Viciado em viver

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 02 de julho de 2022
Foto de capa
(Foto: Freepik)

Eu sou vulnerabilidade e a admissibilidade de ser vulnerável. Sou a esquina, a paixão intrometida, o beijo de carnaval na dança da festa junina. Eu sou o vinho que não vinagra. Sou os verões que passam e as primaveras que fincam, raízes no varal dos dias de chuva, raízes no quintal das noites de sol. 

Eu sou tudo que quero ser e também tudo que não posso. Pois ao não ser, também sou. Eu sou essa ânsia em viver querendo adiar ao máximo a morte. Não que eu seja inimigo do fim. Mas não gosto de ir embora, pelo menos enquanto admiro ficar. Sem ser avesso às mudanças, gosto de fazer morada na felicidade. 

Foi em uma roda de samba de segunda-feira que me disseram: “você é viciado em viver”. Nada talvez me defina melhor. Que meu vício não me abandone. Que eu siga a determinar a forma que meu vício me define. 

Viciado em viver, à minha maneira, e, totalmente aberto a descobrir novas formas de chorar e sorrir. A vida é meu ópio, é o que me mantém sóbrio sem ter pés no chão. 

Viver é mais do que respirar ou contar tempo a partir da certidão de nascimento. Viver é mais do que andar com passos firmes. Viver é, às vezes, se ver caminhar vacilante. Se a vida pede coragem, é porque admitimos ter medo. E teríamos medo se tivéssemos consciência do que é romper o ventre. Temos medo pela consciência do quanto é irrefreável a loucura que é se entregar as paixões que nos mobilizam. Se os afetos nos guiam, a arte dos nossos encontros — percebidos e não percebidos — afeta o mundo. 

Viver pede propósito, mas é muito mais achar o que não se procura. Enxergar o imprevisível, o invisível, o difícil de se notar. As surpresas que nos visitam — agradáveis e desagradáveis — é que causam os tais impactos que não permitem que sejamos roteiro pronto. 

Eu sou filme inacabado. Talvez eu, como você e todos, possamos ser medidos pela régua da vaidade. E o tamanho da vaidade é determinante para o nosso lugar na ínfima linha entre a arrogância e a submissão. Ambas são perigosas e é danoso não estar atento. 

Eu sou a vigilância desapegada de julgamento. Eu sou a fibra que vibra ondas entre as cordas do violão. Eu sou a voz que tenta aprender a também falar os dialetos do silêncio. Eu sou a vida que escapole, porque não me economizo. Viciado em viver — vivo — em exagero, em emoções que me movem. Se me acusam de não levantar bandeiras, respondo: eu sou a bandeira. 

Eu sou vendaval em tempos nublados. Eu sou tempestade nas fortalezas dos corações vazios pesados. Eu sou múltiplas extensões que iluminam o horizonte e sou também a utopia em alcançá-lo. No infinito de mim mesmo, eu sou quase imperecível, mas não invencível. E contemplo esse sentimento de não ser imbatível. Por proteção, talvez, eu sou mortal mesmo nas promessas de eternidade. Ainda que exagerado, a imortalidade seria uma maldade dos deuses com a humanidade.

Eu sou humano, mesmo quando acredito ser astral. Eu sou diverso querendo ser diversão. Eu vivo mais do que escrevo, eu vivo mais do que canto, ao ponto que ao ler e ouvir também vivo. Eu coleciono olhares para o álbum da vida, eu admiro rostos que não conheço, ainda que adoraria me aprofundar em suas histórias. 

Eu me entrego, sem me render. Eu vivo para não morrer. E não admito morrer em vida. Viciado em viver, eu sou a minha própria aventura e fiel à natureza considero ser parte de algo que não compreendo, mas que deposito fé. Estou em transformação constante. 

Viciado em viver, assino meu testamento com assinatura legível: eu sou quem eu sou e tudo além.

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