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Lauro Henrique, o flâner de Nova Friburgo

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Faleceu na semana passada aos 80 anos Lauro Henrique Alves Pinto. Tudo sobre ele foi escrito no site de A VOZ DA SERRA pela jornalista Adriana Oliveira na reportagem “Nova Friburgo perde a elegância de Lauro Henrique Alves Pinto”, publicada na última segunda-feira, 26. Recomendo a leitura para quem deseja conhecer a trajetória de vida de nosso querido Lauro.

Faleceu na semana passada aos 80 anos Lauro Henrique Alves Pinto. Tudo sobre ele foi escrito no site de A VOZ DA SERRA pela jornalista Adriana Oliveira na reportagem “Nova Friburgo perde a elegância de Lauro Henrique Alves Pinto”, publicada na última segunda-feira, 26. Recomendo a leitura para quem deseja conhecer a trajetória de vida de nosso querido Lauro.

O carioca Lauro Henrique me chamou a atenção por estar em todos os acontecimentos culturais na cidade. Era um flâner e como tal perambulava pelo centro da cidade, onde residia. Veranista habitué em Nova Friburgo estabeleceu domicílio no município no ano de 2015. Acho que fui a pessoa que mais soube tirar proveito da genialidade Lauro Henrique. Fiz uma entrevista com ele para o programa “A Velha Nova Friburgo” e dois documentários em sua residência, ocasião em que mostrou o preciosíssimo acervo que possuía. Além disso tenho outras entrevistas que fiz com ele mas que não divulguei ainda.

No acervo de Lauro Henrique livros raríssimos como um sobre a Guerra do Paraguai com ilustrações em aquarela, uma espada da Guarda Nacional do período republicano, de seu avô, um pince nez, uma boceta de rapé (caixa usada para guardar o tabaco em pó), gibis muito antigos, uma coleção de moedas desde o Império assim como notas de dinheiro de todo o século 20, xícaras antigas de porcelana, entre outros inúmeros objetos antigos.

De família de militares Lauro herdou uma pistola de soldados alemães da Segunda Guerra Mundial. Segundo Braulio Batista, armeiro da Polícia Militar que consultei, trata-se de uma pistola mauser C96 7,63mm Schnellfeuer. Mas uma das coisas que mais me encantou foram as cartas do avô de Lauro a sua avó quando noivavam, que datam de 1900, escritas em papel de arroz e passo a transcrever duas delas, na escrita original, para deleite dos leitores desta coluna.

“Sinhá. Rio de Janeiro, 18 de março de 1900. Acabo de chegar e bem vês imediatamente te escrevo. Aliás não podias esperar que assim não acontecesse, sabendo bem a sinceridade do sentimento de affeição que te dedico, a tal ponto extremado que tem absorvido in totum os meus pensamentos e affirmo-te absorvel-os-ha para sempre! Em ahi estando, todo o meu orgulho, o meu prazer único, seria gozar do delicioso título de teu noivo pelo menos durante tres dias e sabes bem o quanto fiz para alcançal-o. Infelizmente, só no momento da minha despedida, e mesmo assim de modo tácito, concedeste-me tal ventura, tornando-me desde aquelle instante inexquecível o mais feliz dos mortaes. Sim o mais feliz sel-o-hei porque, esforçando-me para tornar-te a vida amena e venturosa, sentir-me-hei igualmente feliz e venturoso. O meu pezar unico é que haja de esperar trezentos e tantos dias para a realização dos meus sonhos de ventura e que tenha de contar 24 longas horas em cada uma dellas! Enfim, durante este longo tempo terás para mim uma existencia puramente subjectiva, imaterial e reinarás no meu espirito de modo absoluto, despótico, omnipotente e terei ipso facto uma compensação de bem-estar relativo. Seria mentir a mim proprio dizer ser a confiança que em ti deposito limitada, eivada de jaças; não! Afirmo o contrario. A tua altivez natural, o teu rosto bello e sereno, indicam bem sentimentos nobres, caracter superior, vontade firme e inabalavel. Confio em ti cega e ilimitadamente. És digna deste conceito. Recommendo-me aos que te são charos[caros]. Aceita um aperto de mão, saudoso e sincero do teu noivo. Christiano.”

Segue a segunda carta. “Rio de Janeiro, 15 de junho de 1900. Sinhá. Ainda sob o domínio da agradavel impressão dos momentos inexquecíveis que ahi passei, tomo da pena para comunicar-te a minha chegada n’este mesmo instante a esta capital. Assim procedendo tenho satisfeito á posteriori o dever de agradecer-te as attenções e amabilidades com que que recebes-te e á priori a necessidade que suponho evidente, de dar-te ensejo de escrever-me respondendo esta. Estou bem certo que assim o farás porque m’a promettes-te firmemente no momento da minha despedida tendo além d’isso occasião de me remeteres a medida para o vestido, que eu desejo seja completa, isto é, que acompanhe a das mãos e a dos pés(comprimento e altura). Não supponhas ser exigencia minha fazer o pedido com certa urgencia pois que, sendo um pouco cedo ainda para tratar-se do teu enxoval, a modista d’elle encarregado parte no dia 25 deste para Pariz, e desejaria que elle viesse prompto da capital da França. Comquanto fosse dever meu e houvesse prometido despedir-me de D. Elizena e Dondona, não o pude fazer porque a fogueira de Santo Antonio estava tão agradável que me prendeu com os seus reflexos auri-caloricos, até 1 hora da madrugada, como bem viste. Espero que apresentes ás mesmas as minhas desculpas, dando-lhes ao mesmo tempo minhas recomendações e saudades. Envie-as egualmente ao Sr. Totó e D. Agostinha. Sem mais por hoje, dispõe como quiseres. Do teu noivo Christiano.”

Assim como flanava pelo centro de Nova Friburgo, Lauro Henrique flana nesse momento ao lado do Senhor. Paz a sua alma.

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    Carta escrita em 1900 em papel de arroz

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    Lauro exibe a pistola mauser da Segunda Guerra Mundial (Acervo pessoal)

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    Lauro Henrique quando criança, tendo sido a música sua grande paixão

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Retalhos da vida de João Baptista da Silva

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Há algumas semanas atrás li o livro “João Baptista da Silva. Sua vida, sua história”. Organizado por seus filhos trata-se na realidade de uma autobiografia já que o saudoso João Baptista deixou muitos relatos escritos nos quais os autores se valeram fazendo poucas intervenções. Casado com Adília Gomes teve quatro filhos Lúcio Flavo, Renato Henrique, Maria Inês e José Antônio Gomes da Silva, se empenhando com sacrifício para que todos tivessem curso superior.

Há algumas semanas atrás li o livro “João Baptista da Silva. Sua vida, sua história”. Organizado por seus filhos trata-se na realidade de uma autobiografia já que o saudoso João Baptista deixou muitos relatos escritos nos quais os autores se valeram fazendo poucas intervenções. Casado com Adília Gomes teve quatro filhos Lúcio Flavo, Renato Henrique, Maria Inês e José Antônio Gomes da Silva, se empenhando com sacrifício para que todos tivessem curso superior.

Nascido em Nova Friburgo em 19 de setembro de 1919 era o caçula de sete irmãos. Era neto de uma escrava, Esperança de Jesus, cuja origem se orgulhava e gostava de destacar. Segundo o jornalista Nelson Kemp “era uma baiana prendada. A melhor doceira que Friburgo conheceu”. Toda a sua formação educacional foi feita com muito esforço em razão de sua condição financeira alcançando a graduação em Direito, cujo bacharelado concluiu com quase 60 anos de idade. João Baptista era conhecido como JB e escreveu durante muitos anos a coluna “Retalhos” aqui em A VOZ DA SERRA e produziu e apresentou dois programas de rádio “Ondas Verdejantes” e “Esperança no Ar”.

Em razão de seu talento como artilheiro foi admitido na Fábrica Rendas Arp. Era muito comum à época as indústrias cooptarem bons jogadores de futebol para reforçar o seu time nos jogos dos industriários. João Baptista trabalhou na Rendas Arp no período de 1941 a 1970. No ano de 1952, disputou a primeira eleição para vereador. Porém, um homicídio ocorrido em seu local de trabalho prejudicou a sua candidatura.

Este homicídio relatei em artigo na semana passada nesta coluna pois teve grande impacto no município dividindo opiniões entre a população friburguense. Em novembro de 1952, o operário José Alves Pinheiro em legítima defesa feriu com uma faca o gerente da fábrica Rendas Arp, Henrique Frederico Fernando Witte, que faleceu quase um mês depois desse incidente. Neste conflito, antes de sua ação o operário buscara a intermediação de João Baptista já que ele era muito respeitado pelos funcionários da fábrica e trabalhava no mesmo setor que a vítima. Baptista intercedeu mas não obteve sucesso e em sua autobiografia, quando se refere sobre esse acontecimento, parece indicar a “deflagração de uma luta de classe”. Sugere que o operário José Alves Pinheiro estaria contaminado por um determinado movimento político que implantara a “semente do ódio” nos indivíduos, envenenado lhes a alma.

Passado esse episódio no ano de 1958 João Baptista elegeu-se vereador pelo Partido Trabalhista Nacional sendo reeleito para dois outros mandatos como vereador. Em 1962 foi eleito pelo Partido Social Democrático e no ano de 1966 pelo Movimento Democrático Brasileiro, recebendo a maior votação dada a um vereador. Participou de inúmeras associações recreativas, sociais e culturais no município que faz questão de destacar em sua biografia.

Entre os anos 50 e 70 do século passado era difícil imaginar uma instituição em Nova Friburgo no qual não fizesse parte. Para ficar em apenas alguns exemplos, João Baptista foi presidente do Recreio dos Empregados da Fábrica de Rendas Arp, presidente dos clubes de Malha de Nova Friburgo, vice-presidente da Sociedade União Humanitária dos Operários, conselheiro do Esperança Futebol Clube, membro do Conselho Deliberativo da Santa Casa e igualmente das duas sociedades musicais Euterpe e Campesina.

Baptista amava o seu torrão natal e podemos perceber isso quando escreveu “O segredo enigmático de querer sempre retornar à cidade de Nova Friburgo é que o criador houve por bem, entre os píncaros de elevados montes, num país maravilhoso, de permitir a existência de um paraíso em miniatura, onde os homens pudessem antegozar as delícias do éden celestial”.

Considerado um excelente orador fez o discurso na inauguração do obelisco em homenagem aos expedicionários do município de Nova Friburgo, na Praça do Suspiro. Gosto muito de destacar outro episódio importante de que foi partícipe. Foi secretário da Comissão de Repulsa à proposta de um grupo de áulicos getulistas que objetivavam a mudança do nome de Nova Friburgo, para Amaral Peixoto para homenagear ao genro do presidente Getúlio Vargas. Não fosse a sua intervenção estaríamos hoje dizendo que somos peixotenses ao invés de friburguenses.

O livro traz depoimentos de pessoas que conviveram com João Baptista, como o de José Carlos Schuenck que disse ser ele um exímio prosador. De fato escrever poemas, poesias, acrósticos e trovas foi uma de suas paixões e no livro podemos conhecer parte de sua obra. Uma parte interessante de sua biografia foi o discurso que fez em 1964 em homenagem ao embaixador da Alemanha. Ele nos brinda com um histórico sobre os industriais e técnicos alemães que instalaram as indústrias têxteis em Nova Friburgo na segunda década do século 20.

Falecido em 2 de agosto de 1988, a autobiografia de João Baptista da Silva nos lega o registro de um homem de seu tempo cuja trajetória orgulha muito os seus filhos e netos e nos presenteia com importantes eventos do passado da vida cotidiana de Nova Friburgo.  

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    João Baptista da Silva na tribuna da Câmara Municipal

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    João Baptista foi vereador em três mandatos

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    O livro é uma autobiografia organizada por seus filhos

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Um crime que abalou Nova Friburgo

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

“Matou o patrão para não ser estrangulado”. Esta era a manchete sensacionalista de uma reportagem publicada pelo jornal Luta Democrática, em 21 de julho de 1954. Trata-se de um crime que abalou Nova Friburgo em meados do século 20. Conversando com o amigo Bráulio Batista que é policial militar e estudante de história falávamos sobre esse crime e ele me motivou a escrever um artigo. Procurei extrair da reportagem somente a cronologia do crime e o motivo que o provocou, já que este jornal era tendencioso e pertencia a Tenório Cavalcanti, um dos advogados no julgamento.

“Matou o patrão para não ser estrangulado”. Esta era a manchete sensacionalista de uma reportagem publicada pelo jornal Luta Democrática, em 21 de julho de 1954. Trata-se de um crime que abalou Nova Friburgo em meados do século 20. Conversando com o amigo Bráulio Batista que é policial militar e estudante de história falávamos sobre esse crime e ele me motivou a escrever um artigo. Procurei extrair da reportagem somente a cronologia do crime e o motivo que o provocou, já que este jornal era tendencioso e pertencia a Tenório Cavalcanti, um dos advogados no julgamento.

A população de Nova Friburgo viveu no dia 19 de julho de 1954 uma intensa expectativa pelo julgamento no tribunal do júri do operário José Alves Pinheiro, acusado do assassinato de Henrique Frederico Fernando Witte, gerente da fábrica Rendas Arp. O caso apaixonou os friburguenses e não tardou que dividisse a opinião pública surgindo daí grande parte do sensacionalismo que se revestiu esse julgamento, possivelmente o mais importante da história forense de Nova Friburgo.

O povo, na sua quase totalidade ficou ao lado do réu, enquanto certa parcela de empregadores colocou-se ao lado da vítima, nos informa o jornal Luta Democrática. Além da importância deste acontecimento nele iriam se enfrentar dois advogados gigantes do mundo jurídico, Evandro Lins e Silva e o deputado Natalício Tenório Cavalcanti de Albuquerque, conhecido como o homem da capa preta e por portar quase sempre uma metralhadora que chamava de Lourdinha.

A cidade parou para acompanhar o julgamento e muitos estabelecimentos comerciais não abriram. Quase ao meio-dia o movimento na praça Getúlio Vargas onde ficava o fórum era intenso. A multidão guardava lugares naquele logradouro pois corria a notícia de que o julgamento seria transmitido pela rádio local e que alto-falantes seriam colocados nas imediações do fórum. Era muito comum à época essa prática pois nem todos tinham aparelho de rádio.

Houve algum problema e do lado de fora a turba reclamava a ausência dos alto-falantes prometidos. Foi então que Tenório Cavalcanti com a ajuda de técnicos da cidade mandou fazer a instalação de alto-falantes da camioneta de seu jornal. Quando abriu-se a porta do tribunal do júri às 14h, as pessoas entraram aos empurrões lotando e se comprimindo no salão.

No dia 18 de novembro de 1952, às 10h30, o operário José Alves Pinheiro feriu com uma faca o gerente da fábrica Rendas Arp, Henrique Frederico Fernando Witte, 46 anos, que morreu 28 dias depois desse incidente. José Alves Pinheiro foi empregado na fábrica Rendas Arp durante dois períodos relativamente curtos. A sua primeira contratação foi em 1948, trabalhando por cinco meses, quando pediu demissão. Tempos depois voltou a trabalhar nessa fábrica quando foi dispensado em novembro de 1952, depois de um ano de trabalho. A demissão segundo o jornal foi sem justa causa e ninguém soube informar o motivo.

Dirigindo-se ao Departamento Pessoal sob a gerência de Henrique Frederico Fernando Witte, o operário demitido não se conformou com o valor de sua rescisão contratual. Não aceitou os dois mil cruzeiros oferecido por Witte. Procurou um advogado trabalhista e retornou à gerência com um parecer do mesmo que declarava que os seus direitos consistiam em seis mil cruzeiros, três vezes mais. No entanto Witte reafirmou que não pagaria mais de dois mil cruzeiros ao operário. Depois de muita insistência de José Pinheiro, o gerente fez uma nova oferta de 2.800 cruzeiros e que não foi aceito.

Pinheiro era arrimo de família de sua mãe e irmãos e temia recorrer a uma ação judicial pois o processo trabalhista era lento e a fábrica Rendas Arp normalmente esgotava todos os recursos. Não receberia tão cedo qualquer valor e a família passaria por privações. Continuou insistindo que a fábrica lhe pagasse o valor aferido pelo advogado alegando ter sido um bom operário e prova disso era que habitava uma das casas da Vila Arp, destinadas apenas aos funcionários de bom comportamento e qualificados.

Em determinado momento Witte disse que não pagaria nem mais os dois mil cruzeiros, pois estava irritado com a insistência de José Pinheiro. Este último propôs então ao gerente receber a indenização de cinco mil cruzeiros ou então ser admitido em outra seção, pois acreditava que se tratava de alguma antipatia o motivo de sua demissão. A sua proposta não foi aceita e Witte sugeriu que ele procurasse os seus direitos na justiça. Foi quando José Pinheiro argumentou que a fome já havia chegado em sua casa e, de acordo com o jornal, “o morto [Witte] disse que nada tinha com isso, deu um soco no operário e agarrou-o pelo pescoço furiosamente, tentando estrangulá-lo”.

Com porte físico bem inferior ao do gerente, José Pinheiro para se defender sacou de uma faca dando um único golpe em Witte no abdome, fugindo em seguida. No dia posterior apresentou-se à polícia. Evandro Lins e Silva contratado pela fábrica Rendas Arp atuou como assistente de acusação do promotor Helênio Verani. Já Tenório Cavalcanti era advogado do réu acompanhado do auxiliar Benigno Rodrigues. Presidia o Tribunal do Júri o juiz Antônio Neder.

No duelo de gigantes Evandro Lins e Silva ao ocupar a tribuna declarou que ali estava tão somente na qualidade de advogado e não como político e tampouco como candidato a qualquer pleito. Esta era uma investida contra o deputado Tenório Cavalcanti que respondeu nas considerações finais que ali estava como político, como deputado e como advogado mas não estava ganhando coisa nenhuma, pois o seu constituinte não poderia pagar “rios de dinheiro” como fez a Rendas Arp contratando Lins e Silva. E mais, o seu constituinte era pobre e não podia exercer a influência econômica das forças que ali lutavam pela sua condenação.

Tenório Cavalcanti atribuiu a atitude do réu a uma tensão social provocada pelos patrões e por um “gritante desequilíbrio social e econômico.” A sua tese foi a de legítima defesa, mas sutilmente tratava-se da luta entre o capital e o trabalho. O júri terminou às 5h da madrugada do dia seguinte. José Alves Pinheiro foi condenado a oito anos de reclusão, sendo que já cumprira dois anos. Pode-se afirmar que Tenório Cavalcanti saiu vitorioso.

Considerando que cumprida um terço da pena o condenado poderia requerer livramento condicional, em pouco mais de um ano José Alves Pinheiro estaria livre da prisão. Leyla Lopes se recorda desse acontecimento e nos informa que no dia seguinte ao julgamento, Tenório Cavalcanti desfilou em um cadillac conversível com a capota arriada pelas principais ruas da cidade. Trajava a sua capa preta debruada de cetim vermelho, colete à prova de bala, empunhando garbosamente a “Lourdinha”, sua metralhadora alemã.

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    Manchete no jornal Luta Democrática do crime que abalou Friburgo

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    Tenório Cavalcanti defendeu o operário gratuitamente

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    Tenório desfilou pelas ruas de Friburgo portando a sua metralhadora Lourdinha

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Procura-se escravo fugitivo

quinta-feira, 08 de outubro de 2020

Nas últimas semanas, fazendo uma pesquisa sobre determinado assunto na imprensa régia “Gazeta do Rio de Janeiro”, me chamou a atenção os avisos de escravos fugitivos. O que notadamente me impressionou foram as descrições de mutilações nos corpos desses cativos, uma forma de facilitar a identificação aos interessados na recompensa pela captura.

Nas últimas semanas, fazendo uma pesquisa sobre determinado assunto na imprensa régia “Gazeta do Rio de Janeiro”, me chamou a atenção os avisos de escravos fugitivos. O que notadamente me impressionou foram as descrições de mutilações nos corpos desses cativos, uma forma de facilitar a identificação aos interessados na recompensa pela captura. Nas descrições os escravos eram cambados dos pés, desdentados, com grande “costura” nas costas, pernas com marcas de feridas “por estar sempre nos ferros”, nádegas cicatrizadas de relho, marcas de relho nas costas, um dedo cotó, picado de bexigas, boubas nos calcanhares, manetas, aleijados etc.

Recorri então a releitura do livro de Gilberto Freyre, “O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX”. Freyre pesquisou no Jornal do Commercio, no Diário de Pernambuco, entre outras gazetas, inúmeros avisos de escravos fugitivos. Segundo esse autor, normalmente as deformações decorriam dos castigos, excesso e acidente de trabalho, por doença, condições anti-higiênicas e tipo de alimentação.

No tocante aos castigos os instrumentos mais utilizados eram o azorrague, a gargalheira, a pega, o tronco, o vira-mundo, a corda de sedenho, os anjinhos e o colete de couro. Era comum os escravos serem descritos com cicatrizes de açoite e de ferro quente, o dedo picado de agulhas de debruar tamancos, pés deformados cheios de bichos, os dedos dos pés torados por serem amassadores de cal e o cal lhes ter aberto feridas e comido os dedos, com pernas e braços exageramente finos, tortos, cambados, tronchos, zambos ou arqueados, que são sequelas de raquitismo.

Na identificação dos escravos fugitivos, além das deformações decorrentes dos castigos, do tipo de trabalho e do modo de vida havia um tipo de indicação nos anúncios que Freyre denomina de “característicos constitucionais”. O que seria este último? Os senhores descreviam o fugitivo pelo tipo de comportamento, ou seja, introvertidos ou calados, extrovertidos de aspecto alegre, brejeiros, muito político no falar, muito capadócio, bem falante, retórico, muito poeta no falar, contador de histórias, muito pachola, gostava de súcias, gostava de andar pelos batuques, muito dançador, cantador de chulas, tocador de viola para ficar em apenas alguns exemplos.

Em Nova Friburgo, possuímos um anúncio publicado em O Friburguense em 17 de abril de 1881, que ilustra bem o que Freyre denomina de “característicos constitucionais”. O capitão Luciano José Coelho de Magalhães, lavrador de Cantagalo, ofereceu a quantia de um conto de réis a quem capturasse, ou metade a quem desse notícias certas de seu escravo José, pardo, idade entre 28 a 33 anos, marinheiro, cozinheiro, falquejador e serrador. José pertencera a um português que o castigou nas nádegas e nas costas pela “irregularidade de seu proceder” e tinha o hábito de encobrir as cicatrizes dizendo que as feridas das costas eram devidas ao “incômodo”[doença] que dava o nome de “fogo selvagem”.

José era muito falante e cortês, destacava o anúncio. Tinha a voz fina e quando cumprimentava as pessoas dizia sempre a seguinte frase: “Deus lhe dê bons dias” ou “Deus lhe dê boas tardes”. As atividades laborais exercidas pelos escravos é outro fator a destacar. Localizei na Gazeta do Rio de Janeiro escravos no ofício de bolieiro, corrieiro e currador. Freyre nos informa que eram comuns entre os escravos do sexo masculino as profissões de catraeiro, lenhador, talhador de carne, carreiro, sapateiro, pescador, sangrador, cozinheiro, cambiteiro, alfaite, caiador, carpina, marceneiro, pajem, malungo etc.

Já entre as mulheres escravas engomadeira, lavadeira, costureira, doceira, ama-de-leite, marisqueira, enfermeira e mucama. Ainda em relação a Gazeta do Rio de Janeiro me chamou a atenção o caso de João Lopes de Sá, morador na vila de São Pedro de Cantagalo. Conforme esse periódico de 29 de março de 1820, na página 4, consta que “Em fins de dezembro de 1818, [João Lopes de Sá] comprou dez escravos novos, e porque tem aparecido senhores da maior parte [reclamando a propriedade] dos ditos escravos, e só lhe restam três por nomes Maria, João e Joaquim, faz saber a quem forem seus senhores que, dando os sinais certos, se lhe entregarão”. Trata-se de um caso curioso em que se adquire escravos fugitivos de terceiros, o que chamaríamos hoje de receptação culposa.

Possivelmente havia indivíduos especializados na captura de escravos fugitivos para vendê-los, pois não deveriam ser muito atrativas as alvíssaras, ou seja, a recompensa oferecida por seus proprietários. O colono suíço Joseph Hecht nos legou o seguinte depoimento: “... repugnava-nos como algo totalmente inaceitável, o drama dos escravos fugidos e dos recém comprados. Com frequência, víamos passar por nossa cidade de Nova Friburgo negros fugidos que tinham sido capturados pelos caçadores contratados e que estavam sendo devolvidos aos donos. Quem capturasse um negro fugido e o devolvesse, recebia 40 florins, de acordo com a lei.

Para quem se dedicava a essa maldita atividade, essa paga era suficiente. O negro que fugia pela primeira vez era espancado de forma horrível. Se fugisse uma segunda vez, era novamente espancado brutalmente, mas isso não era tudo: uma corrente era presa ao seu corpo, com uma parte pendendo para baixo, por meio da qual as pernas eram presas a uma argola. A corrente lateral era soldada a outra argola. Nessa miserável condição, com o corpo todo apertado, ele tinha de trabalhar e dormir. Quando dois escravos fugiam juntos, eram depois acorrentados juntos a uma argola e assim forçados a trabalhar. Se o escravo fugisse pela terceira vez e fosse preso, era então transportado para o matadouro da cidade do Rio de Janeiro, onde todos os dias recebia 100 chibatadas. Outros eram amarrados a um poste numa praça pública, inteiramente nus e cruelmente surrados.” Através desse depoimento, podemos perceber que Nova Friburgo não ficou à margem da sociedade escravocrata da época.

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    Aviso de fuga de escravo oferecendo recompensa (Fotos: Acervo Biblioteca Nacional)

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    Típica gravura que ilustrava avisos de escravos fugitivos

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    Capitão do mato trazendo escravo com colar de punição, 1835. Johann Moritz Rugendas.

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Broa de milho com legumes crus se torna patrimônio friburguense

quinta-feira, 01 de outubro de 2020

No passado, não faltavam nas propriedades rurais e nos quintais das residências de nossos ancestrais, roças de mandioca e de milho. Este último alimentava homens e animais. Cavalos, mulas, vacas, bois, suínos, ovelhas, patos, gansos, galinhas e perus todos eram alimentados com milho. O gado ganhava “mãos de milho” duas vezes ao dia de seu dono. Os colonos suíços se dedicaram às culturas de batata, feijão, arroz, mamona e notadamente de milho em Nova Friburgo. Havia compradores certos, as tropas de mula pejadas de café que saíam de Cantagalo e seguiam rumo a Porto das Caixas.

No passado, não faltavam nas propriedades rurais e nos quintais das residências de nossos ancestrais, roças de mandioca e de milho. Este último alimentava homens e animais. Cavalos, mulas, vacas, bois, suínos, ovelhas, patos, gansos, galinhas e perus todos eram alimentados com milho. O gado ganhava “mãos de milho” duas vezes ao dia de seu dono. Os colonos suíços se dedicaram às culturas de batata, feijão, arroz, mamona e notadamente de milho em Nova Friburgo. Havia compradores certos, as tropas de mula pejadas de café que saíam de Cantagalo e seguiam rumo a Porto das Caixas.

Transitando por Nova Friburgo adquiriam o excedente do milho produzido na colônia. Com a proibição do tráfico intercontinental de escravos em 1850, os fazendeiros de Cantagalo limitaram sua força produtiva, ou seja, os seus escravos, ao plantio do café. Consequentemente, passaram a consumir mais milho para a alimentação de suas tropas contribuindo com o desenvolvimento do produto cultivado pelos colonos suíços, o milho.

A alimentação quotidiana dos colonos consistia em carne de porco, feijão, batata, pão de milho, leite, ovos, hortaliças e quase todos faziam uso do café mais de uma vez ao dia, nos informa o juiz de direito Cansanção de Sinimbu, em meados do século 19. Teria sido o pão de milho a que se refere Sinimbu, a broa de milho que os seus descendentes fazem nos dias de hoje? Existe um tipo de broa de milho feita pela comunidade rural de Nova Friburgo que leva na sua composição legumes crus.

Verifiquei a sua existência nos distritos do Campo do Coelho, Amparo e Lumiar entre as famílias descendentes de colonos suíços, como os Mozer e alemães como os Schuenck e os Eltz. Além da farinha de milho adicionam legumes como batata doce, chuchu, inhame, cabeça de inhame, cará, abóbora e mandioca, todos ralados crus. O ingrediente básico é a farinha de milho, o fubá, que pode ser branco ou amarelo, ou mesmo ambos. Entra igualmente na composição da broa açúcar, banha de porco, óleo, margarina, farinha de trigo, leite, ovos e fermento.

A massa da broa de milho pode ser envolvida em folhas de bananeira ou de caeté. São assadas em um forno de barro que fica no quintal da residência. Tudo indica que os legumes crus adicionados era uma forma de dar mais rendimento a massa. A broa de milho com legumes crus é uma tradição passada de geração em geração pela comunidade rural de Nova Friburgo, um precioso saber local. Além da singularidade de seus ingredientes e modo de fazer, a exemplo da massa ser envolvida em folhas de bananeira ou caeté e assada em forno de barro, a sociabilidade no momento de sua elaboração é outra importante característica.

Por iniciativa do vereador Joelson José de Almeida Martins, conhecido como Joelson do Pote, a broa de milho com legumes crus foi reconhecida através de lei municipal como patrimônio cultural de Nova Friburgo. Nesse caso, a municipalidade garante a continuidade de expressões culturais referentes à memória e à identidade para o conhecimento das gerações presentes e futuras. Essa guloseima reconhecida como patrimônio cultural ganha um registro no Livro dos Saberes, em razão do conhecimento e modo de fazer enraizados no cotidiano das comunidades rurais de Nova Friburgo.

Existe ainda outro aspecto interessante. Tanto os Mozer como os Schuenck comem a broa com chimirra. Mas o que é chimirra? Trata-se de um queijo resultado do aproveitamento do leite que azedava facilmente no passado. Atualmente com a geladeira, dificilmente o leite azeda e então recorre-se ao vinagre de maçã ou ao limão para que o leite coalhe para a elaboração da chimirra. Três colheres de vinagre ou de suco de limão em um litro de leite realizam o processo e em meia hora já se pode usar o leite talhado para fazer a chimirra. Pode-se escorrer o produto em um pano ou em um escorredor para tirar o soro da “massa”. A essa fase se denomina “colocar a chimirra pra quará.” Acrescenta-se somente sal. Assemelha-se muito ao queijo do tipo cottage.

Quando estive no Cantão de Fribourg em um chalé nos pré alpes, os denominados “chalets d’alpage”, para assistir a elaboração do queijo “gruyère”, os queijeiros fizeram ao final o “sérac” com o leite ralo que sobrou do “gruyère. É um queijo branco e fresco a partir do “petit-lait” e que chamaríamos de leite magro, pois toda a gordura se concentrou no “gruyère”. Quando vi a chimirra na região rural de Nova Friburgo fiz imediatamente a associação com o “sérac” que conheci no Cantão de Fribourg. Seria uma tradição dos colonos suíços? O nome chimirra seria uma corruptela do “sérac” levando ainda um toque do patoá, dialeto no qual falavam alguns colonos suíços? Quem sabe não teremos mais uma manifestação cultural tombada como patrimônio cultural e histórico em Nova Friburgo.

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    A chimirra que se come com a broa de milho (Fotos: Acervo pessoal)

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    Broa de milho em Três Picos feito pela Dona Dodoca

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    Broa de milho feita pelos Mozer

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O café: subidor de montanhas e destruidor de montanhas (Última parte)

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

De floresta tropical a savana

Uma das muitas funções da cobertura florestal é a de amortecimento e distribuição das águas das chuvas. Quando a floresta é retirada, o fluxo de escoamento da água é aumentado, favorecendo o processo de erosão. A camada superficial dos solos das encostas, onde se localiza o humos florestal, quando expostos diretamente à ação de chuvas mais intensas são arrancados e carregados morro abaixo. A erosão provocada por este processo acabava expondo as raízes dos cafezais e matando os arbustos.

De floresta tropical a savana

Uma das muitas funções da cobertura florestal é a de amortecimento e distribuição das águas das chuvas. Quando a floresta é retirada, o fluxo de escoamento da água é aumentado, favorecendo o processo de erosão. A camada superficial dos solos das encostas, onde se localiza o humos florestal, quando expostos diretamente à ação de chuvas mais intensas são arrancados e carregados morro abaixo. A erosão provocada por este processo acabava expondo as raízes dos cafezais e matando os arbustos.

Outra consequência deste fenômeno era o acúmulo de sedimentos nas várzeas, que ocasionava o assoreamento dos rios e córregos que estivessem próximos às plantações. Ainda que o plantio em curvas de nível já fosse conhecido, os fazendeiros optaram pelo cultivo predatório. A exaustão e a erosão dos solos fazia com que os produtores de café se vissem obrigados a abandonar suas plantações depois de, aproximadamente 20 a 25 anos já que os solos tornavam-se pobres em nutrientes e os cafezais sem vitalidade.

A ideia de abundância de terras nos latifúndios fazia com que fossem considerados desnecessários quaisquer esforços no sentido de preservar os campos utilizados. Por esta lógica, era mais lucrativo derrubar novas extensões de florestas primárias do que destinar tempo de trabalho para a recuperação ou preservação da fertilidade dos solos já utilizados na lavoura. Depois de abandonados, os terrenos ocupados pelos antigos cafezais eram tomados pela erosão ficando quase toda a área coberta por uma vegetação pobre de gramas, capins e samambaias.

Os impactos ambientais causados pela lavoura cafeeira tornavam-se gradualmente nítidos, a partir da segunda metade do século 19. A questão da técnica de sombreamento dos cafezais e da adubação dos terrenos foi tratada naquela ocasião por artigos em que são ressaltadas as vantagens de se plantar as mudas de café ao abrigo de árvores maiores que lhes proporcionassem sombra. Não faltaram obras escritas criticando o comportamento da “rotina”, que consumia os recursos do meio físico de forma não sustentável. Sugestões como processos de adubação, que permitiriam um aproveitamento mais duradouro das áreas cultivadas foram igualmente apresentados. Logo, informação era o que não faltava.

As críticas à rotina do cultivo do café, com sua prática insustentável ganharam um razoável espaço na sociedade sem, contudo, serem capazes de provocar mudanças na conduta dos grandes cafeicultores. A estrutura fundiária baseada nos latifúndios impediu que se preocupassem no trato do amanho da terra. A floresta era considerada abundante e com capacidade de exploração ilimitada. No último quartel do século 19 teve início a decadência da produção de café no vale do Paraíba fluminense. O esgotamento do solo, o surgimento de pragas nas lavouras acrescido a abolição da escravidão provocou a falência de inúmeros barões do café.

Da opulência à ruína foram perdendo suas fazendas por dívida, em leilões. Em aproximadamente oito décadas os cafezais substituiriam a Mata Atlântica em grande parte da região serrana fluminense, provocando as mais profundas e extensas mudanças ambientais. A antiga diversidade natural do ecossistema foi substituída por uma única espécie de planta, o arbusto de milhares de cafeeiros, que tornou o ambiente muito mais vulnerável aos ataques de pragas e a adversidades climáticas alterando de modo intenso o ciclo hidrológico.

A degradação do meio ambiente modificou o regime de chuvas alterando a sua regularidade e gerando períodos de seca, cuja duração levava até oito meses. As gerações futuras pagam um preço caro por essas práticas agrícolas predatórias. Atualmente, o cenário ambiental da região serrana fluminense caracteriza-se por extensas áreas de pastagens com manchas isoladas de capoeiras. Após a rápida passagem do café ao longo do Vale do Paraíba, os cascos do gado entelham trilhas em forma de faixas em ziguezague.

A introdução da pecuária nas propriedades onde se plantava café aumentou a intensidade do desgaste dos solos. O resultado destas ações foi o surgimento de voçorocas e outras formas de erosão, que trouxeram à paisagem um aspecto de intensa degradação. Nenhum traço da floresta primária restou sobre os morros secos e amarelados da região serrana fluminense. Pode-se afirmar que em um período de 30 a 40 anos, o café mudou irreversivelmente um regime hidrológico típico de uma floresta tropical pluvial para o de uma savana.

O Vale do Paraíba ficou na míngua após a fuga do café. Todos os artigos foram adaptados das obras “Ouro, posseiros e fazendas de café. A ocupação e a degradação ambiental da região das Minas de Cantagallo na província do Rio de Janeiro”, de Mauro Leão Gomes e “A Ferro e Fogo” de Warren Dean. 

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    Da opulência à ruína. Fazenda Mont Vernon, em Cantagalo (Acervo pessoal)

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    Nenhum traço da floresta primária restou sobre os morros secos e amarelados da região serrana fluminense (Acervo pessoal)

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    O café mudou um regime hidrológico de floresta tropical pluvial para o de uma savana (Acervo pessoal)

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O café: subidor de montanhas e destruidor de florestas - Parte 4

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

O café marcha como um soldado patriota

O café marcha como um soldado patriota

Um novo produto de plantation tropical iniciou um assalto sobre a densa cobertura florestal da serra fluminense, situada sobre o relevo de mares de morros no vale do rio Paraíba do Sul. Contrariamente à cana-de-açúcar, amiga das várzeas, dos aluviões e das grandes planícies, o café foi por excelência um trepador de morros, um inveterado escalador de serras. É ele que arrastava o homem para as altitudes, para o clima próprio à sua máxima frutificação. Os morros meias-laranjas estariam em pouco mais de meio século quase completamente coberto por cafezais.

Na serra fluminense, a ofensiva do café contra a floresta foi acelerada, nada deixando em seu rastro além de montanhas desnudadas. Calcula-se que entre 25 mil e 30 mil quilômetros quadrados de cobertura florestal primária de Mata Atlântica, nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais tenham desaparecido para dar lugar ao cultivo de café. Novas estradas, vendas, pousos, capelas e paróquias surgiram a cavaleiro das ondas verdes do café que seguiram em marcha como soldados patriotas até o cume das montanhas, transformando a passagem. Inúmeras propriedades rurais começaram a surgir onde outrora fora a selva.

A província fluminense com o seu escol de barões do café salvou o Brasil do desastre econômico no Império. Os fazendeiros fluminenses afidalgaram-se adquirindo títulos nobiliárquicos vindos a integrar a nobreza do Império. Depois da retirada da mata fazendo uso da queimada, os escravos removiam o entulho e preparavam as covas para o plantio do café nas encostas mais altas da propriedade. As mudas de café, após o plantio, levavam em média cinco anos para atingir a maturidade, quando então começavam a produzir em escala comercial. A partir daí, sua capacidade produtiva se mantinha por um período que variava entre 25 a 30 anos.

As mudas eram plantadas em linhas retas, perpendiculares aos pés dos morros e dispostas em fileiras verticais com um espaço aproximado de dois a três metros entre cada uma delas. Essa forma de plantio era extremamente inadequada às condições climáticas da região, que era marcada pela presença de fortes chuvas torrenciais. Plantar pés de café de forma enfileirada no sentido vertical das encostas provocava forte erosão nos terrenos das propriedades, tornando os solos improdutivos.

Segundo os historiadores, essa prática agrícola era explicada para facilitar o trabalho dos feitores na sua tarefa de exercer melhor o controle do trabalho dos escravos. O movimento contínuo das lavouras, com a ocupação de novas áreas de florestas dos latifúndios, associado a exploração da mão-de-obra escrava era a forma de se reduzir os custos da produção. O tempo de vida útil de um escravo empregado na lavoura era de aproximadamente dez anos, o que não chegava a ser encarado como prejuízo pelo fazendeiro. Considerava-se que após dois anos de trabalho o escravo já teria pago o seu custo de aquisição.

A grande propriedade fundiária estimulava a manutenção de práticas agrícolas insustentáveis no Brasil oitocentista. A possibilidade de plantar em outros terrenos não causava preocupação para os grandes fazendeiros, já que eles podiam contar sempre com novas terras cobertas com florestas primárias. A ideia da natureza como inesgotável e eternamente fonte provedora de recursos, não dava margem para a adoção de qualquer tipo de cuidado com a sua preservação. Via-se a Mata Atlântica como um universo que jamais se consumiria. Era cômodo abandonar as antigas lavouras desgastadas e apropriar-se de novos terrenos.

A imagem de uma terra sempre disponível para o avanço da produção minimizava a importância do cuidado ambiental. À medida que os solos agrícolas tornavam-se estéreis, a fronteira avançava em direção às florestas. Sustentabilidade é a capacidade de um grupo de fazer uso dos recursos da natureza, sem comprometer a possibilidade das gerações futuras de continuar a utilizá-los. Não era essa a mentalidade dos cafeicultores quando iniciaram a plantação de café na serra fluminense.

Técnicas como a aragem e o plantio em curvas de nível para manter a fertilidade dos solos cultivados eram conhecidos naquela época. Por que então os lavradores de café não tiveram este cuidado? Uma das explicações para esta negligência pode estar relacionada à ideia da grande extensão dos latifúndios, com a possibilidade de ir plantando em novos terrenos quando o cultivado estivesse esgotado. Colheram sem nunca cessar, sem nunca indenizar à terra os frutos que dela retirava. Tirar e nunca repor! Última parte na próxima semana.

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    Em dois anos de trabalho, o escravo pagava o seu custo de aquisição.

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    Pés de café enfileirados facilitava a vigilância do feitor

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    Plantar pés de café no sentido vertical provocava erosão (Acervo IMS)

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O café: subidor de montanhas e destruidor de florestas (Parte 3 )

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A hecatombe da Mata Atlântica

A hecatombe da Mata Atlântica

A serra fluminense foi mantida até o século 19 como uma das mais selvagens e desconhecidas regiões, ainda que próxima do litoral. Mas floresta era um obstáculo a ser superado, um entrave no caminho da civilização, ou mais precisamente do seu modelo civilizatório. Naquele momento, a ideia de civilização passa a ser confundida com a necessidade de conquista e sujeição da natureza. Remover a floresta significava uma espécie de símbolo da construção do mundo civilizado. Para o colonizador português preparar o solo para a lavoura significava derrubar toda a floresta, abrindo espaço para a implantação de culturas em campo aberto.

Depois da extração do ouro de aluvião nos afluentes dos rios Grande, Negro e Macuco seguido do plantio de alimentos, iniciaram-se as primeiras experiências com o plantio do café na serra fluminense, já na primeira década do século 19. A presença de florestas tropicais com solos cobertos de humos era considerada como um indicador de fertilidade para os terrenos, o que tornava viável a produção cafeeira. Latifúndios se estenderam pelas vargens, chapadas, socavões e montanhas. Sobre toda a imensidão da mata, picadas retalharam os latifúndios e os lavradores atiraram-se à derrubada da floresta. Foi penosa e lenta a infiltração nesse meio montanhoso e enflorestado.

Para a derrubada da mata, o colono português aprendeu com o índio o método da coivara. Tratava-se de uma técnica de cultivo dos povos ameríndios caracterizada pela queima da mata, mas em pequena escala, conhecida como agricultura de coivara. Porém, foi apropriada indevidamente pelos lavradores que queimavam grandes extensões da mata de seus latifúndios. Este método predatório estava associado à ideia da eterna existência de uma nova fronteira agrícola a ser aberta.

A queimada era uma tarefa perigosa e demandava técnica e conhecimento. Saber o momento oportuno exigia experiência, para que não fosse feita com muita ou pouca antecedência em relação às chuvas. Não poderia ser intensa demais para que não chamuscasse a camada rasa e fértil de humos, mas que não fosse tão superficial que não produzisse cinzas suficientes para neutralizar o solo ou que o deixasse ileso dos insetos. Nos meses frios de maio, junho e julho perto do fim da estação seca, camaradas eram contratados para a derrubada da mata. Com o machado em uma das mãos e o tição na outra, trabalhando de baixo para cima a partir da base da montanha, brandiam os machados sucessivamente contra cada árvore talhando até que o tronco, ainda inteiro, tremulasse com a iminência de sua queda.

Os trabalhadores iam subindo, cortando um e depois outro tronco, cada vez mais acima, até que se chegasse ao cume da montanha. O capataz experiente decidia qual a árvore mestra, a gigante, que seria cortada até o fim arrastando consigo todas as outras. Se fosse bem sucedido, o sopé inteiro desabava com uma tremenda explosão levantando uma nuvem de fragmentos, de bandos de papagaios, de tucanos e de aves canoras. Os trabalhadores festejavam, pois se o capataz errasse e apenas umas poucas árvores caíssem, teriam de descer entre as árvores cambaleantes e derrubá-las uma a uma.

Nesta tarefa de abatê-las individualmente ocorriam geralmente muitos acidentes fatais. Por isso, os escravos eram poupados desta atividade já que os proprietários temiam perder as suas “peças”. Uma faixa de floresta, um hectare mais ou menos, era cortada e deixada secar, e, por meio de machados, retirava-se o anel da casca dos troncos das árvores maiores. Um pouco antes da chegada das chuvas, todo o amontoado de floresta derrubada era incendiado. A vegetação ressecada saltava em labaredas com rugido e espocar, soando como disparos de espingarda. Subia um turbilhão de fumaça para o céu fazendo com que a enorme quantidade de nutrientes da biomassa caísse sobre a terra na forma de cinzas. O fogo ardia durante dias e depois fumegava por muitos outros.

Chegavam, por fim, as chuvas, que adicionavam ao esterco gorduroso do humos e do solo os nutrientes liberados do rico leito das cinzas. As chuvas drenavam os nutrientes para o interior do solo, neutralizando-o e ao mesmo tempo fertilizando-o. O vale do Paraíba parecia infernal ao final das estações secas, com centenas de incêndios nos latifúndios. Na metade do século, à medida que se acelerava a derrubada da Mata Atlântica para o plantio de arbustos de café, uma nuvem amarelada pairava sobre a serra fluminense durante as queimadas, obscurecendo o sol de dia e apagando as estrelas à noite.

Os viajantes ficavam surpresos diante da bruma que limitava a visibilidade dos topos das montanhas e que encurtava o fôlego, provocando uma sensação de fadiga. As mais preciosas madeiras incineravam numa hecatombe da fauna e da flora devoradas pelas chamas. Este procedimento, a que denominavam de “rotina” poderia ter sido evitado, como veremos na última parte da próxima semana.

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    A mata foi substituída por uma única espécie, o arbusto de café (Koenig Warthausen)

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    A queimada da mata poderia ter sido evitada (Litografia de Rugendas)

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    Mata reduzida a carvão. Félix Taunay, década de 1830

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O café: subidor de montanhas e destruidor de florestas (Parte 20

quinta-feira, 03 de setembro de 2020

O desbravamento dos sertões

Sertões do Macacu, assim era conhecida a serra fluminense situada na parte setentrional do vale do rio Paraíba do Sul. A serra do Mar, que compreendia toda a vertente interior das serras da Boa Vista, dos Órgãos, Macabu e Macaé, era coberta por uma densa floresta inexplorada, ainda que próxima do litoral. O desmembramento dessa região deu origem aos municípios de Cantagalo, Nova Friburgo, Cordeiro, São Sebastião do Alto, Itaocara, Carmo, Sumidouro, Duas Barras, Bom Jardim, Trajano de Moraes, Santa Maria Madalena e Teresópolis.

O desbravamento dos sertões

Sertões do Macacu, assim era conhecida a serra fluminense situada na parte setentrional do vale do rio Paraíba do Sul. A serra do Mar, que compreendia toda a vertente interior das serras da Boa Vista, dos Órgãos, Macabu e Macaé, era coberta por uma densa floresta inexplorada, ainda que próxima do litoral. O desmembramento dessa região deu origem aos municípios de Cantagalo, Nova Friburgo, Cordeiro, São Sebastião do Alto, Itaocara, Carmo, Sumidouro, Duas Barras, Bom Jardim, Trajano de Moraes, Santa Maria Madalena e Teresópolis.

A carta topográfica da Capitania do Rio de Janeiro de 1767 indicava ser um sertão ocupado apenas por indígenas bravos, ou seja, não aldeados e consequentemente não “civilizados”. No final do século 18, como a extração de minérios preciosos em Minas Gerais já apresentava sinal de declínio, garimpeiros atravessam a Zona da Mata mineira clandestinamente e se dirigem para os sertões do Macacu. Iniciam a garimpagem do ouro de aluvião nos rios Grande, Negro e Macuco, bem como de seus afluentes. Ao abrigo da floresta puderam lavrar sorrateiramente durante muitos anos pintas de ouro na região.

Tomando conhecimento do garimpo clandestino, as autoridades governamentais prenderam o bando de faiscadores e o descoberto do ouro chamou a atenção da Coroa Portuguesa para os sertões do Macacu. Foi instalada a Casa do Registro do Ouro, distribuindo-se datas de terras aos que desejassem faiscar. A Coroa recebia o quinto, ou seja, 20% do que fosse extraído da garimpagem. O povoamento desses sertões ocorreu oficialmente a partir de 1786. Porém, no decorrer de alguns anos verifica-se que o ouro extraído dos rios mal dava para pagar os oficiais e os soldados do registro.

Consequentemente, o governo desinteressou-se pela mineração. O povoamento tem continuidade com a distribuição de sesmarias para os indivíduos que tivessem condições econômicas de se afazendar como lavradores e que consistia basicamente em possuir escravos para o amanho da terra. Os sesmeiros derrubam a mata para a extração da madeira, plantam suas roças em pequenas clareiras e alguns estabelecem engenhocas para a fabricação de açúcar. Era o primeiro passo para a exploração da terra. Foram derrubados os primeiros gigantes da floresta como o jacarandá, o pau-rosa e a ipecacuanha. Nessa região de encostas íngremes e planícies apertadas iniciou-se o plantio de milho, da cultura do feijão, da mandioca, criação de galinhas e de porcos. Esses produtos são exportados para o Rio de Janeiro através de tropas de mulas que desciam a serra da Boa Vista até atingir o porto fluvial de Porto das Caixas, hoje município de Itaboraí. Dali as mercadorias seguiam em barcos pelos rios Macacu e Caceribu que deságuam na Baía da Guanabara, rumo ao Rio de Janeiro.

Os sertões do Macacu ganharam o predicado de município em 1814, com a denominação de São Pedro de Cantagalo. A distribuição de novas sesmarias pela Coroa portuguesa atraiu indivíduos da capitania de Minas Gerais, de portugueses da Ilha da Madeira e dos Açores. Cantagalo abrigou a primeira tentativa oficial de colonização por meio de imigrantes não portugueses. A região de maior altitude, próxima a serra da Boa Vista foi escolhida por ter o clima semelhante ao europeu, facilitando a aclimatação dos colonos. O seu desmembramento deu origem ao município de Nova Friburgo, estabelecendo um distrito para os colonos suíços e depois alemães.

A região atraiu igualmente muitos posseiros que se instalaram na fronteira com os latifúndios. Nos primeiros 20 anos após a independência, o Brasil atravessou dificuldades econômicas. O açúcar de beterraba introduzido no mercado mundial precipitou o Nordeste em uma crise e a produção algodoeira norte-americana conquistou os mercados, antes sob o controle do Brasil. No horizonte uma esperança se aproximou: o café, que irá substituir o açúcar e o algodão na exportação.

Nativo da Etiópia, o café já vinha sendo plantado em pequena escala já na primeira década do século 19, em Cantagalo. Em meados daquele século se tornaria o principal produto de exportação no Império. E assim, os arbustos da família das rubiáceas vão tomando paulatinamente, o lugar dos gigantes da Mata Atlântica. Continua na próxima semana.

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    Desmatamento da Mata Atlântica por Rugendas. Litografia século 19

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    Mata Atlântica por Hermann Burmeister. Litografia do século 19

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    Os sertões do Macacu ganha o predicado de município em 1814

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O café: subidor de montanhas e destruidor de florestas (Parte 1)

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A Mata Atlântica

A Mata Atlântica

“No alvorecer do século 19, os Sertões do Macacu, na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, era uma floresta virgem. Um indevassável labirinto vegetal onde a mata cobre tudo. O sol mergulha os dedos luminosos penetrando apenas oblíquos jorros de luz catedralescos. Quem por ali se atreve, tranca-se no mais tenebroso labirinto. Escutam-se rumores de seres que rastejam, escorregam, esvoaçam. Zumbidos de insetos fuzilantes, longínquos pios de nhambus, jaós, juritis, algazarras de papagaios, araras, maritacas, maracanãs e arapongas. Perfumes de folhagens, de flores, de cascas, de resinas e hálitos de galhos e troncos putrefatos que estalam e se esfarinham sob os pés, inumando-se no próprio ventre da floresta. Recea-se a emboscada do índio e da onça na penumbra. A floresta é um verde turbilhão a contorcer-se em convulsões genéticas.

Por isso mesmo a floresta é o caos impenetrável, a confusão promíscua dos elementos e cósmicas transmutações originais, faz com o homem adentrá-la  cautelosamente, pois em cada moita há um perigo latente. Troncos roídos onde o jararacuçu se enrosca. Folhas e espinhos que queimam. Entra nela o inexperiente incauto e logo vê toda a agressividade. Não eram os grandes troncos, os altaneiros gigantes que o amedrontam, mas a arraia miúda, solerte e vigilante. Tudo se atira contra o violador intruso que ali perturba o equilíbrio ambiental de milênios. Armas invisíveis investem de todo lado e terrivelmente acossam o invasor.

A vegetação rasteira lhe impede a marcha aos tropeções. A preparoba, a buta, o jacaratiá, a negramina, a quina-cruzeiro, as próprias samambaias estorvam-lhe os passos hesitantes. Enrosca-se-lhe os cipós nas pernas e o lançam pelos braços. O homem, então, recua, abre o caminho a facão, mas agulhas e ganchos o espetam e o imobilizam. Contra essas formas que o enrodilham, o fisgam e o amarram, o homem desesperadamente se debatia.

Há ainda os cipós que simplesmente o embaraçam como o imbê, o suma, a abóbora-d'anta, o cruzeiro, o cipó-fogo, o olho-de-boi, o caboclo ou cipó-brasa e o mata-pau enroscando-se aos troncos como serpentes, sugando-os, matando-os, e já então solidamente enraizados substituem a árvore que digeriram. O cipó-mico junta-se à perigosa horda dos arbustos tremendamente cáusticos como a urtiga, o urtigão, o mangangá e o arre-diabo cujo nome exclama a dor da pavorosa queimadura de quem o toca.

Adicione-se a tudo isso os caules e hastes espinhentos que no chão ou no ar lhe barram a caminhada ou que se inclinam para o agarrar: o ananás-pedra, a unha-de-gato, o gravatá, a airi e o côco-roxo, o espinhão, o jaquitá, o icê, o pega-onça, o taquaruçu e outros meios de defesa com que a floresta se atira contra o devassador. Verificamos nesse cenário a luta com que a natureza virgem repele o homem. Em meio a todo esse turbilhão, elegantemente sobem as palmáceas inofensivas como o côco-doce, o pati, o corrupicho, a pindoba, o côco-preto, como que deslocados e perdidos na brutalidade de uma selva em que domina à força e à emboscada.

Ai do desprevenido que se aventure nessa floresta. Para todos os lados que se vire é a mesma agressividade inelutável, os mesmos aspectos que se repetem e o desorientam, a mesma fereza do matagal que o rodeia, o ataca e o encarcera. Ai do prisioneiro da selva.”

Através desse brilhante texto de Alberto Ribeiro Lamego podemos entender o porquê das duas primeiras gerações de colonizadores portugueses não conseguirem penetrar com segurança na floresta e precisavam dos indígenas como guias. A Mata Atlântica com sua vegetação diversificada estende-se desde o Nordeste até o Rio Grande do Sul. As plantas e os animais dessa mata eram raros e muitos deles não seriam encontrados em nenhuma outra floresta. Entre suas espécies arbóreas, mais da metade era endêmica, só existindo nessa região.

Diversos locais dessa mata eram centros de endemismo de pássaros, mamíferos, répteis e insetos. Certos beija-flores, sanhaços, marsupiais, preguiças, sagüis, pererecas, patiobas e inúmeros outros animais estão limitados à Mata Atlântica. Dois terços dos nomes das árvores e praticamente de todos os seus animais são de origem tupi-guarani. Existiam árvores de 35 metros de altura ou mais. Uma única copa de árvore poderia abrigar mil espécies de insetos e a Mata Atlântica como um todo pode ter abrigado um milhão delas.

A serra fluminense, com suas vastas florestas primárias do tipo mesófila, características do bioma conhecido como Mata Atlântica foi poupada até o terceiro quartel do século 18. No entanto, a partir das duas últimas décadas deste século, a floresta será vítima do machado e do fogo do homem branco colonizador. Continua na próxima semana.

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    Serra do Mar por Jean Baptiste Debret. Século 19

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    Flora Brasileira por Karl von Martius. Século 19

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    Existiam árvores de 35 metros de altura ou mais

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