Escravidão e castigo

quinta-feira, 04 de março de 2021

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos (...) Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. (...) Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas.

Já o ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginem uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até o alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho (...) A fuga repetia-se, entretanto.

Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncio nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha a promessa gratificar-se-á generosamente ou receberá uma boa gratificação. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara no ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo rigor da lei contra quem o acoutasse.

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

Cândido Neves(...) cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade;(...) era dado em demasia a patuscadas.(...) mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém.(...) Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória.

Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobrira logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava o lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão. Este texto foi extraído da crônica de Machado de Assis “Pai contra mãe”.

Em Nova Friburgo os suíços Henri Mozer e François Vuillemin requereram provimento de capitão do mato nas cabeceiras do Rio Macaé de Cima. A norma estabelecia que quanto mais distante da vila a captura maior seria a remuneração. Os escravos fugiam com frequência das fazendas. Em abril de 1822 há referência de escravos aquilombados nas partes de Macaé e que nesse quilombo havia 14 deles. Mesmo sem provisão na função de capitão do mato qualquer indivíduo que prendesse um escravo fugitivo seria gratificado. Esta despesa seria paga pela Câmara Municipal e reembolsada de seu senhor quando lhe fosse entregue.

O colono suíço Joseph Hecht deixou o seguinte registro: “... Com frequência víamos passar por nossa cidade de Nova Friburgo negros fugidos que tinham sido capturados pelos caçadores contratados e que estavam sendo devolvidos aos donos. (...) Para quem se dedicava a essa maldita atividade, essa paga era suficiente. O negro que fugia pela primeira vez era espancado de forma horrível. Se fugisse uma segunda vez era novamente espancado brutalmente, mas isso não era tudo. Uma corrente era presa ao seu corpo com uma parte pendendo para baixo por meio da qual as pernas eram presas a uma argola. A corrente lateral era soldada a outra argola. Nessa miserável condição com o corpo todo apertado ele tinha de trabalhar e dormir. Quando dois escravos fugiam juntos eram depois acorrentados juntos a uma argola e assim forçados a trabalhar...” Acompanha este artigo duas imagens de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) sobre o cotidiano dos escravos castigados.

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    A máscara de folha-de-flandres. Foto Fabrice Monteiro

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    As punições eram públicas. Jean-Baptiste Debret

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    Depois do açoite o tronco. Jean-Baptiste Debret

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