De Beuclair: os médicos dos escravos

quinta-feira, 04 de fevereiro de 2021

Antes de iniciar a narrativa sobre a família De Beauclair, cabe uma indagação. Por que os fazendeiros produtores de café passaram a contratar médicos para cuidar especificamente de seus escravos? A lei Eusébio de Queiroz de 1850, que proibiu o tráfico negreiro no Atlântico Sul com o continente africano fez aumentar extraordinariamente o preço dos escravos. Os fazendeiros abastados e com significativo plantel de escravos passaram a recorrer aos serviços de médicos europeus que vinham para o Brasil na segunda metade do século 19. Antes da mencionada lei, os escravos enfermos eram tratados pelos próprios senhores que faziam uso de remédios à base de ervas, as mezinhas caseiras, ou mesmo delegando o tratamento aos escravos curandeiros, figura tradicional da cultura africana. Ser escravo no Brasil, como nos ensina Kátia Mattoso era trabalhar entre 15 a 17 horas ao dia. O tempo de vida do escravo no eito não passava de sete anos e as enfermidades advinham tanto da excessiva jornada como das condições insalubres de trabalho. Stanley Stein em “Grandeza e decadência do café no Vale do Paraíba” nos informa que os médicos se estabeleciam em fazendas, em pontos centrais nas áreas agrícolas de determinado município, e atendiam a chamados das fazendas vizinhas. O mais comum dos males nas fazendas de café era o bicho-de-pé. Uma vez introduzido na parte carnuda e calejada do pé carcomia os dedos e a sola produzindo úlceras e incapacitando o escravo para o trabalho. Eram também doenças comuns entre os escravizados a tuberculose, cólicas, prisão de ventre, convulsões, tosse comprida e a erisipela, resultando esta última em elefantíase ou lepra. Os escravos padeciam de infecções respiratórias em razão de atividades como descascar e peneirar os grãos de café que produziam um pó fino prejudicial à saúde, afetando-lhes os pulmões, a pele e os olhos. Entrevistei Mary Beauclair que me trouxe informações sobre os seus ancestrais, os alemães De Beauclair que vieram para Cantagalo trabalhar nas fazendas de café como médicos. O seu bisavô Johann Adolpho Rouville de Beauclair era médico e nasceu em Hessen, na Alemanha. Veio para o Brasil acompanhado de seu irmão igualmente médico Victor Leopold de Beauclair. Johann Adolpho casou-se em Cantagalo em 8 de junho de 1858 com Ângela Elvira de Roure. Já Victor Leopold se casou com Emma Dietrich, filha do vice-cônsul suíço em Cantagalo Heinrich Dietrich. Cabe aqui uma explicação sobre os Beauclair. Não obstante serem alemães herdaram do tataravô Jean Pierre Rouville de T. de Beauclair, nascido em Paris, o nome de família francês. O trisavô era Louis Nicolas Rouville Dicté de Beauclair. Beauclair é uma comuna francesa no departamento de Meuse que em 2010 tinha 83 habitantes. De acordo com a historiadora Anne Proença em sua tese de mestrado “Vida de médico no interior fluminense, a trajetória de Carlos Éboli em Cantagalo e Nova Friburgo”, no ano de 1855 Johann Adolpho constava no Almanak Laemmert como médico em Cantagalo. Possivelmente foi neste ano que os irmãos Beauclair chegaram ao Brasil para trabalhar em Cantagalo, atendendo a uma demanda por médicos nas unidades de produção de café pelo motivo já apontado. Segundo Proença, Johann Adolpho atendia na Fazenda Tanques e em outras propriedades rurais, sendo que todos os médicos que atuavam nas fazendas também realizavam atendimentos na localidade. Já Victor Leopold atendia na Fazenda Macapá, em São Fidélis, de propriedade do Barão de Nova Friburgo, mas fazia também atendimento na corte. Logo, as grandes fazendas de café tinham o seu próprio médico e uma construção isolada servia de hospital. Os médicos Johann Adolpho e Victor Leopold retornaram para a Europa, mas tudo indica que não foi essa a intenção do primeiro deles. Adolpho além de médico da Fazenda Tanques era sócio efetivo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Portanto, parecia ter deitado raízes no Brasil. A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional posicionou-se pela abolição gradual da escravidão, apoiou a política de colonização com a distribuição de pequenos lotes para estrangeiros e brasileiros e o sistema de parceria na lavoura cafeeira. Incentivou também a expansão da pequena propriedade rural e criticava o latifúndio improdutivo. De acordo com o historiador Henrique Bon, o filho de Victor Leopold, cujo nome é homônimo ao do pai, nascido em 1874, em Cantagalo, cursou medicina em Zurich. Aventureiro, praticava o balonismo, tendo no ano de 1907 sido o primeiro a transpor os Alpes entre a Suíça e a Itália no balão Le Cognac. Filiado ao aeroclube da França recebeu de Santos Dumont um prêmio por ter permanecido em voo ininterrupto durante 56 horas, batendo um recorde. Seus feitos foram registrados nos anais do balonismo mundial. Mesmo sendo um alpinista experiente, Victor de Beauclair morreu com a esposa em 15 de agosto de 1929, ao escalar o Matterhorn na fronteira entre a Suíça e a Itália. Por outro lado, dois filhos de Johann Adolpho, Frederico e Jacob Adolf retornaram ao Brasil e Mary descendeu do tronco familiar do segundo. Seu pai Álvaro Beauclair, filho de Jacob Adolf nasceu em Cantagalo e tinha 82 anos quando a concebeu. Já o filho de Frederico, o mestre cervejeiro Albano Beauclair, estabeleceu em Nova Friburgo, em 1893, a fábrica de cerveja Beauclair produzindo a cerveja Friburgo Brau, com maquinário importado da Alemanha. Mary Beauclair escreveu um livro sobre a sua família nos presenteando com mais detalhes sobre a interessante história de seus ancestrais.

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