História de um filho amoroso

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Quem não se comove ouvindo esse drama do filho amoroso, mãe doente e hospital distante?

Me para na calçada e por um momento esquece os próprios sofrimentos, para perguntar pela minha família, minha saúde e meus negócios. Mas ele mesmo conclui que estou bem, que basta me olhar para saber que tanto de corpo quanto de mente sou um sujeito saudável e bem de vida. Considero a avaliação assaz generosa, para não dizer exagerada, mas nem por isso deixo de agradecer sinceramente. 

A história que a seguir ele me conta é sem dúvida das mais comoventes. A mãe, com 91 anos, está no Rio para submeter-se à quinta cirurgia. Apesar da idade e do sofrimento, não se deixa abater. Está lúcida e só demonstra tristeza quando pergunta pelo filho, a quem não vê desde o início dessa nova internação, meses atrás. Ele, por sua vez, conserva a esperança de em breve trazê-la para casa e oferecer-lhe algum conforto, pouco, pois é homem pobre, mas também muito amor, sentimento que nunca deixou de pulsar em seu coração de filho único.

Quem não se comove ouvindo esse drama do filho amoroso, mãe doente e hospital distante? Eu teria me comovido, não fosse o fato de que ele já ter me parado na calçada há menos de um mês e contado a mesmíssima novela, palavra por palavra, gesto por gesto, suspiro por suspiro. Lamento que sua pouca memória o tenha levado a julgar-me um novo freguês, quando na verdade me abordou faz tão pouco tempo. Também é lamentável a falta de variação no seu repertório. Bem que ele poderia, por exemplo, ter me falado da necessidade de comprar remédios para o filho entrevado. Enfim, o homem me passa a imagem de um profissional pouco atento (não me reconhece) e pouco criativo (conta a mesma história). Apesar disso, não deixo de admirar nele certa capacidade de expressão facial, a voz que embarga e retorna de acordo com o andamento da narrativa. Não é nenhum Tony Ramos, mas dá bem para um papel secundário em novela das seis.

E gosto especialmente da sutileza com que ele introduz na fala o que realmente lhe interessa. Confessa então o seu desejo de ir ver a mãe, “Quem sabe pela última vez!”, o que até agora não pôde fazer porque ainda não conseguiu dinheiro suficiente para as passagens. E, num arranco de coragem, me pergunta se eu não poderia lhe emprestar déiz mirrés. Vê-se que não é um ganancioso: contenta-se com os mesmos déiz mirrés da vez anterior, apesar da inflação e do aumento das passagens!

Andasse eu com essa fortuna no bolso, talvez o tivesse socorrido. O problema é que com esse negócio de cartão de crédito, pix, caixas eletrônicos e outras modernidades, quem ainda anda com dinheiro no bolso? Eu não carrego nem déiz mirrés, nem dez contos, nem dez reais. Dez dólares, então, só em sonho!

Desse modo, pela segunda vez despeço o homem de mãos vazias, não sem algum remorso, sobretudo ao lembrar sua preocupação com minha família, minha saúde e meus negócios. E vou embora, desejando que desta vez ele tenha prestado um pouco mais de atenção na minha insignificante pessoa e não me aborde novamente, ou que ao menos varie e aperfeiçoe suas histórias, porque seria muito chato ser parado na rua pela terceira vez para ver o mesmo filme. Se ao menos fosse com Tony Ramos!

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