fantasia e tanto habitar no Jardim do Éden!

O pensamento budista engrandece as relações de causa e efeito. Tudo o que fazemos gera consequências. O acaso existe, não há quem duvide. Entretanto, uma decisão leva a outra e a outra e assim por diante. A inteligência é fundamental na construção do nosso destino. Contudo, meu amigo leitor, a intuição não pode ser negligenciada, enquanto capacidade de pressentir ou prever uma situação futura, sem o conhecimento da causa e do efeito com maior profundidade.

Uma decisão bem tomada acarreta consequências desejáveis. Mas as impensadas e mal avaliadas podem problematizar a vida. Aliás, decidimos para evitar problemas ou resolvê-los.

 

Por que escovamos os dentes?

 

Um arrependimento pode se arrastar por um bom tempo, talvez pela vida inteira. É como uma condenação que nos sentencia ao pesar. Há situações em que podemos voltar atrás e decidir novamente, mas outras, infelizmente não.

Por outro lado, o arrependimento é uma forma de aprender com o erro. É aí que está o pulo do gato. O bom jogador guarda o erro como a carta de virada do jogo e sabe usar a criatividade em cada jogada.

 Ah, ia esquecendo de lembrar que a escova de dentes macia não fere as gengivas.

 

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Gostar, simples assim!?

terça-feira, 23 de julho de 2024

Acredito que vou precisar escrever uma infinidade de textos para comentar as reflexões de Marcel Prout sobre as situações diárias, contidas no livro “Em busca do tempo perdido”. A cada página, tenho que refletir. Às vezes, fico cansada, reconheço. Mas a cada momento em que penso, revejo fatos da minha vida ou mesmo da existência de um modo geral e vou tirando conclusões, lendo e pesquisando outros autores, adentrando em conjecturas novas ou já conhecidas. Hoje, vou sobrevoar aspectos positivos do gostar, um tema que nos é fundamental. 

Acredito que vou precisar escrever uma infinidade de textos para comentar as reflexões de Marcel Prout sobre as situações diárias, contidas no livro “Em busca do tempo perdido”. A cada página, tenho que refletir. Às vezes, fico cansada, reconheço. Mas a cada momento em que penso, revejo fatos da minha vida ou mesmo da existência de um modo geral e vou tirando conclusões, lendo e pesquisando outros autores, adentrando em conjecturas novas ou já conhecidas. Hoje, vou sobrevoar aspectos positivos do gostar, um tema que nos é fundamental. 

Nada é mais perfeito e imperfeito do que o gostar, que pode nos surgir de modos improváveis e inesperados, chegando de mansinho e vagando em torno de nós, até que o percebamos. “Era uma pessoa igual a cem mil outras pessoas. Mas eu fiz dela um amigo, agora ela é única no mundo” (Saint-Exupéry, em O Pequeno Príncipe).

O gostar de alguém é um sentimento que vai surgindo singularmente, sem um sentido determinado e vai tomando conta do nosso sentir. É a ternura que brota como uma semente despretensiosa e pode se tornar, inclusive, uma árvore frondosa, carregada de frutos. Sempre que faço parte de um grupo, o sentimento do gostar fica se chegando, como quem não quer nada, criando disposições, quer seja de parte a parte ou não. A gente vai conhecendo o outro e a nós mesmos também, haja vista que a convivência nos modifica. Assim, vamos fazendo nossas histórias acontecerem no dia a dia.

Sentir afeição por uma pessoa é saudável e prazeroso. Mais ainda é guardar esse sentimento e alimentá-lo por um tempo ou pela vida afora. É diferente do sentimento que nutre laços afetivos parentais, como entre irmãos, cônjuges, pais e filhos, avós e netos.

Sempre vemos a pessoa de quem gostamos de forma única, e, da mesma forma, assim somos vistos. É um reconhecimento particular do modo de ser do outro. E aí está um bom desafio: vê-lo sem enganações e tendências, ou seja, percebê-lo com os olhos descompromissados. Não é preciso buscar algo urgente a comunicar para dizer “Olá!” Um encontro de cinco minutos pode deixar registros a serem saudosamente lembrados. Simples assim!

São exatamente naqueles cinco minutos, mesmo guardando o gostar por tantas outras pessoas, que aquele afeto nos é a mais especial. Somos seres emotivos por excelência. Aliás, como qualquer animal; o olhar do cavalo, do cachorro ou de outro bicho revela, pelo brilho e intensidade, o afeto que guarda pelos seus donos e expressa um dos mais sinceros gestos.

O povo Umbundu, originário do Planalto Central de Angola, considera que o olhar do outro nos dá existência. Sim, existimos quando somos vistos. A cada relação de amizade, ganhamos existência própria; somos uma pessoa para cada amigo que temos, e a amizade tem o poder de nos transformar em várias pessoas. Que engrandecimento maravilhoso!

Quando me sinto pequena e sem jeito, mas sob o olhar de uma pessoa que gosta de mim, fico melhor e ganho outras formas diante do espelho para o qual olho todos os dias de manhã. Que magia tem o gostar!

Proust nos mostra como mergulhar fundo em cada instante do dia a dia para descobrirmos universos carregados de sabedoria. Basta relaxar e perceber.  E deixar-se gostar e ser gostado.  

 

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Um olhar para Nova Friburgo

segunda-feira, 15 de julho de 2024

No início de julho Nova Friburgo recebeu o título de Suíça Brasileira! 

Hoje vou escrever a coluna inspirada em nosso lugar, de riqueza natural e histórica, que traz admiração ao nosso olhar. As matas que cobrem as altas escarpas da Serra do Mar nos movem a recitar os versos de J. G. de Araújo Jorge, contidos na coletânea “Canto à Friburgo” [sic], lançada em 1961, que homenageiam a cidade com o louvor de um apaixonado. 

No início de julho Nova Friburgo recebeu o título de Suíça Brasileira! 

Hoje vou escrever a coluna inspirada em nosso lugar, de riqueza natural e histórica, que traz admiração ao nosso olhar. As matas que cobrem as altas escarpas da Serra do Mar nos movem a recitar os versos de J. G. de Araújo Jorge, contidos na coletânea “Canto à Friburgo” [sic], lançada em 1961, que homenageiam a cidade com o louvor de um apaixonado. 

Sem ter nascido aqui, seu coração balançou com o mesmo vento que movimenta as folhas das árvores enraizadas nestas serras, e seus olhos brilharam com os raios de sol que alimentam a vida neste lugar. J.G. poetou em “Eis Friburgo”:

“Cidade cujo nome é um símbolo e um troféu

Parada de um caminho... a caminho do céu!”

 

Tenho esperança de que o título vivifique o amor que o friburguense tem pelo lugar onde vive. Mesmo aquele que não tenha nascido aqui, como eu, mas se deixou adotar pela sua gente cheia de fibra, deixou-se gostar por esse povo acolhedor, alegre e festeiro. Mas que precisa, todos os dias, melhor cuidar do espaço onde finca suas raízes e tudo faz para florescer seus sonhos.

“Gosto dessas montanhas azuis, musicadas

Pelas águas que rolam frias, esquecidas,

Sussurrando cantigas infantis, perdidas

Por entre os tinhorões e a sombra das ramadas” 

                                          (Montanhas de Friburgo - J.G. de Araújo Jorge)

 

Junto ao título “Suíça Brasileira”, recebido de bom grado e com orgulho, deve estar a responsabilidade diária pela natureza, que ainda preserva as matas, tão devastadas em outras regiões do país. Friburgo tem céu brasileiro, de azul estonteante, que impulsiona o acontecer da sua história. O friburguense acorda cedo e olha para a vida com esperança, cuida de si, da família e das suas coisas. Trabalha. Ama, pensa, sofre. Nasce e morre. Tudo isso sob a beleza que vem do alto. 

“Olho o céu de Nova Friburgo sobre mim! Reparo

Nos detalhes dessa obra perfeita de Deus!

Na manhã de ouro e azul, o dia é belo e claro,

Nem um lenço de nuvem branca, acena adeus...”

                                 (J.G. de Araújo Jorge – O céu de Nova Friburgo”)

 

Dos nativos aos imigrantes, povos vindos de diferentes lugares do mundo, que aqui puseram seus pés e fizeram a cidade se desenvolver. Com suor, esperanças e sonhos, na labuta incansável e diária, com dor e alegria, cada um dos que aqui nasceram ou chegaram ergueram o futuro. Construíram o hoje, um lugar misturado e miscigenado, em busca de ser melhor. Do negro ao louro, dos olhos puxados às bochechas rosadas, dos camponeses aos empresários, aqui é o lugar de todos.

“Aqui hei de plantar a semente da vida,

que esta é afinal a terra muito prometida!

e sulcarei o chão fecundo, áspero e bruto,

transformando-o em flor, modelando-o em fruto;

abrirei o caminho, além pela floresta;

usarei a energia das águas em festa,

revoltas e indomáveis pelas corredeiras,

ou saltando a gritar nos tombos das cachoeiras.”

                                           (J. G. de Araújo Jorge – Terra prometida)

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O intruso

terça-feira, 09 de julho de 2024

Quem já experimentou a presença de um intruso, daquela pessoa que surge sem que seja esperada?

O intruso é alheio a alguém ou a uma situação. Um clandestino, talvez, que causa mal-estar ou desconforto por ocupar o lugar de “nada a ver”.

O narrador de “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust, lembra sua infância quando uma visita chega na hora do jantar e modifica a rotina da casa. Nas mãos de um mestre que dedicou sua vida à literatura, a intrusão é minuciosamente descrita, e o leitor pode sentir o desconforto da criança diante daquele estranho.

Quem já experimentou a presença de um intruso, daquela pessoa que surge sem que seja esperada?

O intruso é alheio a alguém ou a uma situação. Um clandestino, talvez, que causa mal-estar ou desconforto por ocupar o lugar de “nada a ver”.

O narrador de “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust, lembra sua infância quando uma visita chega na hora do jantar e modifica a rotina da casa. Nas mãos de um mestre que dedicou sua vida à literatura, a intrusão é minuciosamente descrita, e o leitor pode sentir o desconforto da criança diante daquele estranho.

Esse inconveniente revela a quem se sente incomodado as relações de afeto que tem para com a circunstância ou pessoa. O tempo em que vivenciamos as situações nos é valioso, e qualquer coisa que modifique nossas expectativas pode ser, na melhor das hipóteses, embaraçosa. Pode roubar instantes especiais, nunca recuperados. Ora pois sim, o tempo é rápido e devora os momentos, deixando apenas lembranças. Contudo, essas lembranças nunca dão conta do acontecer, são como nuvens que sobrevoam os dias, que surgem e se desfazem.

Ao ler a narração proustiana, pude constatar que o intruso é tão indesejável que pode nos desencadear as mais disparatadas reações. Haja criatividade para nos livrarmos dele! E quando o intruso rouba a cena? Foi exatamente o que o narrador mostrou. Na hora do jantar, uma visita inesperada, alegre, falante e sedutora atraiu a atenção de todos, fazendo com que o menino tivesse que ir para o quarto sozinho e dormir sem o carinho da mãe. Ele, na cama, se contorceu de indignação, quando um tal de Charles Swann usurpou o seu espaço afetivo dentro de sua própria casa.

O intruso pode ser aquele que não se dá conta de como é capaz de importunar. Nunca tinha pensado no tema com tamanho respeito como agora. Será que já fui uma intrusa? Apesar de tomar cuidado, certamente, já fui.

A presença do intruso é notada de imediato. Propositalmente ou não, ele tem um certo atrevimento. Se “cara de pau”, traz ironia no olhar ou nos lábios. Se ingênuo, tem grandes probabilidades de tropeçar nas pernas e nas palavras.

Uma pergunta exclamativa me invade: “o que estou fazendo aqui?!”, e me faz sentir assim, intrusa. Esta indagação surge quando percebo que devo mudar ou sair de cena. E quem já não se sentiu intruso nas relações afetivas e exclamou para si: “estou demais!”

Ui, este tema está me sendo uma sessão de terapia!

O fato é que estamos cercados de intrusos: a motocicleta que corta o trânsito e entra na frente de todos; a pessoa que fura a fila, o vizinho que coloca música alta; o sujeito que fala aos berros no celular na rua ou no ambiente público; o vendedor que liga para nosso telefone com insistência. Enfim, é o mundo agitado que nos perturba.

Vez em quando ler Proust faz bem! 

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