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A enfermaria de beribéricos da Marinha

quinta-feira, 25 de março de 2021

Última parte

Em 25 de julho de 1889 foi inaugurada em Nova Friburgo uma enfermaria provisória na Rua General Osório para tratamento de oficiais e praças da armada acometidos de beribéri. Tudo indica que duas foram as razões para a escolha de Nova Friburgo. A primeira foi a salubridade do clima das montanhas e a segunda o uso da hidroterapia, notadamente das duchas, do Instituto Sanitário Hidroterápico instalado no centro da cidade.

Última parte

Em 25 de julho de 1889 foi inaugurada em Nova Friburgo uma enfermaria provisória na Rua General Osório para tratamento de oficiais e praças da armada acometidos de beribéri. Tudo indica que duas foram as razões para a escolha de Nova Friburgo. A primeira foi a salubridade do clima das montanhas e a segunda o uso da hidroterapia, notadamente das duchas, do Instituto Sanitário Hidroterápico instalado no centro da cidade.

As sessões de duchas no Instituto eram iniciadas às 6h da manhã e as praças vinham por turmas, levando aproximadamente uma hora e 20 minutos todo o tratamento. Não havia consenso entre os médicos sobre o benefício do uso das duchas para o tratamento do beribéri. Mesmo os que defendiam o seu uso faziam, no entanto, restrições relativas ao momento em que as duchas deveriam ser empregadas. Haviam médicos que afirmavam que a influência benéfica do clima de Nova Friburgo tinha um papel muito mais relevante no restabelecimento ou melhora dos enfermos do que o uso das duchas.

Em um mapa elaborado pelo dr. Galdino Cícero de Magalhães, diretor da enfermaria de Friburgo, há informações sobre as duchas aplicadas em 50 pacientes durante 34 dias, no período de 29 de julho a 31 de agosto. Segundo o médico os paralíticos usavam as duchas quentes e frias, estas últimas denominadas de escocesas. Já os que podiam caminhar eram submetidos apenas às duchas frias. Conforme o diretor, a hidroterapia era um tratamento de primeira ordem para o beribéri oferecendo sólidas garantias de curabilidade. Não havia registro de efeitos colaterais na utilização das duchas.

Em setembro de 1889 um editorial publicado no Diário de Notícias intitulado “O beribéri na Marinha” contém severas críticas às condições sanitárias da enfermaria de Nova Friburgo, em relação a superlotação. Conforme o jornal, as enfermarias nos dois prédios não poderiam comportar mais de 35 doentes, mas a lotação era bem superior. Em uma das inspeções haviam 54 enfermos. “O que este papel apresenta em relevo são os defeitos higiênicos das enfermarias ora existentes ali, em geral acanhadas, com pouca elevação acima do solo, desprovidas de sentinas asseadas, algumas sem água, sob o mais grosseiro sistema de esgotos por meio de calhas descobertas que envenenam a atmosfera e vão enfestar o rio; não se oferecendo sequer nestes estabelecimentos o mínimo da capacidade normal para os doentes aglomerados em número de 47, em um espaço que mal poderia comportar 35.”

O dr. Magalhães se defendeu declarando que os dois prédios comportavam 50 leitos e que a distância entre eles era de mais de um metro. “As sentinas são asseadíssimas, não exalam o menor odor, ambas têm o seu encanamento até o rio e são lavadas algumas vezes por dia.(...) Nesta vila não há encanamentos de materiais fecais, algumas casas usam valas, outras servem-se de urinóis e os despejam no rio.” Continua o diretor. “É certo que tem havido alguma repugnância da parte do público na promiscuidade com as praças, mas não pelo receio do contágio. Grande parte dos doentes do estabelecimento [hidroterápico] compõem-se de beribéricos e seria ridículo que tivessem medo de outros beribéricos.

O dr. Theodoro receia que havendo grande afluência de clientes no fim do ano torna-se difícil duchar as praças da armada e neste sentido tem conversado, mas nunca pensou em fechar o estabelecimento à Marinha, o que é coisa muito diversa de fechar as portas. Já combinamos em alterar a hora, começando no verão as duchas às 5h da madrugada.” Havia sido noticiado que o diretor do Instituto Sanitário dr. Theodoro Gomes decidira pôr termo ao tratamento das praças da armada “pois que a ideia de contágio que se tinha insinuado no espírito do povo e a promiscuidade das praças com os seus doentes que procuravam as duchas produzia a repugnância, obrigando-os a abandonar a casa [Instituto].” Lembrando que acreditava-se que o beribéri era uma doença contagiosa, o que não é, mas apenas uma deficiência vitamínica.

Ainda segundo o jornal o diretor do estabelecimento ameaçou suspender a aplicação das duchas aos doentes da armada. O ministro da Marinha, Barão de Ladário, parece não ter gostado da suposta decisão do diretor do instituto e mandou recado em carta publicada pelo Jornal do Commercio: “Nunca pretendi manter ali definitivamente naqueles prédios a enfermaria em Nova Friburgo ou qualquer outro ponto semelhante. O governo cogita de estabelecer um edifício mais vasto e apropriado a um hospital para beribéricos e convalescentes da armada.(...) Sobre a deliberação tomada pelo diretor do estabelecimento hidroterápico, sentindo a falta de seu valioso concurso, vou tratar de remover a contrariedade tomando providências que o caso exige.”

A Marinha iniciou negociações com a viúva do Dr. Carlos Éboli para a compra do Instituto Hidroterápico. No entanto Rui Barbosa que frequentava assiduamente a cidade serrana protestou contra esta aquisição. Em carta aberta publicada na imprensa argumentou que a Marinha iria instalar um “centro de peste” ameaçando a salubridade de Nova Friburgo. O jurista venceu a batalha retórica e anos depois a Marinha adquiriu o pavilhão de caça da família Clemente Pinto onde se encontra até hoje.  

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    A Marinha adquiriu o pavilhão de caça dos Clemente Pinto.

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    As duchas como parte do tratamento hidroterápico.

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    Instituto Sanitário Hidroterápico de Friburgo.

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A enfermaria de beribéricos da Marinha

quinta-feira, 18 de março de 2021

Primeira parte

 

No final do século 19, a Marinha do Brasil instalou em Nova Friburgo enfermarias para o tratamento de praças da Armada acometidos de beribéri. O índice de mortalidade dos marujos instalados na ilha do Bom Jesus preocupou o Barão do Ladário, ministro da Marinha à época. Foram alugadas provisoriamente por esta instituição militar duas pequenas chácaras com casas de vivenda na Rua General Osório.

Primeira parte

 

No final do século 19, a Marinha do Brasil instalou em Nova Friburgo enfermarias para o tratamento de praças da Armada acometidos de beribéri. O índice de mortalidade dos marujos instalados na ilha do Bom Jesus preocupou o Barão do Ladário, ministro da Marinha à época. Foram alugadas provisoriamente por esta instituição militar duas pequenas chácaras com casas de vivenda na Rua General Osório.

O prédio da primeira chácara era elevado do solo mais de um metro, com sete janelas de frente e sete laterais. Possuía três enfermarias “acanhadas” iluminadas a querosene. A primeira com nove leitos, a segunda com sete leitos e a terceira enfermaria destinada aos menores com 12 leitos. Havia ainda um quarto para o médico, sala de jantar, despensa, uma saleta e uma cozinha. Fora do prédio, uma banheira e uma latrina para os militares oficiais e outras duas latrinas para os “inferiores”.

Um grande pátio era destinado ao recreio dos doentes e a trabalhos ginásticos tendo em ambos os lados um jardim. Próximo ao edifício havia dois depósitos, sendo um para a lenha. A segunda chácara era situada na mesma rua e a poucos metros da primeira. O prédio pouco elevado do solo possuía quatro janelas de frente e sete laterais. Havia seis saletas que formavam pequenas enfermarias, a primeira com cinco leitos, a segunda com dois, a terceira com três leitos, a quarta com quatro, a quinta com três e a sexta com nove leitos.

Uma saleta servia de quarto para o médico e havia ainda uma sala onde ficava a farmácia. Neste edifício havia um refeitório para os enfermos e os serventes, quartos para os enfermeiros, alojamento para oito serventes, uma cozinha com despensa e duas latrinas. Os dois prédios se comunicavam por um caminho interno que unia as duas chácaras. Em uma das inspeções foi elogiado o asseio das enfermarias bem como as roupas dos enfermos.

No entanto foram criticadas condições anti-higiênicas a exemplo da inconveniência de calhas a descoberto por onde passavam os dejetos fecais até o seu transporte ao rio Bengalas. A pressão da água era tamanha que as fezes saíam fora das calhas formando focos de infecção. Outro problema apontado foi a aglomeração dos enfermos com leitos muito próximos um do outro. Com janelas venezianas para entrada do ar, ocorria a aeração constante dos prédios ficando elas abertas o maior tempo possível. Isto parece ter minimizado o problema da aglomeração.

Mas por que a Marinha escolheu Nova Friburgo para o tratamento dos praças da armada acometidos de beribéri? Dois foram os motivos que corroboraram, a salubridade do clima das montanhas bem como o uso da hidroterapia, e notadamente das duchas recomendadas para o tratamento desta doença, no instituto que havia em Friburgo. O Instituto Sanitário Hidroterápico ou Casa de Duchas foi construído em 1870 pelos médicos Carlos Éboli e o dr. Fortunato.

Com o falecimento de Éboli, em 1885, o instituto passou a ser dirigido pelo médico Theodoro Gomes. Anexo ao instituto havia o Hotel Central, hoje o Colégio N.S. das Dores que hospedava os pacientes do instituto oriundos de outros municípios. Veja  um relatório de uma das inspeções realizada na enfermaria de Nova Friburgo e que curiosamente foi publicado no jornal, algo impensável nos dias de hoje por se tratar de assunto interno da Marinha: “Ao sr. ministro da Marinha dirigiu em data de 30 do corrente o diretor de hospital de Marinha, o sr. dr. Beato de Carvalho e Souza o seguinte ofício: Ilmo e Exmo senhor. Tenho a honra de comunicar a V.Exa. que, em cumprimento à ordem verbal que me foi dada por V. Exa. para visitar a enfermaria dos doentes de beribéri estabelecida em Nova Friburgo, para lá parti no dia 25 do mês passado. A inspeção que ali procedi, com todo o cuidado, me produziu a melhor impressão, porquanto encontrei a enfermaria em muito asseio e limpeza, e os enfermos com boa aparência de saúde e bem estar, o que tudo dizia que em suas consciências havia a confiança e esperança de breves restabelecimentos. Cumpre não ocultar que alguns, ou por outra, aqueles que foram paralíticos e com atrofias musculares ainda se acham muito enfraquecidos, e que só agora e depois de trinta e tantas duchas é que deixaram as muletas e principiam a caminhar sós e apenas firmados em suas bengalas. O tratamento geralmente adotado tem sido uma alimentação farta e apropriada ao estado de cada um, vinhos reconstituintes, do Porto, tônicos, passeios ao ar livre, exercícios ginásticos e sobretudo duchas simples e escocesas, o que tudo tem produzido ótimos resultados. O número de doentes em tratamento naquela enfermaria sobe a 64, dos quais vinte e tantos em condições de terem alta. Os outros, uns em plena convalescença e outros ainda necessitam de longo tratamento por se acharem muito fracos e agora em começo de regeneração. Nenhum óbito. (...) A remoção dos doentes de beribéri para aquela localidade [Friburgo] a ter a sua consciência tranquila e aplaudir a resolução de V. Exa. em fazer efetiva aquela mudança como um paradeiro aos óbitos repetidos que se davam nas praças da armada, quando em tratamento da ilha do Bom Jesus. Por este ofício se pode apreciar as vantagens da acertada deliberação do sr. Barão do Ladário criando a enfermaria em Nova Friburgo e providenciando para que nada faltasse às praças da armada afetadas de beribéri e ali recolhidas.” Jornal do Commercio, 7 de setembro de 1889. Continua na próxima semana.

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A imigração alemã e seu legado

quinta-feira, 11 de março de 2021

No ano de 2024 a comunidade alemã de Nova Friburgo celebrará o bicentenário de sua imigração. Os alemães são os únicos que vieram para esta terra tanto na qualidade de colonos como de imigrantes. Antes é preciso entender o contexto da época. A Alemanha não era um país unificado na ocasião em que os germanos imigraram para Nova Friburgo, sendo originários de reinos, grão-ducados, ducados e principados.

No ano de 2024 a comunidade alemã de Nova Friburgo celebrará o bicentenário de sua imigração. Os alemães são os únicos que vieram para esta terra tanto na qualidade de colonos como de imigrantes. Antes é preciso entender o contexto da época. A Alemanha não era um país unificado na ocasião em que os germanos imigraram para Nova Friburgo, sendo originários de reinos, grão-ducados, ducados e principados. A unificação da Alemanha em Estado-nação ocorreu em 18 de janeiro de 1871.

Declarada a independência do Brasil em relação a Portugal, D. Pedro I fez uso de mercenários europeus na organização do Exército nacional. Como os países restringiam a emigração de ex-combatentes, as autoridades brasileiras cooptavam agricultores e artífices entre os soldados para dissimular a vinda de mercenários. O primeiro navio, o Argus, chegou ao Rio de Janeiro em 7 de janeiro de 1824, trazendo 134 colonos alemães e 150 soldados. Já o Caroline chegou em 14 de abril do mesmo ano com 180 colonos e 51 soldados.

Sob protestos 342 colonos alemães foram encaminhados para a vila de Nova Friburgo chegando aqui em 3 de maio de 1824. Estes colonos deveriam ocupar as terras abandonadas pelos suíços, ainda que muitas fossem impróprias à agricultura. Disse sob protestos pois tinham conhecimento de que as terras da colônia não eram boas para a atividade agrícola. Como não tinham escolha tomaram posse dos lotes de terra. No entanto, seguiram o mesmo destino dos colonos suíços. Alguns venderam ou abandonaram as suas glebas e seguiram para outras regiões. Os Schuenck se tornaram proprietários de muitas terras nas freguesias de São José do Ribeirão e de Sebastiana.

O melhor exemplo de prosperidade entre os alemães é o de Joseph Erthal. Trabalhou como ferreiro e isto lhe permitiu com suas economias adquirir uma propriedade agrícola onde hoje situam-se os municípios de Bom Jardim e Duas Barras, cultivando café. Atualmente a família Erthal é a maior produtora de café do Estado do Rio de Janeiro exportando esta commoditie para diversos países.

Alguns alemães que serviram como mercenários ao darem baixa no Exército Imperial imigraram para Nova Friburgo. Um deles é Friedrich Gustav Leuenroth, mercenário do Batalhão de Estrangeiros que inaugurou a primeira casa de banhos na vila e posteriormente o Hotel Leuenroth. O mestre cervejeiro Albano Beauclair estabeleceu em 1893 a fábrica de cerveja Beauclair em Nova Friburgo. Era neto do médico alemão Johann Adolpho Rouville de Beauclair que viera para o Brasil trabalhar em fazendas de Cantagalo, cuidando de escravos doentes. Cantagalo por ser muito mais próspero do que Nova Friburgo atraiu alemães como Jacob Gijsbert Paul Van Erven, que deu grande desenvolvimento às fazendas de café do Barão de Nova Friburgo. Em razão de seu conhecimento técnico se tornou sócio do barão em algumas fazendas.

Outro ilustre alemão foi Theodor Robert Peckolt, médico e botânico que imigrou para Cantagalo, em 1847. Industriais alemães dos ramos têxtil e metalúrgico como Peter Julius Ferdinand Arp, Maximilian Falck, Gustav Carl Siems e Hans Gaiser mudaram a história de Nova Friburgo transformando a pacata cidade de veraneio em um centro industrial. A detenção de navios germanos na Primeira Guerra Mundial redundou na prisão de centenas de alemães no Sanatório Naval de Nova Friburgo. Alguns foram cooptados pelas indústrias alemãs locais para trabalharem em suas fábricas recém instaladas a exemplo de Richard Hugo Otto Ihns, Johannes Robert Garlipp, Hermann Ostmann e Carl Otto Stern.

Os industriais do ramo têxtil utilizavam um maquinário extremamente complexo. Em razão disto muitos técnicos alemães foram contratados para montar e colocar as máquinas têxteis em funcionamento. Isto foi aumentando cada vez mais a presença de alemães em Nova Friburgo. Assim como os italianos se concentraram no bairro das Duas Pedras, os alemães escolheram Mury como moradia. Galdino do Valle Filho quase alterou o nome deste distrito para Germania tanto eram os alemães que ali residiam.

O estabelecimento das indústrias atraiu indivíduos de outros municípios para trabalhar nas fábricas e sítios do distrito agrícola de Conselheiro Paulino se transformaram em loteamentos para abrigar os novos moradores. Olaria teve o mesmo destino perdendo suas chácaras para dar lugar a residências dos operários. Outra influência dos alemães foi o montanhismo com a criação em 20 de julho de 1935 do Centro Excursionista Friburguense. Realizada a eleição do primeiro presidente, foi escolhido Friederich Von Veigl que deu nome a uma montanha na cidade.

O centro excursionista objetivava promover passeios, longas caminhadas e escaladas. Era o segundo clube de montanhismo do Brasil. Otto Siemens proprietário da fábrica de Filó foi um dos incentivadores do montanhismo. Assim como os suíços ganharam a obra de Martin Nicoulin, “A Gênese de Nova Friburgo”, e “Imigrantes”, de Henrique Bon para conhecer as suas origens, os alemães têm o benefício do blog do genealogista Cesar Raibert Valverde, que contém um rico material de pesquisa. Em 2024 teremos muito a celebrar sobre o legado do povo teutônico em Nova Friburgo.

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    Membro da família Cleff

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    Residência típica dos alemães em Friburgo

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    Os Erthal exportam café para diversos países

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Escravidão e castigo

quinta-feira, 04 de março de 2021

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos (...) Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. (...) Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas.

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos (...) Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. (...) Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas.

Já o ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginem uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até o alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho (...) A fuga repetia-se, entretanto.

Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncio nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha a promessa gratificar-se-á generosamente ou receberá uma boa gratificação. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara no ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo rigor da lei contra quem o acoutasse.

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

Cândido Neves(...) cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade;(...) era dado em demasia a patuscadas.(...) mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém.(...) Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória.

Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobrira logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava o lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão. Este texto foi extraído da crônica de Machado de Assis “Pai contra mãe”.

Em Nova Friburgo os suíços Henri Mozer e François Vuillemin requereram provimento de capitão do mato nas cabeceiras do Rio Macaé de Cima. A norma estabelecia que quanto mais distante da vila a captura maior seria a remuneração. Os escravos fugiam com frequência das fazendas. Em abril de 1822 há referência de escravos aquilombados nas partes de Macaé e que nesse quilombo havia 14 deles. Mesmo sem provisão na função de capitão do mato qualquer indivíduo que prendesse um escravo fugitivo seria gratificado. Esta despesa seria paga pela Câmara Municipal e reembolsada de seu senhor quando lhe fosse entregue.

O colono suíço Joseph Hecht deixou o seguinte registro: “... Com frequência víamos passar por nossa cidade de Nova Friburgo negros fugidos que tinham sido capturados pelos caçadores contratados e que estavam sendo devolvidos aos donos. (...) Para quem se dedicava a essa maldita atividade, essa paga era suficiente. O negro que fugia pela primeira vez era espancado de forma horrível. Se fugisse uma segunda vez era novamente espancado brutalmente, mas isso não era tudo. Uma corrente era presa ao seu corpo com uma parte pendendo para baixo por meio da qual as pernas eram presas a uma argola. A corrente lateral era soldada a outra argola. Nessa miserável condição com o corpo todo apertado ele tinha de trabalhar e dormir. Quando dois escravos fugiam juntos eram depois acorrentados juntos a uma argola e assim forçados a trabalhar...” Acompanha este artigo duas imagens de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) sobre o cotidiano dos escravos castigados.

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    A máscara de folha-de-flandres. Foto Fabrice Monteiro

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    As punições eram públicas. Jean-Baptiste Debret

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    Depois do açoite o tronco. Jean-Baptiste Debret

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Para onde vão as águas de Nova Friburgo?

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Para onde vão as águas de Nova Friburgo? Qual é o caminho das águas desde o Caledônia até o encontro com o mar? Principal rio de Nova Friburgo, o Rio Grande nasce no alto do Caledônia onde podemos visualizar todo o vale de São Lourenço. Este maciço de granito eleva-se a 2.257 metros acima do nível do mar, sendo o segundo ponto mais alto da Serra do Mar. De lá também pode-se avistar o vale do Rio Bengalas que é um importante afluente do Rio Grande.

Para onde vão as águas de Nova Friburgo? Qual é o caminho das águas desde o Caledônia até o encontro com o mar? Principal rio de Nova Friburgo, o Rio Grande nasce no alto do Caledônia onde podemos visualizar todo o vale de São Lourenço. Este maciço de granito eleva-se a 2.257 metros acima do nível do mar, sendo o segundo ponto mais alto da Serra do Mar. De lá também pode-se avistar o vale do Rio Bengalas que é um importante afluente do Rio Grande.

O Caledônia é o divisor de águas de duas bacias hidrográficas. De um lado as águas correm em direção à Baia da Guanabara passando pelo município de Cachoeiras de Macacu. Do outro, as águas correm em direção ao Rio Paraíba do Sul sendo denominada de Bacia Hidrográfica Rio Dois Rios. Nova Friburgo tem uma particularidade. Uma parte de seu território está compreendida na Bacia Hidrográfica do Rio Dois Rios e a outra parte na Bacia Hidrográfica do Rio Macaé e das Ostras.

O objetivo desta coluna de hoje é somente apresentar a primeira bacia e mostrar o caminho de suas águas. O Comitê de Bacia Hidrográfica Rio Dois Rios abrange 12 municípios como Nova Friburgo, Bom Jardim, Duas Barras, Trajano de Moraes, Cordeiro, Macuco, Cantagalo, Carmo, Itaocara, São Sebastião do Alto, Santa Maria Madalena e São Fidélis. O Rio Dois Rios é formado pelo encontro do Rio Grande que nasce em Nova Friburgo com o Rio Negro, que nasce no município de Duas Barras. A partir desta união o rio passa a ser chamado de Rio Dois Rios até se encontrar com o Rio Paraíba do Sul.

No Caledônia onde nasce na presença de florestas na cabeceira da bacia do Rio Grande resulta em uma água límpida e de qualidade. As florestas proporcionam a retenção da água da chuva que se infiltram no solo e são lentamente liberadas. A região do terceiro distrito de Nova Friburgo (Campo do Coelho) beneficiada pelo Rio Grande é um importante centro produtor de verduras e hortaliças abastecendo a região metropolitana do Rio de Janeiro por meio da agricultura familiar.

O Rio Grande tem as suas águas captadas na localidade de Rio Grande de Cima para o abastecimento da cidade. A população urbana de Nova Friburgo está na bacia hidrográfica de um afluente do Rio Grande, o Rio Bengalas. Este rio é formado pelo encontro das águas dos rios Cônego e Santo Antônio, que também nascem no maciço do Caledônia e se encontram no centro da cidade, no Paissandu, mais precisamente em frente à Igreja Luterana.

Após sair da área urbana de Nova Friburgo as águas do Rio Bengalas vão em direção ao município de Bom Jardim. Exatamente no limite destes dois municípios (no pedágio da RJ-116) o Bengalas se encontra com o Rio Grande. Já o Rio Negro que tem as suas águas nascidas nas serras de Duas Barras e segue em direção ao município de Cantagalo. Os rios Negro e Grande se encontram no município de São Sebastião do Alto, na localidade de Guarani.

A partir deste encontro o rio passa a se chamar Rio Dois Rios que segue em direção a localidade de Cambiasca e depois Colônia, no município de São Fidélis. Neste ponto em que as águas do Rio Dois Rios se encontram com as águas do Rio Paraíba do Sul marca o limite da Região Hidrográfica do Rio Dois Rios, que passa a ser gerido por outro comitê.

Ao longo de todo o caminho percorrido as águas que passaram pelos 12 municípios mencionados trazem as marcas impressas pela ação do homem, a exemplo de esgoto não tratado, dejetos industriais e agrotóxicos usados na lavoura. Ao sair de São Fidélis as águas do Rio Paraíba do Sul deixam definitivamente o relevo de serra para entrar na planície do Norte Fluminense. Campos dos Goytacazes é a primeira cidade na Baixada que as águas do Paraíba do Sul vão encontrar o seu caminho.

Após passar por este município as águas do Paraíba do Sul seguem em direção ao município de São João da Barra atingindo o final de sua longa jornada. Em São João da Barra na localidade denominada Atafona, o Rio Paraíba do Sul se encontra finalmente com as águas do mar. Infelizmente em toda a região hidrográfica do Rio Dois Rios os morros estão desprovidos de florestas e com gravíssimos sinais de erosão. Este desmatamento se deve ao plantio do café no século 19. Com o declínio do café, a pecuária leiteira e de corte ocupou espaço na economia regional.

Este “mar de morros” desflorestados sofrem ação direta das águas das chuvas que provocam a perda de solo. Através do escoamento superficial da água da chuva, parte do solo é carreado junto com as águas sendo levado aos vales junto ao leito dos rios acarretando o seu assoreamento. Este texto foi extraído do roteiro de André Bohrer para o documentário “Caminho da Águas. Do Caledônia a Atafona” em que eu assino a direção. Este documentário está disponível no YouTube e convido os leitores de A VOZ DA SERRA a assistirem e desfrutarem da belíssima paisagem serrana fluminense que percorrem as águas de nossos rios.

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    Encontro do Rio Grande com o Bengalas

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    André Bohrer, à direita, no Caledônia

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    O assoreamento dos rios

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O Hotel São Paulo e o tempo das soirées

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Desde o final do século 19, os hotéis eram espaços de sociabilidade dos friburguenses e veranistas. Era nos hotéis que se realizavam os saraus, as soirées, as folias de carnaval e onde se dançavam quadrilhas, valsas, polcas e mazurcas. Neste fim de século se destacavam o Hotel Salusse do francês Guillaume Marius Salusse, o Hotel Central do italiano Carlos Éboli e hoje Colégio Nossa Senhora das Dores, e o Hotel Leuenroth dos irmãos Friedrich e Paul Leuenroth, mercenários alemães do Batalhão de Estrangeiros.

Desde o final do século 19, os hotéis eram espaços de sociabilidade dos friburguenses e veranistas. Era nos hotéis que se realizavam os saraus, as soirées, as folias de carnaval e onde se dançavam quadrilhas, valsas, polcas e mazurcas. Neste fim de século se destacavam o Hotel Salusse do francês Guillaume Marius Salusse, o Hotel Central do italiano Carlos Éboli e hoje Colégio Nossa Senhora das Dores, e o Hotel Leuenroth dos irmãos Friedrich e Paul Leuenroth, mercenários alemães do Batalhão de Estrangeiros.

Foi no Hotel Leuenroth que o Imperador D. Pedro II esteve em 1874 acompanhado da princesa Izabel e de sua dama de companhia a Condessa de Barral, amante do imperador. A princesa Izabel fazia um tratamento à base de hidroterapia no Instituto Sanitário Hidroterápico. Seria mais natural que ficassem hospedados no Hotel Central, anexo ao instituto, todavia se hospedaram no Hotel Leuenroth. De acordo com o livro de Alcindo Sodré “Abrindo um cofre”, na troca de correspondência entre D. Pedro II e a Condessa de Barral ele escreveu: “...Porém creia que olho sempre com imensas saudades para os quartinhos do anexo do Hotel Leuenroth...”.

Já o escritor Machado de Assis esteve hospedado no Hotel Salusse e deixou este registro: “Oh! bons e saudosos bailes do salão Salusse! Convivas desse tempo, onde ides vós?” O Hotel Salusse era o que promovia as soirées mais badaladas na cidade no século 19. Já no século seguinte das quadrilhas, valsas, polcas e mazurcas passa-se para o jazz, tango, ragtime, fox-trot, one-step e músicas havaianas. No Hotel Salusse era obrigatório para os homens o uso do smoking ou do terno de linho branco. Este hotel foi vendido à família de imigrantes italianos, os Spinelli, que no local construíram um edifício em estilo art déco.

O cassino que funcionava no Hotel Salusse foi transferido para o outro lado da Praça Getúlio Vargas, no Hotel Cassino Turista. Foi adquirido pelo sr. Velasco, turista espanhol que costumava veranear em Nova Friburgo. Além da hotelaria e do cassino havia bailes de gala e orquestras do Rio de Janeiro se apresentavam a miúde neste local. Com a proibição do jogo de azar em 1945, o Hotel Cassino Turista adota o nome de Hotel Central funcionando apenas como estabelecimento hoteleiro. Anos depois deu lugar ao edifício Galeria União na esquina da Rua Ernesto Brasílio com a Praça Getúlio Vargas.

Não poderíamos deixar de citar o Hotel Engert de Carl Friedrich Engert, situado na Rua Alberto Braune. Carl Engert casou-se com Emilie Leuenroth e se tornou também proprietário do Hotel Leuenroth. Outra história semelhante ao do sr. Velasco foi a de dois casais de espanhóis que vieram veranear em Nova Friburgo e acabaram adquirindo em 1944 o Hotel São Paulo, de Francisco Carneiro. Outrora chamado de Magnífico Hotel o seu estilo neoclássico faz justiça a este nome.

Os espanhóis Dolores Laso Iglesias casada com Valenzoela e Flora Laso Iglesias casada com José Belmonte se encantaram com o clima e a beleza da então pacata e patriarcal Nova Friburgo. Dolores e Flora eram irmãs inseparáveis e sempre moraram juntas. Juntamente com os maridos administraram o Hotel São Paulo durante décadas, residindo em suas instalações.

Porém os dois casais de espanhóis não puderam desfrutar da belle époque dos hotéis da cidade. Os clubes de serviço começam a surgir nas décadas de 1940 e 1950 como o Clube do Xadrez, a Sociedade Esportiva Friburguense, o Clube dos 50 e o Country Club substituindo os hotéis nos bailes e carnavais. Conversei com Rosa Maria Moelas Laso, atual gerente e uma das proprietárias do Hotel São Paulo. Seu pai José Gómez Laso, natural da Galícia, era casado com Maria de Los Angeles Salvador Muelas. Mudou-se para Nova Friburgo na década de 1950 trabalhando em uma loja de armas e posteriormente possuiu uma leiteria. Quando as tias estavam bem idosas veio trabalhar no hotel se tornando o herdeiro com o falecimento de ambas já que nenhum dos casais teve filhos.

Percorrendo suas instalações podemos ver preciosidades como uma parede propositalmente descascada para mostrar os tijolos da antiga olaria do Cônego. As malas das irmãs Laso Iglesias, um rádio antigo, a máquina de costura, uma charmosa cabine telefônica e outros objetos estão expostos para que o hóspede desfrute de um agradável ambiente do passado. O Hotel São Paulo é o único preservado do período em que os hotéis, além da hotelaria, eram espaço de sociabilidade para animadas soirées e carnavais.   

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    Hotel São Paulo, outrora Magnífico Hotel

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    José Gómez Laso e Maria de Los Angeles Salvador Muelas

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    Os espanhóis Dolores, Valenzoela, Flora e José Belmonte

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Histórias divertidas de velhos carnavais em Friburgo

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Um dos relatos mais divertidos que já li em minhas pesquisas no jornal O Friburguense foi a matéria “Polícia carnavalesca, soldados rolistas e maxixeiros. Durma-se com um barulho deste!” Trata-se do carnaval de fevereiro de 1901 quando a polícia transformou-se durante os três dias de folia em um verdadeiro pomo de discórdia. Segundo o jornal, a polícia foi uma ameaça constante ao pacato cidadão que “sofreu a macaca” quando procurava divertir-se durante os folguedos carnavalescos.

Um dos relatos mais divertidos que já li em minhas pesquisas no jornal O Friburguense foi a matéria “Polícia carnavalesca, soldados rolistas e maxixeiros. Durma-se com um barulho deste!” Trata-se do carnaval de fevereiro de 1901 quando a polícia transformou-se durante os três dias de folia em um verdadeiro pomo de discórdia. Segundo o jornal, a polícia foi uma ameaça constante ao pacato cidadão que “sofreu a macaca” quando procurava divertir-se durante os folguedos carnavalescos.

No primeiro dia de carnaval enquanto populares se divertiam no Beco do Arco (hoje Rua do Arco), soldados que se achavam em ronda naquela rua causaram grande distúrbio, pondo em completa debandada os mansos transeuntes e os inocentes assistentes. Ainda segundo o jornal, os praças transformando sabre em sardinha, a bambolear o corpo com gestos de capoeiragem e atitude agressiva ameaçavam a tudo e a todos, retirando-se os valentes somente quando o beco ficou deserto pela fuga precipitada do povo indefeso.

Além de diversos conflitos com a população durante o carnaval, no terceiro e último dia provocaram novo sarilho na sede da Sociedade Musical Estrela, na Rua General Osório, onde ocorria um baile de carnaval. O subdelegado e os soldados invadiram a sede e avançaram com ganância sobre a mesa de um botequim comendo todos os pastéis, beberam quanto quiseram, recusando-se a efetuar o pagamento do que haviam consumido. A seguir, embriagados, se retiraram para a sala do baile e tomaram a pulso parte nas danças.

Ao som de um tango choroso e mole os policiais dançaram um maxixe quebrado e dengoso, a folgar carnavalescamente. O subdelegado, esquecendo-se da posição de seu cargo, atirou-se num “choro gostoso”, gritando: “Não sou autoridade, não sou nada! Sou um homem como os demais!” Depois de quebrarem uma talha d´água, o subdelegado e os soldados em promíscua confusão e ao som de uma “habanera” deixaram a sede do clube.

Chegando à rua, com a voz esganiçada, falavam aos assustados transeuntes: “vocês nos conhecem? Nós somos os encarregados de velar pela segurança e tranquilidade pública!” Não obstante a violência da cena não deixa de ser jocoso o comportamento da polícia. Existem duas histórias muito divertidas sobre a quarta-feira de cinzas. O primeiro deles era o enterro do carnaval, manifestação popular ocorrida até 1960. O cortejo saía do bairro Ypu e percorria as ruas da cidade, encerrando os festejos do Momo. De roupas escuras o imigrante italiano Giuseppe Nicoliello presidia o evento anualmente. Foi proibida pela Diocese porque nos cortejos saía um indivíduo vestido de padre benzendo o caixão.

Outro evento divertido da quarta-feira de cinzas se refere aos indivíduos que eram presos no carnaval. Era uma prática permanecerem na cadeia durante os dias da folia. Em meados do século 20 a delegacia de polícia de Nova Friburgo parecia não ser muito frequentada já que podia dar-se ao luxo de tirar de circulação no carnaval os criadores de caso e baderneiros. Nesta ocasião a delegacia de polícia funcionava na avenida Comte Bittencourt em um belíssimo palacete que pertencera a Casa de Itália.

Na quarta-feira populares aguardavam ansiosos no entorno da delegacia a soltura dos foliões pois tinham curiosidade de saber quem fora pego na rede. Era uma algazarra só quando saía da delegacia, ainda fantasiado, algum conhecido. Vamos a mais histórias sobre os velhos carnavais.

De acordo com Luiz Zulmar que faz parte da diretoria da Vilage, nos anos de 1960 as escolas de samba saíam às ruas cercadas por uma corda e por isto passaram a ser chamadas de cordões. Isto para que os populares não se misturassem aos componentes das escolas atrapalhando o desfile. Nesta ocasião os componentes variavam entre 100 a 150 pessoas. Nos desfiles as escolas de samba circulavam pelas ruas passando pela praça Getúlio Vargas e Rua Dante Laginestra e seguiam para a Alberto Braune. No meio desta avenida havia um palanque. Os componentes das escolas subiam uma rampa e ficavam no palanque por algum tempo. Era o ponto alto do desfile. Desfilavam durantes dois dias, no domingo e na terça-feira.

Os instrumentos eram de latão fornecido pela fábrica de carbureto, resto de couro cedido pelo curtume das Duas Pedras e com couro de gato confeccionavam o tamborim, algo chocante nos dias de hoje. Já que o artigo é sobre memória recordo-me de Rubem Sérgio Venezia. Para quem não o conhece foi um carnavalesco apaixonado pelo carnaval. Venezia faleceu precocemente quando estava prestes a publicar um livro que reunia os sambas enredo de todas as escolas de samba, desde o ano de 1955, quando surgiu pela primeira vez. É certo que faltavam alguns sambas, mas muito poucos e não comprometeria a importante coletânea de seu hercúleo trabalho de pesquisa.

O livro tinha como título “De Dom João ao dom de sambar: os batuques do Morro Queimado”. Desejo que um dia seja publicada esta obra posto que servirá como importante fonte para os pesquisadores de história cultural e deleite para a população friburguense.

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    Prazer da Mocidade, da Campesina

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    Enterro do carnaval, ano de 1960

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    Alunos do Samba, década de 1950

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De Beuclair: os médicos dos escravos

quinta-feira, 04 de fevereiro de 2021

Antes de iniciar a narrativa sobre a família De Beauclair, cabe uma indagação. Por que os fazendeiros produtores de café passaram a contratar médicos para cuidar especificamente de seus escravos? A lei Eusébio de Queiroz de 1850, que proibiu o tráfico negreiro no Atlântico Sul com o continente africano fez aumentar extraordinariamente o preço dos escravos. Os fazendeiros abastados e com significativo plantel de escravos passaram a recorrer aos serviços de médicos europeus que vinham para o Brasil na segunda metade do século 19.

Antes de iniciar a narrativa sobre a família De Beauclair, cabe uma indagação. Por que os fazendeiros produtores de café passaram a contratar médicos para cuidar especificamente de seus escravos? A lei Eusébio de Queiroz de 1850, que proibiu o tráfico negreiro no Atlântico Sul com o continente africano fez aumentar extraordinariamente o preço dos escravos. Os fazendeiros abastados e com significativo plantel de escravos passaram a recorrer aos serviços de médicos europeus que vinham para o Brasil na segunda metade do século 19. Antes da mencionada lei, os escravos enfermos eram tratados pelos próprios senhores que faziam uso de remédios à base de ervas, as mezinhas caseiras, ou mesmo delegando o tratamento aos escravos curandeiros, figura tradicional da cultura africana. Ser escravo no Brasil, como nos ensina Kátia Mattoso era trabalhar entre 15 a 17 horas ao dia. O tempo de vida do escravo no eito não passava de sete anos e as enfermidades advinham tanto da excessiva jornada como das condições insalubres de trabalho. Stanley Stein em “Grandeza e decadência do café no Vale do Paraíba” nos informa que os médicos se estabeleciam em fazendas, em pontos centrais nas áreas agrícolas de determinado município, e atendiam a chamados das fazendas vizinhas. O mais comum dos males nas fazendas de café era o bicho-de-pé. Uma vez introduzido na parte carnuda e calejada do pé carcomia os dedos e a sola produzindo úlceras e incapacitando o escravo para o trabalho. Eram também doenças comuns entre os escravizados a tuberculose, cólicas, prisão de ventre, convulsões, tosse comprida e a erisipela, resultando esta última em elefantíase ou lepra. Os escravos padeciam de infecções respiratórias em razão de atividades como descascar e peneirar os grãos de café que produziam um pó fino prejudicial à saúde, afetando-lhes os pulmões, a pele e os olhos. Entrevistei Mary Beauclair que me trouxe informações sobre os seus ancestrais, os alemães De Beauclair que vieram para Cantagalo trabalhar nas fazendas de café como médicos. O seu bisavô Johann Adolpho Rouville de Beauclair era médico e nasceu em Hessen, na Alemanha. Veio para o Brasil acompanhado de seu irmão igualmente médico Victor Leopold de Beauclair. Johann Adolpho casou-se em Cantagalo em 8 de junho de 1858 com Ângela Elvira de Roure. Já Victor Leopold se casou com Emma Dietrich, filha do vice-cônsul suíço em Cantagalo Heinrich Dietrich. Cabe aqui uma explicação sobre os Beauclair. Não obstante serem alemães herdaram do tataravô Jean Pierre Rouville de T. de Beauclair, nascido em Paris, o nome de família francês. O trisavô era Louis Nicolas Rouville Dicté de Beauclair. Beauclair é uma comuna francesa no departamento de Meuse que em 2010 tinha 83 habitantes. De acordo com a historiadora Anne Proença em sua tese de mestrado “Vida de médico no interior fluminense, a trajetória de Carlos Éboli em Cantagalo e Nova Friburgo”, no ano de 1855 Johann Adolpho constava no Almanak Laemmert como médico em Cantagalo. Possivelmente foi neste ano que os irmãos Beauclair chegaram ao Brasil para trabalhar em Cantagalo, atendendo a uma demanda por médicos nas unidades de produção de café pelo motivo já apontado. Segundo Proença, Johann Adolpho atendia na Fazenda Tanques e em outras propriedades rurais, sendo que todos os médicos que atuavam nas fazendas também realizavam atendimentos na localidade. Já Victor Leopold atendia na Fazenda Macapá, em São Fidélis, de propriedade do Barão de Nova Friburgo, mas fazia também atendimento na corte. Logo, as grandes fazendas de café tinham o seu próprio médico e uma construção isolada servia de hospital. Os médicos Johann Adolpho e Victor Leopold retornaram para a Europa, mas tudo indica que não foi essa a intenção do primeiro deles. Adolpho além de médico da Fazenda Tanques era sócio efetivo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Portanto, parecia ter deitado raízes no Brasil. A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional posicionou-se pela abolição gradual da escravidão, apoiou a política de colonização com a distribuição de pequenos lotes para estrangeiros e brasileiros e o sistema de parceria na lavoura cafeeira. Incentivou também a expansão da pequena propriedade rural e criticava o latifúndio improdutivo. De acordo com o historiador Henrique Bon, o filho de Victor Leopold, cujo nome é homônimo ao do pai, nascido em 1874, em Cantagalo, cursou medicina em Zurich. Aventureiro, praticava o balonismo, tendo no ano de 1907 sido o primeiro a transpor os Alpes entre a Suíça e a Itália no balão Le Cognac. Filiado ao aeroclube da França recebeu de Santos Dumont um prêmio por ter permanecido em voo ininterrupto durante 56 horas, batendo um recorde. Seus feitos foram registrados nos anais do balonismo mundial. Mesmo sendo um alpinista experiente, Victor de Beauclair morreu com a esposa em 15 de agosto de 1929, ao escalar o Matterhorn na fronteira entre a Suíça e a Itália. Por outro lado, dois filhos de Johann Adolpho, Frederico e Jacob Adolf retornaram ao Brasil e Mary descendeu do tronco familiar do segundo. Seu pai Álvaro Beauclair, filho de Jacob Adolf nasceu em Cantagalo e tinha 82 anos quando a concebeu. Já o filho de Frederico, o mestre cervejeiro Albano Beauclair, estabeleceu em Nova Friburgo, em 1893, a fábrica de cerveja Beauclair produzindo a cerveja Friburgo Brau, com maquinário importado da Alemanha. Mary Beauclair escreveu um livro sobre a sua família nos presenteando com mais detalhes sobre a interessante história de seus ancestrais.

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Em memória de Brigitte Schlupp

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

A família de Brigitte Schlupp veio para o Brasil no início da década de 1920, se instalando inicialmente na Bahia, onde havia muitos imigrantes alemães. Brigitte nasceu na Alemanha, em 23 de janeiro de 1918, e possivelmente a família emigrou em razão da crise econômica na Alemanha provocada pela Primeira Guerra Mundial.

A família de Brigitte Schlupp veio para o Brasil no início da década de 1920, se instalando inicialmente na Bahia, onde havia muitos imigrantes alemães. Brigitte nasceu na Alemanha, em 23 de janeiro de 1918, e possivelmente a família emigrou em razão da crise econômica na Alemanha provocada pela Primeira Guerra Mundial.

Na Bahia se recorda de uma história que a mãe lhe contara. Certa feita sua mãe lhe pediu que fosse à rua comprar pão. Tinha aproximadamente cinco anos de idade. Uma mulher negra lhe pegou pela mão e a conduziu à sua casa, advertindo sua mãe: “Não se pode deixar uma menina branca ir sozinha na rua. Isso não é costume”.

Viveu sua adolescência no Rio de Janeiro, casando-se em Nova Friburgo com o pastor luterano Johannes Edward Schlupp, nascido em 19 de abril de 1911, igualmente na Alemanha. O casal veio para Nova Friburgo em 12 de fevereiro de 1937 e o pastor tinha uma missão árdua e importante na cidade serrana. Havia uma cisão no seio da Sociedade Alemã de Escola e Culto, em razão de um grupo liderado por Maximiliam Falck apoiar o Partido Nacional Socialista da Alemanha, criando inclusive uma base de apoio do regime nazista em Nova Friburgo.

Os dois grupos antagônicos pró e contra Adolf Hitler sequer se cumprimentavam na igreja Luterana. O pastor Schlupp conseguiu superar essa dissensão e pacificar a comunidade alemã. O Conselheiro Julius Arp, proprietário da Fábrica de Rendas Arp, pediu ao pastor que fixasse domicílio em Nova Friburgo para manter a unidade dos alemães e ele aceitou.

Nos seus 19 anos, Brigitte Schlupp se encantou com a cidade e se sentia muito familiarizada devido à presença de muitos alemães no município. Segundo Brigitte, os brasileiros eram muito pacientes. Como os alemães falavam com frequência a língua pátria entre si, os açougueiros e quitandeiros se adaptaram e já falavam alguma coisa em alemão com os seus fregueses.

Os alemães praticavam muitos esportes em Nova Friburgo, lembra. Brigitte fazia natação, jogava tênis, praticava ciclismo e chegou até a escalar o Pico das Agulhas Negras, com seu pai. Na vida cotidiana, a primeira geração de alemães comia apenas pratos de seu torrão natal. Brigitte somente comia arroz, feijão e angu na casa dos vizinhos. Porém, quando criou os seus filhos já os alimentava nos moldes da típica cozinha brasileira.

Em 1949, o pastor Schlupp adquiriu o Colégio Cêfel, que pertencera à Cooperativa Educacional Friburguense Evangélica fundada pelo pastor presbiteriano reverendo Trasilbo Filgueiras e posteriormente administrada por professores metodistas ligados à Associação Cristã de Moços. Este colégio se tornou um dos mais importantes estabelecimentos educacionais, da cidade, reconhecido pela qualidade de seu ensino.             Durante e após a Segunda Guerra Mundial (1939-45), os alemães foram muito hostilizados pela população de Nova Friburgo em razão do posicionamento da Alemanha neste conflito. Muitos foram presos, inclusive o pastor Schlupp, entre os anos de 1942 e 1943 e conduzidos à penitenciária de Niterói, onde ficaram detidos por três meses. Alguns foram enviados para a Ilha Grande.

A Igreja Luterana foi fechada e até mesmo o cemitério dos alemães interditado para visitas. Todo alemão que se deslocasse de um município a outro deveria apresentar um salvo-conduto expedido pelo subdelegado de polícia.

Brigitte, como os seus conterrâneos, não poderia mais falar o idioma pátrio em público. Segundo ela, ocorreu um fato pitoresco nesta ocasião. Uma alemã foi presa em Araruama por um motivo bizarro. Faltou luz em sua residência que ficava próxima à costa do mar e como não havia iluminação ela acendeu um lampião. Foi presa por suspeita de estar transmitindo informações por sinal a um submarino alemão.

Também se recorda do Teatro D. Eugênia e dos passeios nas alamedas da Praça Getúlio Vargas. Segundo ela, de um lado da alameda circulavam os ricos e na outra, os pobres, numa clara divisão de classes sociais. Lembra que antes das seis horas da manhã despertava com o som de toc-toc-toc dos tamancos dos operários dirigindo-se às inúmeras fábricas da cidade:

“As fábricas apitavam e os tamancos iam para a fábrica.” Depois vieram as bicicletas. Os industriais financiaram este veículo para os operários. Quando perguntada sobre a tuberculose, lembra-se que havia muitos tuberculosos e, por isso, não se podia tomar um cafezinho nos bares da cidade. A senhora tinha medo dos tuberculosos?, pergunto.

“Eu não, todo mundo tinha medo. E muitas vezes houve brigas porque o pessoal (marujos tuberculosos) lá do Sanatório (Naval) fugia à noite para fazer farra aqui na cidade. Isso era conhecido...”

Entrevistei Brigitte Schlupp quando ela tinha 92 anos de idade e perguntei-lhe sobre sua memória do trem. Ela me disse que tinha por hábito ir à estação de trem ver os veranistas chegarem, uma mania entre os friburguenses. Você conhece a piada do trem? pergunta.

“O pessoal de fora perguntava por que nasciam tantas crianças em Friburgo. Ah, isso é claro. O trem passa às dez horas (da noite) batendo o sino, pim pim pim, o pessoal acorda, não consegue mais dormir e então...”.  

Brigitte Schlupp faleceu esta semana aos 103 anos de idade. Sua alegria e docilidade deu-lhe longevidade.

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    Brigitte Schlupp homenageada no bicentenário de Nova Friburgo.

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    Brigitte Schlupp homenageada pela Câmara Municipal.

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    O pastor luterano Johannes Edward Schlupp ao centro da foto.

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A ilustre presença de Machado de Assis em Nova Friburgo

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

A primeira vez que Machado de Assis esteve em Nova Friburgo foi em 1878, para tratar de uma estafa e de uma retinite. Desde a sua criação Nova Friburgo era um município conhecido pela salubridade de seu clima atraindo indivíduos que vinham se curar da tuberculose que afligia, pelo menos, um membro de cada família brasileira. Neste sentido, este município era uma estância de cura para onde se dirigiam os cariocas abastados ou morigerados para a convalescência da tísica ou de outros “incômodos”.

A primeira vez que Machado de Assis esteve em Nova Friburgo foi em 1878, para tratar de uma estafa e de uma retinite. Desde a sua criação Nova Friburgo era um município conhecido pela salubridade de seu clima atraindo indivíduos que vinham se curar da tuberculose que afligia, pelo menos, um membro de cada família brasileira. Neste sentido, este município era uma estância de cura para onde se dirigiam os cariocas abastados ou morigerados para a convalescência da tísica ou de outros “incômodos”.

Foram em duas correspondências com o escritor José Veríssimo, que estava naquela ocasião em Nova Friburgo, que Machado de Assis fez referência a sua convalescença na cidade serrana. A primeira carta data de 1 de dezembro de 1897. “Meu caro José Veríssimo(...) Estimei ler o que me diz dos bons efeitos de Nova Friburgo. A mim esse lugar para onde fui cadavérico há uns dezessete [dezenove] anos, e donde saí gordo, ce qu’on appelle gordo, há de sempre lembrar com saudades. Estou certo que lucrará muito, e todos os seus também, e invejo-lhes a temperatura...”

Já na segunda carta que data de 1º de fevereiro de 1901, escreveu: “Meu caro J. Veríssimo. Creio que se lembra de mim lá em cima [Nova Friburgo]; também eu me lembro de você cá em baixo, com a diferença que você tem as alamedas do belo parque para recordar os amigos, e eu tenho as ruas desta cidade. Li com inveja as notícias que me dá daí e dos seus dias gloriosos.(...) Nova Friburgo é terra abençoada. Foi aí que, depois de longa moléstia me refiz das carnes perdidas e do ânimo abatido. (...) consegui engordar como nunca...”

Em 16 de fevereiro de 1901, Machado escreveu: “...Pela outra sua [carta] vi que está passando bem, tão bem que até me quisera lá. Eu não menos quisera subir [para Nova Friburgo], apesar de carioca enragé; ao Sancho Pimentel, que há dias me convidava a acompanhá-lo, respondi com a verdade, isto é, que não posso deixar o meu posto.(...) Já tivemos frio! Verdade é que ter frio não é ter Nova Friburgo. A prova do benefício que lhe faz esse clima delicioso, com a vida que lhe corresponde, cá temos tido nas suas revistas literárias, que são para gulosos...”.

Buscando a melhora de uma moléstia da esposa, em janeiro de 1904, o escritor viajou para a salubre Nova Friburgo com Carolina Augusta Xavier de Novaes Machado de Assis, que padecia de uma infecção intestinal deixando-a anêmica. Em 1878 o casal se hospedara no Hotel Salusse, mas nesta segunda estadia optaram pelo Hotel Engert, que tinha instalações ajardinadas.

De Nova Friburgo, Machado de Assis escreveu em 14 de janeiro de 1904 a Veríssimo: “Minha mulher agradece-lhe igualmente os seus bons desejos, e espera, como eu, ganhar aqui o que se perdeu com a doença, se não é esta anemia que persiste ainda; o clima é bom e dizem que famoso para esta sorte de males.(...) Vim achar aqui alguma diferença do que era há vinte [vinte e seis] anos, não tal, porém, que pareça outra cousa. Há um jardim bem cuidado, e algo mais. O resto conserva-se. (...) Quanto ao algo novo, além do jardim público e árvores recém-plantadas, são uma dúzia de casas de residência e ruas começadas...” Em 17 de janeiro escreve ao amigo dando novas notícias da esposa. “...Minha mulher vai passando melhor, conquanto algumas pessoas amigas nos arrastassem a visitas e excursões e dessem conosco no teatro [Dona Eugênia], anteontem. O ar é bom, o calor não é mau, sem ser da mesma intensidade que o de lá [Rio de Janeiro], segundo contam e leio. Eu vou andando; não tenho a palestra do Garnier [livraria], e particularmente a nossa, mas você tem a arte de a fazer lembrar.”

Nas demais correspondências com Veríssimo, Machado ironizava escrevendo que do Hotel Engert ouvia as vozes secretas da Câmara Municipal, mencionava as chuvas constantes que lhes impediam os passeios, relatou uma missa e uma procissão, escreveu sobre o Colégio Anchieta em fase de construção, de suas saudades do Rio, de um conhecido de ambos que encontrou em Friburgo buscando a cura do filho e sobre uma febre que acometera o escritor. Mais uma vez ironizou: “Veja o que são as cousas deste mundo. Entrei com saúde em cidade, onde outros vêm convalescer de moléstia, e apanhei uma moléstia.”

Machado de Assis parece ter ficado em Nova Friburgo com a esposa por quase três meses, até quase o fim de março. No entanto, Carolina faleceu em outubro daquele ano.

Voltando no tempo, em 1893, discutia-se a mudança da capital do Estado do Rio de Janeiro, de Niterói para um município do interior. Nova Friburgo estava entre as cidades com boas chances de ser a sede do governo estadual. A este respeito escreveu Machado de Assis: “Também há quem indique Nova Friburgo e, se eu me deixasse levar pelas boas recordações dos hotéis Leuenroth e Salusse, não aconselharia outra cidade. Mas, além de não pertencer ao Estado (sou puro carioca), jamais iria contra a opinião dos meus concidadãos unicamente para satisfazer reminiscências culinárias. Nem só culinárias; mas também as tenho coreográficas... Oh! bons e saudosos bailes do salão Salusse! Convivas desse tempo, onde ides vós? Uns morreram, outros casaram, outros envelheceram; e, no meio de tanta fuga, é provável que alguns fugissem. Falo de quatorze [quinze] anos atrás. Resta ao menos este miserável escriba, que, em vez de lá estar outra vez, no alto da serra, aqui fica a comer-lhes o tempo.”

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