Imitando Tereza

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Quem é que nunca viveu a emoção de ver o mundo se transfigurar com a passagem da pessoa amada?

Em dezembro do ano passado, a excelente escritora e minha querida amiga Tereza Malcher publicou uma crônica em que comentava letras de músicas de sua preferência.  Isso me deu a ideia de fazer o mesmo. Afinal, não é pecado imitar quem sabe o que faz. Não tenho a pretensão de citar as canções mais lindas da MPB, mas apenas de registrar alguns versos de que gosto e que agora me vieram à mente. Certamente cada leitor faria suas próprias escolhas, e eu mesmo, se fizer outra lista amanhã, me lembrarei de coisas diferentes. Além do mais, tem a velha discussão sobre letra de música ser ou não poesia. Dizem os entendidos... bem... talvez... quem sabe... pode ser. Ou não.

Os teóricos ensinam que a letra é feita em função da melodia e nela se ampara para alcançar a atenção e a sensibilidade do ouvinte. São almas gêmeas, feitas para bailarem eternamente juntas. Às vezes, não somos capazes nem de assobiar um pedacinho da música, mas não conseguimos tirar os versos da cabeça. O contrário também acontece: as palavras ficam sepultadas sob a pesada pedra do esquecimento e os sons nos perseguem como um papagaio tagarela. Só quando de mãos dadas existem plenamente. As canções, quando lidas, normalmente se tornam prosa, e prosa sem graça.

Já a poesia se fundamenta na palavra, é a palavra que faz a melodia e, para sentir e entender um verdadeiro poema, é preciso agir como recomendou Carlos Drummond de Andrade: “Penetra surdamente no reino das palavras”. São elas que, flanando pelo cérebro, lidas baixinho ou exclamadas em voz alta, concentram a carga poética que existiu antes no autor e existe agora no leitor atento.

O que não significa que de quando em quando as coisas não se confundam. Boa parte das composições de Chico Buarque rompe essa barreira. Há letras que podem ser lidas, há poesias que podem ser cantadas. Mas, caramba!, já cheguei  ao meio da página com minhas rasas teorias e ainda não dei um exemplo. Vamos a eles, então.

“Minha rua é sem graça/ Mas quando por ela passa/ Seu vulto que me seduz/ a ruazinha modesta/ É uma paisagem de festa/ É uma cascata de luz” (A deusa da minha rua. Newton Teixeira e Jorge Faraj). Pode não ser a obra mais original da MPB, mas quem é que nunca viveu a emoção de ver o mundo se transfigurar com a passagem da pessoa amada? Ai de quem nunca!

“A saudade é o revés do parto/ A saudade é arrumar o quarto/do filho que já morreu”./ “A saudade dói como um barco/ Que aos poucos descreve um arco/ E evita atracar no cais”. “A saudade dói latejada/ É assim como uma fisgada/ No membro que já perdi. (Pedaços de mim. Chico Buarque). Toda a letra é uma sequência de metáforas e comparações originais, cada uma mais tocante do que a outra.

“Dorme o Sol à flor do Chico, meio-dia/ Tudo esbarra embriagado de seu lume/ Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia/ Só vigia um ponto negro: meu ciúme”./ “O ciúme lançou sua flecha preta/ E se viu ferido justo na garganta./ Tanta gente canta, tanta gente cala/ Tantas almas esticadas no curtume./ Sobre toda a estrada, sobre toda a sala/ Paira, monstruosa, a sombra do ciúme”. (O ciúme. Caetano Veloso). Dizem (talvez seja invencionice) que Caetano, viajando, parou às margens do São Francisco, onde lhe falaram de um homicídio ali cometido por alguém desvairado de ciúme. Verdade ou mentira, resultou nessa beleza de canção.

“Manhã, tão bonita manhã/ Na vida uma nova canção/ Cantando sou teus olhos/ Teu riso, tuas mãos/ Pois há de haver um dia/ Em que virás/ Das cordas do meu violão/ Que só teu amor procurou/ Vem uma voz, fala dos beijos/ Perdidos nos lábios teus”. (Manhã de Carnaval. Luís Bonfá e Antônio Maria). O maior sucesso dentre os vários sucessos do filme “Orfeu Negro”, gravada e cantada em muitos países, sobretudo nos Estados Unidos. É um clássico da Bossa Nova, e não é preciso dizer mais nada.

E você, qual seria a sua seleção?

Publicidade
TAGS:

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.